Professores saltimbancos à espera de colocação. "É uma ansiedade enorme, nunca sabemos o que vai acontecer"

03 set, 2021 - 08:00 • Hélio Carvalho

Em agosto, o Ministério da Educação anunciou a colocação de 6.500 professores contratados e mais de 5800 na primeira reserva. Muitos mais ficaram sem colocação, à espera de mudar de vida em cima do joelho.

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Sem colocação e o regresso às aulas está à porta. Outra vez a reserva. Daniela é professora e ainda aguarda por uma vaga numa escola. Não sabe se vai ficar perto da casa ou se terá de mudar de vida, novamente, a centenas de quilómetros de distância. Cristina está na mesma situação e, no último ano, Ana não ganhou para os gastos e teve de recorrer a poupanças para trabalhar. A "ansiedade" e a incerteza são denominadores comuns.

Como estas três professoras muitos milhares de docentes nas reservas de recrutamento, sem saber para onde vão, se ficam perto ou se terão de procurar um alojamento em poucos dias, quando serão colocados e que tipo de contrato e horário terão.

A duas semanas do novo ano letivo, muitos professores já sabem onde vão lecionar no próximo ano letivo, depois da primeira lista de colocações ter sido lançada a 13 de agosto e a primeira reserva de recrutamento ser anunciada no dia 1 de setembro. Segundo o Ministério da Educação (ME), mais de 13 mil professores mudaram de escola, cerca de 6.500 professores contratados foram colocados na contratação inicial e cerca de 5.800 foram colocados na primeira reserva.

E, em julho, o ME anunciou que 2.455 professores cumpriram os critérios para a vinculação.

No entanto, para os docentes na reservas de recrutamento que não viram o seu nome nas listas, as incertezas mantêm-se.

Daniela Neto é professora desde 2003, nunca conseguiu vincular e tem "andado a fazer substituições há quase 20 anos". A vinculação através da chamada 'norma-travão' é "uma luz muito longe ao fundo do túnel" e a docente de 40 anos fala de mais uma época, mais um concurso à contratação inicial e mais uma espera desgastantes.

"Só a questão do concurso é um desgaste incrível, porque nós ficamos muito ansiosos por saber se estamos a concorrer bem, se é a melhor forma de concorrer, se as opções que estamos a ter vão ser as melhores. Depois, até saírem as listas, é uma ansiedade enorme porque nunca sabemos o que vai acontecer. Como não ficamos logo colocadas, temos aquela ansiedade semanal de estarmos sempre à espera das reservas de recrutamento para saber se é nessa reserva ou não que vamos ter sorte", conta à Renascença a professora residente em Paredes, no distrito do Porto.

Na situação de Daniela estão centenas de professores que passam uma carreira longa a fazer contas à vida. Cristina Araújo, também ela com 40 anos e quase 20 anos a dar aulas, explica que "para quem é contratado e anda nisto, é uma ansiedade tremenda, porque tu pensas: 'se não ficaste colocada no dia 13, quando é que vais ficar e para onde vais?'"

Cristina, com residência em Famalicão, no Minho, já foi colocada no Algarve de um dia para o outro. Diz que ficar na bolsa das reservas é um situação extremamente difícil, especialmente pela volta que a vida pode dar, mas para quem fica nas reservas é "comum" o ter de fazer malas à pressa.

"As bolsas normalmente saem à sexta-feira e os professores têm de se apresentar numa terça-feira. Quem ficou agora em agosto, já teve todo o tempo de reajustar a vida nesta primeira colocação. Quando fiquei colocada no Algarve, fiquei colocada em Lagos. Eu soube numa sexta-feira e tive de ir logo no fim de semana para arranjar casa. A gente tem de se preparar e tem ali dois, três dias para orientar a vida de um ano. É acabar por ter de fazer as malas sem contar", recorda.

Já Ana Marta Couto, de 30 anos, repete a palavra "ansiedade" e conta que, depois de viajar do Porto para Lisboa no ano letivo anterior, pode estar a contar com a mesma volta para ensinar.

"Tenho uma ideia para onde irei, porque nas manifestações de preferências coloquei mais ou menos 50 concelhos para onde eu estou disposta a ir e pode ser que fique em Viana do Castelo, em Ovar ou então em Amarante."

