A pandemia vista pelas ciências sociais

“Há uma tentativa do estado chinês de se ilibar da responsabilidade devido à possível reação tardia à epidemia”

10 mar, 2021 - 06:00 • João Carlos Malta

José Neves é professor auxiliar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, vice-presidente do Instituto de História Contemporânea e autor da obra “Comunismo e Nacionalismo em Portugal”, que obteve o Prémio de Ciências Sociais. Nesta entrevista, este especialista em História Contemporânea fala de quem escreverá a história da pandemia, diz quem serão os vencedores, quem comanda a narrativa e lembra o facto de a história poder não ajudar a ler o presente por ele ser radicalmente diferente de tudo o que já foi vivido.

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A História é sempre ou quase sempre uma boa bússula para nos ajudar a orientar no presente e a imaginar o futuro. Mas há alturas em que pode não ser assim. O historiador José Neves crê que pode dar-se o caso de com a Covid-19 estarmos a viver algo de efetivamente novo, "que se calhar leva a uma reflexão que nos obrigue a criar novos instrumentos e a novas formas de contar a história". "Não sei como se vai escrever a História", reconhece humildemente em entrevista à Renascença.

Certo é que no terreno há já investigadores a fazer o seu trabalho de recolha de dados da pequena e da grande História, e José Neves pensa que o maior desafio que vão ter é o de descobrir e identificar o que é diferente em relação ao passado e não tanto as semelhanças com outras pandemias.

O vice-presidente do Instituto de História Contemporânea garante ainda que a ideia de que nunca estivemos tão preparados para combater um vírus, pode repousar numa "ilusão".

Um dos chavões mais comuns em relação à História é a de que se repete. É verdade? Está a repetir-se desta vez o mesmo que aconteceu em outras pandemias?

Noutras situações pandémicas, nomeadamente os historiadores que mais sobre isso se têm debruçado, é fácil encontrar linhas paralelas, continuidades. Se quisermos alargar a questão das pandemias − àquilo que podemos chamar de acontecimentos catastróficos que não têm necessariamente uma natureza ligada à saúde − como as guerras e os desastres naturais, há um conjunto de dimensões como o espanto, a surpresa, as formas de reagir por parte dos agentes, nomeadamente os estados e os governos, que são semelhantes.

O que acho que temos de fazer é resistir a encontrar apenas as semelhanças, que é uma forma instintiva que temos de tentar domesticar a surpresa. Ao longo do último ano, já passamos por várias fases, e olhando para o contexto português já tivemos uma grande capacidade de nos espantar com a novidade, e já recorremos a imagens e conceitos do passado para tornar o presente em que vivemos mais previsível.

Houve um momento inicial em que a incredulidade no que estava a acontecer se traduziu numa posição de humildade, enquanto espécie, em que estávamos disponíveis para refletir a nossa forma de nos relacionarmos com o planeta.

Posteriormente recuperamos a confiança na ciência com as vacinas que foram descobertas. Passámos a ter uma autoconfiança quase a roçar a arrogância enquanto espécie da nossa capacidade de resolver a pandemia.

Em alguns países nomeadamente no nosso em que a situação se agravou de forma muito significativa ficamos novamente numa posição de perplexidade face ao que nos está a acontecer. A nós todos é fácil encontrar hipóteses esperançosas, que nos fazem acreditar que as coisas voltarão a ser como dantes, de que vai ficar tudo bem.

O que é que tem sido diferente em relação a outras grandes pandemias do passado?
Uma das questões que tem sido muito focada é o de isto acontecer num contexto de ligações transnacionais a todos os níveis: pessoas, mercadorias e bens. Isso acontece num momento em que aquilo que chamamos de globalização nunca foi tão intensa.

Foi um fator que aumentou a capacidade de circulação do vírus na fase inicial e na capacidade de transmutação agora com as novas variantes.


NÚMERO DE MORTES DIÁRIOS PELA COVID-19

Há outros fenómenos, como a natureza do trabalho nas nossas sociedades. Não só nas modernas sociedades ocidentais. Hoje uma parte do trabalho é desenvolvido à distância, em alguns setores. Mas isso também promove formas diferenciadas de experimentarmos o confinamento.

Nunca estivemos tão preparados para resistir a uma pandemia, ou é uma ilusão?

