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Ensino Superior

Crowdfunding, o novo porquinho mealheiro dos estudantes?

24 ago, 2020 - 08:00 • Fábio Monteiro

Vitória Mário pediu, Taylor Swift contribuiu com 25 mil euros. Através de uma campanha de crowdfunding, a jovem portuguesa amealhou, em menos de um mês, mais de 40 mil libras para estudar Matemática na Universidade de Warwick. Uma estratégia incomum em solo nacional, mas não sem precedentes. Há quatro anos, Daniela Reis pediu ajuda para pagar as propinas da sua tese de mestrado em Teatro – e conseguiu. Já Beatriz Cortesão queria ir estudar harpa para Itália e angariou seis mil euros.

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Daniela Reis sofreu um AVC aos 21 anos. Corria o ano de 2007 e a jovem tinha acabado de concluir a licenciatura em Teatro, na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. Preparava-se para rumar a Londres, para um curso de verão na London Academy of Music and Dramatic Art (LAMDA). Era uma pessoa “super saudável”, não cometia “excessos”. Teve o azar de nascer com uma malformação numa artéria venosa. Podia “nunca ter rebentado”.

A então estudante universitária sobreviveu. Esteve em coma, ficou parcialmente cega, sequela que ainda persiste; durante quase um ano, esteve sem falar e sem conseguir andar. Teve de aprender a refazer tudo. Mesmo assim, Daniela hoje tem coragem para afirmar: “o AVC não foi todo mau. Houve coisas muito más, obviamente, mas olhando para trás, foi como nascer novamente. Aprender a andar, escrever, falar. Foi uma experiência muito, muito poderosa.”

Há 13 anos, a carreira artística de Daniela acabou antes de ter arrancado. A vontade de estudar não. Após a “fatalidade” que foi o AVC, inscreveu-se no mestrado de Teatro, na mesma faculdade que antes frequentara, mas não o completou; deixou 36 créditos por fazer. Já em 2016, quis voltar aos estudos, à revelia da família. Os pais, “que já têm uma certa idade”, não compreenderam o porquê. “A minha mãe não conseguia perceber porque é que queria terminar o mestrado numa área que não me ia dar futuro”, explica.

Na época, Daniela sobrevivia com pouco mais de 400 euros mensais: 200 euros vindos de umas aulas que dava, “uma situação muito precária”, e 230 da pensão de invalidez. “Dava para pagar o quarto e comer”; estudar trazia “uma data de custos associados” que não conseguia suportar. “Estava a bater-me com algumas dificuldades financeiras, já não sabia se conseguia pagar a propina. Se só tivesse 30 créditos por fazer pagava menos, acho que era metade. Como eram 36, tinha de pagar a propina toda que era mil e qualquer coisa euros”, conta.

O orientador de tese, Guilherme Mendonça, deu-lhe uma ideia: e se criasse uma campanha de crowdfunding? O próprio já havia recorrido, no passado, a essa estratégia, para publicar um livro. Daniela confessa que “tinha total desconhecimento do que isso era”. Mas tinha um mês para conseguir o dinheiro para pagar a tese de mestrado, cujo tema autobiográfico já havia escolhido: “Aplicabilidade de técnicas do treino do ator na recuperação de sequelas de AVC”.

Sentiu-se “exposta”, mas avançou. “Foi a primeira vez que eu disse: eu tenho isto, quero fazer isto, mas preciso de ajuda. O povo português é muito orgulhoso, e falo por mim obviamente, e eu estava a ter muita exposição sobre a minha condição”, conta.

A campanha na plataforma PPL foi divulgada nas redes sociais – e assim ganhou lastro. Amigos, antigos professores contribuíram. “Muitas pessoas eram colegas, que eu não conhecia pessoalmente. Depois, tive grandes contribuições de anónimos. As maiores contribuições foram assim”, recorda. Daniela tinha pedido 1.210 euros, recebeu 1.514.

Um fenómeno raro

A história de Daniela Reis não é singular, mas é incomum. Em Portugal, por comparação com outros países, em particular os Estados Unidos, são muito poucos os casos de estudantes que, à falta de um porquinho mealheiro recheado, recorreram a campanhas de crowdfunding para financiar os seus estudos universitários. Durante o mês de agosto, porém, este tema subiu à praça pública por duas vezes.