Mas a incerteza é o nome do jogo. Ana Marta Couto conta que há também "a hipótese de, de um momento para o outro, ficar colocada em Lisboa e ter que viver para lá".

Foi o que aconteceu no último ano letivo. "Estava a trabalhar no Porto, numa sexta-feira à tarde soube que fiquei colocada e na terça-feira apresentei-me ao serviço. Tive um dia útil para poder organizar, para poder avisar a escola onde trabalhava que não podiam contar mais comigo, de forma a que, no dia seguinte, pudesse apresentar-me na escola", recorda a jovem docente natural de Paços de Ferreira, que dá aulas ao 3.º ciclo e ao Ensino Secundário.

"Os meus filhos sofrem imenso"

Cristina Araújo já deu aulas de Norte a Sul do país. Em 2012/2013, lecionou em Lagos, o que a obrigava a viajar recorrentemente daquela cidade até ao aeroporto de Faro (uma distância de quase 100 quilómetros), para depois ter de viajar do Porto para Famalicão (mais uns 30 quilómetros). Passou também pela Amadora e um pouco por todo o Baixo Minho.

Agora, com um filho de cinco anos, diz que não pode "correr o risco de me afastar dele e concorrer para Lisboa ou para o Algarve, onde aí há falta de professores".

"Foi há cinco anos que deixei de concorrer a todo o país. A partir do momento em que ele nasce, a vida muda e a prioridade passa a ser ele".

Em Paredes, Daniela Neto também tem dois filhos, um com 12 e uma com três. E admite que "esta instabilidade e esta mudança constante de nunca sabermos como vai ser o nosso futuro ano após ano" complica a gestão da vida pessoal e familiar.

"Eles têm os horários deles, eles dependem de nós e, muitas vezes, tenho de organizar a escola, os horários, o ATL de um dia para o outro, o que é uma coisa difícil, porque temos de procurar sítios para eles ficarem quando nós não podemos ir buscá-los. A nossa maior dificuldade tem sido essa. Eu nunca sei como é que vai ser a minha vida daqui a dois ou três dias".

Além disso, a possibilidade de ficar num contrato temporário e ter de mudar de escola a meio do ano letivo pode obrigar a começar tudo de novo. "Os meus filhos sofrem imenso com isso porque passam a vida a mudar de forma de viver o dia", lamenta.

"As relações de proximidade ficam pendentes, as relações sociais também, fica tudo à espera"

Marta é a mais jovem das três professoras, mas já viu a sua quota parte de curvas e contracurvas no concurso das colocações. Em 2020/2021, deu aulas de Português nos Olivais, em Lisboa, e conta também com formação para dar Espanhol (Língua Não-Materna).

Com a vida toda no Porto, fala de uma experiência que a deixa menos disposta a voltar a viajar para longe. Falta "vontade, facilidade e disposição para ir para um horário temporário", onde as condições dificultam a vida social e familiar.

"Tenho todo um historial pessoal suspenso e à espera que eu tenha uma vida organizada e estável. Há imensa coisa que fica pendente. As relações de proximidade ficam pendentes, as relações sociais também, a relação com a cultura, com a diversão, fica tudo à espera."

Durante a semana, Marta vivia em Lisboa. Todos os fins de semana, ia para o Porto, onde partilha casa com o namorado. O tempo perdido em viagens, fator que partilha com muitos professores que lecionam longe da sua área de residência - mesmo os que já foram colocados a 13 de agosto - é outra condicionante.

"Senti que estava em piloto-automático, que tinha de estar com o namorado ao fim de semana e à semana preparava as aulas. Foi um ano difícil, um ano em que passava grande parte do tempo em transportes públicos. Olho para o último ano letivo e vejo-me em transportes públicos."

Não só não se "sentia em casa em nenhuma das duas casas que tinha, porque não conseguia criar raízes de proximidade", como confessa que o esforço não compensou os gastos de viver em duas cidades.

"Economicamente, não foi nada estável. Eu tive de ir buscar dinheiro à minha conta-poupança para poder estar bem e continuar a vida que tinha. Eu saí do Porto, mas partilho um espaço com alguém. Portanto, ao ir viver em Lisboa, tinha que pagar duas casas, duas contas, duas Internets... Era tudo a dobrar. Na verdade, não compensou muito economicamente", disse.