Talvez seja uma ilusão. Do ponto de vista científico é demasiado cedo para responder a essa pergunta definitivamente.

A ideia de que estaríamos melhor preparados do que nunca, admitiria a possibilidade de a espécie poder hibernar oito, 10 meses, quase um ano. E quando olhamos para o confinamento e para as estruturas e as dinâmicas de produção, percebemos que além dos profissionais da saúde existem um conjunto de setores da sociedade que não podem parar.

"O que acho que temos de fazer é resistir a encontrar apenas as semelhanças, que é uma forma instintiva que temos de tentar domesticar a surpresa"

A ideia de que estávamos preparados repousa na ilusão de que há um acumulado de informação, de produção, de riqueza que nos aguentaria. Não só sabemos que essa riqueza estava mal distribuída, e pior está depois deste momento.

Referiu a globalização como um fator potenciador da pandemia. A internet é um dos seus principais veículos. Que efeitos é que termos informação ao segundo tem na reação ao vírus e à forma como a pandemia é vivida? O medo é potenciado?

O confinamento num contexto de uma sociedade ligada em rede é muito diferente do confinamento produzido há séculos. Diria que os riscos que a internet traz ao contexto da pandemia são aqueles que já trazia anteriormente, como a disputa do monopólio da produção de informação que se faz entre a internet e os órgãos de comunicação social.

Permite intensificar as relações de comunidade à distância, permite manter em parte a atividade laboral de um conjunto cada vez mais alargado de serviços e permite também uma variedade de informação que pode suscitar reações de maior ou menor confiança.

Algo que seria importante refletir é a importância do poder de informação do Estado, nomeadamente do governo. Até que ponto foi reforçado, o poder de informação dos ministros, das autoridades centrais, como a DGS, dos peritos que se colocam na órbitra ora do Estado, ora da comunicação social, que atingiram um prestígio próprio, sejam eles matemáticos, epidemiologistas ou cientistas sociais.

"Passámos a ter uma autoconfiança quase a roçar a arrogância enquanto espécie da nossa capacidade de resolver a pandemia."

Neste contexto pandémico, em que há uma informação centralizada, sobretudo em determinados momentos, por parte do centro do poder que são os estados, como é que a informação circulou? Do centro para as periferias? Foi sendo transformada? Foi perdendo força?

O que acha?

A conversa foi sendo tida com base na competência de comunicação das pessoas que estavam à frente da DGS ou do Ministério da Saúde. Olhando para o caso português seria necessário fazer uma análise mais geral. Parece-me que há uma centralidade do discurso do ministério da Saúde, que é relativamente incontornável ao longo destes meses.

A similitude mais próxima é a da importância que os ministros das Finanças adquiriram a seguir a crise de 2008 e a intervenção da troika, em que no fundo eram eles que marcavam o ritmo da discussão através das decisões que tomavam.

No caso português, estas visões foram sendo contrabalançadas com outras intervenções mais solenes e espirituais, por parte da presidência da República. O primeiro-ministro, às vezes, também assumiu um papel de liderança.

As figuras que mais têm aparecido no último ano, na televisão, são a ministra da Saúde, primeiro-ministro e o Presidente da República, o que mostra uma estatização da comunicação.

"A ideia de que estávamos preparados repousa na ilusão de que há um acumulado de informação, de produção, de riqueza que nos aguentaria. Não só sabemos que essa riqueza estava mal distribuída, e pior está depois deste momento. "

Os protagonistas empresariais privados, representação de interesse económicos, ou as grandes empresas desapareceram de cena do ponto de vista da produção de discurso.

A pandemia devolveu uma certa centralidade ao Estado, do ponto de vista da comunicação, do ponto de vista da capacidade de regulamentação, com efeitos muitos diferentes, como por exemplo o decretar do estado de emergência.

É uma devolução do protagonismo ao Estado nos seus diferentes corpos, como é típico dos tempos de guerra e outros efeitos catastróficos.

Gripe espanhola” foi o nome cunhado na História para a doença que matou mais de 40 milhões de pessoas em todo o mundo, no início do século XX. Nessa altura, invocou-se, tal como agora, uma putativa xenofobia quando alguns deram à Covid-19 o nome de vírus chinês? Ou quando falamos de estirpe inglesa?