Primeiro, com a história de António Rolo Duarte

O filho do falecido jornalista Pedro Rolo Duarte lançou uma campanha, na qual pedia 25 mil euros para ajudar a pagar as propinas do doutoramento na Universidade de Cambridge, queixando-se de um alegado atraso no pagamento da bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

No seguimento desta publicação, a FCT desmentiu a acusação e explicou que o jovem, tal como os restantes 3.797 concorrentes a bolsas de doutoramento, tinha que esperar, até 3 de setembro, pelos resultados do concurso; aliás, ainda não lhe havia sido atribuída nenhuma bolsa; Rolo Duarte estava na fila de espera para uma das 1.350 bolsas disponíveis.

Segundo, com o quase conto de fadas de Vitória Mário

A jovem portuguesa, que vive no Reino Unido com um tio, lançou, também no início do mês de agosto, uma campanha na plataforma GoFundMe com o objetivo de estudar Matemática na Universidade de Warwick, em Coventry.

Vitória, “uma jovem negra de 18 anos com um sonho”, precisava de 40 mil libras (cerca de 44 mil e 502 euros): 24 mil libras para o alojamento, três mil para equipamento e 13 mil para as restantes contas – comida, gás e eletricidade.

Vitória já tinha amealhado quase metade do valor que pedia, quando os astros do acaso intervieram e a sua campanha foi parar no radar da cantora Taylor Swift.

Comovida pela biografia da estudante portuguesa, cujo pai já faleceu e a mãe mora em Portugal, a cantora norte-americana fez uma doação de 23.373 libras (mais de 25 mil euros), foi noticiado na passada sexta-feira. “Vitória, deparei-me com a tua história online e estou tão inspirada pela tua vontade e dedicação em transformar os sonhos em realidade. Quero te oferecer a quantia que falta. Boa sorte com tudo o que fazes! Com amor, Taylor”, escreveu a cantora, na mensagem de doação.

Os casos de António Rolo Duarte e Vitória Mário não são, em todo o caso, representativos do panorama português.

Entre 2011 e 2020, a plataforma PPL albergou 212 campanhas de angariação de fundos cuja categoria principal era “Educação”; destas, apenas 90 foram completadas com sucesso, segundo dados cedido à Renascença. A etiqueta “Educação”, a sexta mais popular do site, é demasiado ampla para se perceber a realidade. Sob esse crivo, tanto há projetos de financiamento de escolas nos Países Africanos de Língua Oficial de Portuguesa (PALOPS) como estudos académicos. “Em geral, há menos campanhas de educação do que criativas ou culturais”, nota Pedro Domingos, um dos fundadores e sócios da PPL.

Para o empresário, há vários fatores que justificam esta tendência. “Acho que as pessoas estão mais sensíveis para ajudar causas sociais, sejam de animais, cães, gatos, ou então pessoas mais desfavorecidas, ou campanhas relacionadas com crianças ou até com migrantes, do que propriamente os empreendedores ou pessoas que querem estudar. Pode ser algo cultural, mas é isso que nós temos sentido”, explica.

Pedro Domingos avança ainda uma segunda justificação: o facto de não existirem “recompensas” que esses estudantes possam dar, “por comparação com alguém que vá fazer um CD ou publicar um livro”. Talvez por isso os pedidos de apoio ao ensino musical sejam mais recorrentes e tenham mais expressão.

Rumo a Milão

Em 2017, Beatriz Cortesão lançou um crowdfunding para ir estudar harpa, sob a orientação da professora russa Irina Zingg, para a Civica Scuola di Musica Claudio Abbado, em Milão. No mesmo momento, recorda, estava também a ocorrer na PPL outra iniciativa de alguém que queria estudar guitarra fora do país.

A jovem harpista, que em fevereiro deste ano passou a fazer parte da Orquestra Jovem da União Europeia, lembra ainda em julho deste ano, outra jovem música, Erline Moreira, recorreu – com sucesso – à mesma estratégia. Na GoFundMe, a jovem que toca fagote conseguiu 10.615 euros para rumar à Royal Northern College of Music, em Manchester.