Vinculação é caminho longo e exaustivo a percorrer

Para um professor poder efetivar contrato, tem de cumprir três anos seguidos em horário completo ou anual no mesmo Quadro de Zona Pedagógica, segundo o sistema de vinculação extraordinário, ou a chamada "norma-travão". No entanto, segundo as alterações recentes à legislação - fortemente criticadas pelos sindicatos - os professores elegíveis têm de concorrer na mesma a todo o país, sob pena de não poderem assinar um novo contrato.

São muitas as dificuldades para um professor efetivar contrato com uma escola ou agrupamento, a começar pelo facto de ser necessário cumprir um ano completo até ao dia 31 de agosto.

Cristina Araújo diz que esteve perto de passar aos quadros: esteve dois anos seguidos a substituir uma professora, começando sempre antes do dia 14 de setembro e indo sempre até ao dia 31 de agosto. No terceiro ano, Cristina tinha de ser colocada na contratação inicial, mas acabou por fazer uma nova substituição. Perdeu-se a oportunidade.

"Foram três anos que não foram contabilizados. Se por acaso fosse anual no meu contrato, já me contavam os dois para trás como sendo anuais. Aí conseguia efetivar. Nesses três anos, estive três anos consecutivos, 365 dias a trabalhar. No ano seguinte, como fui substituir uma professora de licença de maternidade, eu perdi os três anos para trás. Tenho de fazer novamente três anos para conseguir efetivar", explica.

E há ainda a questão de apenas os contratos até à segunda reserva de recrutamentos, anuais, poderem ser contados. Quem entrar numa escola mais tarde, estará a trabalhar o ano inteiro sem esse ano contar para uma possível vinculação.

Ana Marta Couto acredita que é "impensável" ser efetivada no Norte do país, onde há muitos mais professores, pelo que levará muito tempo a conseguir fazer três anos completos, seguidos. "É impossível acontecer isso. E só, eventualmente, poderia acontecer se eu me candidatasse para Lisboa, Algarve ou Alentejo, e para o interior, que é algo para o qual não estou disposta nem tenho de estar disposta a fazer, porque já percebi pela experiência que tive que não me compensa economicamente e pessoalmente tomar esse tipo de decisão".

Marta conta uma "má" experiência no ano transato. Entrou numa escola em outubro, com horário completo e temporário. Devia ter ficado até dezembro, mas acabou por continuar. Em vez de terminar o contrato a 31 de agosto, como tinha garantido a escola, foi dispensada em julho por não haver mais atividades letivas. "Pareceu-me pouco ético porque, havendo serviço e imensa coisa para tratar na escola, reuniões para organizar o próximo ano letivo, pessoalmente achei bastante incorreto por parte da escola de dispensar um professor a partir do momento em que as avaliações do terceiro período estão concluídas", critica a professora natural de Paços de Ferreira.

Efetivar só perto dos 50

As três professoras concordam que um professor só consegue imaginar uma possível vinculação definitiva já perto dos 50 anos. Daniela Neto, de Paredes, não se vê a efetivar de todo, por nunca tentar ficar longe dos dois filhos e da família, da qual é "muito agarrada".

"Costumo dizer que vou sair da carreira contratada, porque o tempo de serviço não corresponde aos 20 anos que eu trabalho. Tenho muito menos tempo de serviço, porque tenho andado em substituições, vou perdendo sempre dias e muitas vezes não fico até ao final do ano letivo. Por isso não tenho grandes esperanças", lamenta.

Marta também acredita que só ficará efetiva "aos 40 e muitos, 50 anos". Já Cristina, que diz contabilizar mais de 5000 dias de trabalho, que se traduzem em 15 anos de serviço (apesar de lecionar há quase 17), diz, esperançosa: "acredito que a minha vez esteja quase a chegar!"

"Isto para nós é uma angústia. Uma professora vai para uma empresa no setor privado, está dois, três anos, tem de efetivar. Aqui estão a tentar fazê-lo, mas criam ali uma alínea que causa um entrave enorme. Se tens o azar que eu tive de ficar a substituir uma professora que estava de licença de maternidade e se apresentou, aqueles três anos foram em vão. Não sei se isso é justo", questiona a professora famalicense.

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