Não sei responder. A designação da Influenza como Gripe Espanhola teve um efeito de estereotiparão. Se suscitou discussões não sei descrever. Em relação à atualidade, a questão colocou-se quando a expressão vírus chines foi utilizada reiteradamente, e nem sequer foi semi inocente, mas deliberada nos discursos de Donald Trump. O que estava em causa era a ideia a responsabilidade pela origem do vírus podia ser localizada e determinada.

Poderia por isso ser responsabilizado o estado chinês, ou o poder local em Wuhan. E isso serviu, durante algum tempo, para resistir que a pandemia tornando-se pandemia é um fenómeno global, e a discussão sobre a origem não é muito útil que seja feita em termos de responsabilização de um local, região ou autoridade politica nacional, mas que na verdade deve-nos convocar a pensar na relação que mantemos com a natureza e o planeta, e com uma espécie de semivida do planeta que são os micróbios e os vírus.

"A pandemia devolveu uma certa centralidade ao Estado, do ponto de vista da comunicação, do ponto de vista da capacidade de regulamentação, com efeitos muitos diferentes, como por exemplo o decretar do estado de emergência."

Esta estereotipação, a variante inglesa, o vírus chinês, têm significados diferentes. São utilizadas de forma banal e sem nenhum tipo de intencionalidade xenófoba ou racista pela maior parte das pessoas, mas produzem um efeito que é o de acharmos que a solução para a pandemia pode não ser global.

A discussão em relação à vacinação e à performance de cada país em matéria de vacinação da sua população esquece que a política de vacinação deveria ser global como defende a OMS, − que é uma entidade cujo protagonismo do ponto de vista da comunicação tem vindo a desaparecer, pelo menos em Portugal.

Diz-se que são os vencedores a escrever a História. Já sabemos quem vão ser esses vencedores? E o que vão querer escrever?

Os primeiros discursos que tentaram dar um certo sentido histórico ao que nos aconteceu foram dos principais líderes políticos. Dois exemplos perto de nós, Emmanuel Macron em França e Marcelo Rebelo de Sousa em Portugal. Na altura, a forma que encontraram para dar sentido histórico ao que vivíamos foi o recurso ao arsenal semântico e metafórico da guerra.

Passados 10 meses percebemos que esse imaginário perdeu força, eficácia e eficiência.

Não sei quem serão os vencedores que vão escrever a História do que se está a passar, mas a forma de escrever essa História vai ter de encontrar novas expressões, conceitos e figuras.


EVOLUÇÃO DA VACINAÇÃO DA COVID-19 EM PORTUGAL

Vão ter de encontrar novos meios e figuras diferentes daquelas imagens bélicas, da responsabilidade, da culpa, da agressão.

Estamos agora num contexto em que passamos para uma retórica assente no cuidado, saúde, um pendor mais paternalista e maternalista. Os historiadores que vierem a escrever sobre este período vão ter de perceber se estes imaginários são úteis.

Como olha para o esforço das autoridades chinesas em reescrever a história inicial de que o vírus teve origem na China?
Todos os estados, e principais atores da cena internacional, seja na frente interna que é a resposta ao vírus, seja na frente externa, reagem gerindo a informação da forma que é mais útil aos seus propósitos. Desse ponto de vista, o que se passa no estado chinês não é diferente do que se passou na administração norte-americana.

"Não sei quem serão os vencedores que vão escrever a História do que se está a passar, mas a forma de escrever essa História vai ter de encontrar novas expressões, conceitos e figuras."

Há uma tentativa do estado chinês de se ilibar da responsabilidade devido à sua reação tardia à epidemia.

Essa capacidade de escrever a história é fundamental para controlar a narrativa, se o objetivo for o de mudar o equilíbrio de poderes...

Certo, e isso é o que os estados fazem, mediante a sua natureza mais democrática ou mais ditatorial. É isso que fazem em momentos de grande impacto global como o que estamos a viver, e em momentos em que a incerteza da história se torna mais evidente.

A ação comunicacional, diplomática, informacional que governos e estados estão a desenvolver é semelhante às grandes guerras mundiais.