Após concluir o ensino secundário e o conservatório em 2016, Beatriz decidiu ficar um ano em Portugal a trabalhar, com a esperança de amealhar dinheiro para ir estudar para Itália. Segundo as suas contas, por ano, ia precisar de cerca de 11 mil euros, “mais despesas de deslocação, alojamento” e todas as despesas de “manutenção” e “aluguer” que a harpa gera. Com duas irmãs, Beatriz diz que seria complicado para os pais suportarem todos os custos.

O esforço, todavia, deu poucos frutos. Apercebeu-se que por mais eventos que atendesse - festas, casamentos e até funerais - ou aulas que desse, não ia conseguir amealhar o dinheiro suficiente. Ia precisar de uma estratégia diferente. “Quem me falou no crowdfunding foi uma senhora que conheci no conservatório de música de Coimbra. E foi até essa senhora que, sabendo o meu gosto pela harpa, e que queria muito ir estudar para fora, me sugeriu começar com esse crowdfunding. E eu pensei: porque não, pronto”, conta.

Beatriz divulgou a campanha nas redes sociais, enviou e-mails. Queria criar “buzz”. Pedia seis mil euros, mas pensou que “não ia atingir” essa meta. Enganou-se. Com a ajuda dos pais, a campanha circulou e angariou o valor pretendido. A maioria dos apoiantes veio do círculo de amigos dos pais, mas houve também muitos desconhecidos. “Apoiaram e mandaram mensagem de: 'segue os teus sonhos', 'tu consegues'. Assim, encorajadoras. E acabou por correr bem”, diz.

Faltam apoios do Estado?

Em 2016, antes de recorrer ao crowdfunding, Daniela Reis ainda tentou conseguir uma bolsa do Estado. O problema foi que não cumpria os critérios: faltavam-lhe poucos créditos para ser elegível. “Não consegui bolsa porque os créditos que tinha que fazer eram muito poucos. De outra forma, conseguia”, diz. Não existia nenhum modelo legal que acautelasse as suas circunstâncias excecionais. A Renascença tentou obter um comentário do Ministério do Ensino Superior sobre este caso e o fenómeno do crowdfunding, mas sem sucesso.

A perceção dos apoios ao Ensino Superior de Daniela foi toldada por esta situação, tal como pela experiência familiar. O padrasto e dois dos irmãos são alemães. Ora, na Alemanha, quem frequenta o Ensino Superior não paga propinas. “Conheço imensas pessoas que querem continuar a estudar e não conseguem, porque têm de trabalhar ou estudar ou porque não conseguem fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Não é exequível estar a escrever uma tese, ou seja, lá o que for, enquanto se trabalha. Sobretudo a nível superior. Porque isso requer empenho”, afirma.

Para Daniela, “há muita desinformação sobre os apoios” do Estado. “Há falta, sempre houve falta. Não é só comigo é com toda a gente.” E mais: “Penso que seria justo haver escalões mais alargados de apoio. Outras ofertas como o que acabei por fazer: trabalhar na própria escola. Haver outro tipo de income ou perdão da propina trabalhando para a própria escola”, diz.

A jovem Beatriz Cortesão apresenta outra queixa: em Portugal, para licenciaturas no estrangeiro, “há pouquíssimos apoios” – o que é estranho, sublinha. Para mestrado, “há várias bolsas”. Aliás, a harpista, que conta concluir o curso em Milão até ao final de 2020, já concorreu a uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, de modo a continuar os estudos.

Já Daniela Reis tem hoje 34 anos e está desempregada. O contrato de trabalho que tinha com o Centro Cultural das Caldas da Rainha findou em maio passado e não foi renovado. Neste momento, não exclui a possibilidade de voltar a estudar, seguir para doutoramento. “Não sei quando, mas já estou a sentir necessidade de voltar.” Um novo crowdfunding, para já, não está em cima da mesa. A experiência passada, contudo, deixou boas memórias. “É um lugar-comum, mas é verdade: quando não temos esperança nenhuma, é bom insistir. O não está garantido.”

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