A nossa forma, dos historiadores, mas vossa também dos jornalistas é a de procurar no passado imagens que nos confortem e pode dar-se o caso de estarmos a viver algo de efetivamente novo, que se calhar requer leva a uma reflexão que nos obrigue a criar novos instrumentos e novas formas de contar a história. Não sei como se vai escrever a História.

Com tanta desinformação e análise de números de formas muito diferentes, qual será a informação que considera que deve ser recolhida de forma a registar este acontecimento para o futuro? As notícias? Os relatórios da OMS?

Há um conjunto de informação oficial que é abundante que terá de ser confrontada e perceber-se como foi produzida para procurar desvelar como é que foi elaborada.

Todo o esforço a partir de documentação oficial que venha de instâncias locais, nacionais e supranacionais, terá de ser feito. Uma coisa que se torna mais evidente hoje é que independentemente da informação a forma como ela foi sendo percecionada, recebida e vivida, que é múltipla, reagimos de maneiras diferentes a determinadas informações, estatísticas.

A história das perceções é um elemento importante para compreendermos esta pandemia.

Mais do que encontrar na História as respostas para este problema, seria interessante encontrar outros momentos de imprevisibilidade, de desconhecimento, de navegarmos sem bússola.

" A ação comunicacional, diplomática, informacional que governos e estados estão a desenvolver é semelhante às grandes guerras mundiais. "

Para lermos o momento que estamos a viver qual será a história que vamos necessitar mais: a pequena história dos relatos dos cidadãos comuns presente em livros como o “Diário do Ano da Peste” ou a grande história dos movimentos de blocos políticos ou estados?

Acho que são ambos gestos historiográficos interessantes e os historiadores, mediante as suas preferências, irão mais num sentido ou noutro. Mas o mais interessante, a meu ver, é o efeito de "looping" entre uma coisa e outra.

Como é que os dados estatísticos modificam os nossos comportamentos e como é que esses comportamentos alteram a realidade e, por isso, mudaram os nossos comportamentos?

Tentar perceber isso a uma escala maior, em todo este ano, seria o desafio historiográfico mais interessante e mais complicado.

Começamos a olhar para o centro da Europa e os levantamentos populares contra as medidas dos governos e preocupamo-nos. Em outras pandemias aconteceu o mesmo? Qual a melhor forma de gerir estes movimentos sociais?

As medidas restritivas suscitam frequentemente ao longo da história moderna e contemporânea reações muito diversas, de aceitação, de apoio, mas também de protesto. Porque, muitas vezes, essas medidas são decretadas no meio de uma escalada de tensão entre setores da população e o Estado.

O prolongamento da pandemia cria um cansaço, aumentará a irritabilidade e será propício a esta situação, mas também tem a ver com a forma como os estados foram gerindo esta situação. Os estados, na sua função de garantir a ordem pública, procuram sempre uma situação ótima: o máximo de controlo com o mínimo de repressão. Sabem que a repressão tem consequências ao nível da perda de autoridade, de prestígio e de legitimidade.

Em Portugal, se pensarmos nas medidas decretadas pelo Governo em dezembro, depois daqueles fins de semana com confinamento limitado, essas medidas pressupunham um aligeiramento das regras impostas deram origem a um comportamento mais desordeiro. No segundo confinamento, a reação da população já não foi tão empática.

Há uma situação complicada, os estados ao mesmo tempo que não garantem todos o direitos de confinar se for essa a sua vontade, no caso português os complementos salariais não são suficientes, não garantiu a outros setores que as condições salariais seriam mantidas. Além disso existe a vontade de desconfinar.

Não acho que a desobediência seja deliberada.

Na ressaca das pandemias, quais os movimentos políticos mais frequentes? Uma deriva autoritária é o mais frequente?

O caso que temos mais próximo de nós é o da pneumónica. Tenho comparado os paralelismos. É muito difícil separar o contexto da gripe espanhola do contexto político e social que vai da 1ª Guerra Mundial, às revoluções de outubro e à emergência dos fascismos.

É difícil dizer que uma crise pandémica leva a isto ou àquilo. Ela é uma oportunidade para transformações, se são de cariz mais benigno ou malévolo, isso depende do ponto de vista político-ideológico de cada pessoa. É difícil de responder ou adivinhar.

Comentários
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  • Ivo Pestana
    13 mar, 2021 RaM 13:11
    Ahahahahaha! Chinês é esperto.

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