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Reportagem Covid-19

Sem visitas, doentes sentem-se “abandonados”. Enfermeiros angariam “tablets” para comunicar com famílias

15 abr, 2020 - 06:16 • Inês Rocha

Milhares de pessoas estão internadas nos hospitais há semanas e algumas não compreendem a suspensão de visitas. Famílias vivem angustiadas e receiam não poder despedir-se quando o fim se aproxima. Profissionais de saúde dizem que o contacto ajuda na recuperação, mas não conseguem dar resposta a todos os pedidos. Com a tecnologia que vai chegando de movimentos solidários, tentam encurtar a distância.

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Internado durante várias semanas, António deixou de receber notícias da família a 8 de março, quando mais de 30 unidades de saúde da região Norte suspenderam as visitas nos seus serviços por causa da pandemia de Covid-19.

“Fui deixado neste hospital, abandonado como um cão e ninguém quer saber de mim”, atirava, para quem o quisesse ouvir, na enfermaria do internamento de Cirurgia Geral do Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira.

Carmen Barreiro, enfermeira galega a trabalhar neste hospital há mais de 20 anos, tentava explicar-lhe que o país está em estado de emergência e que as visitas foram proibidas por causa do “bicho” que anda no ar.

“Não interessa! Se fosse o meu pai eu passava por cima das pessoas. É impossível um filho não visitar um pai”, respondia António.

Carmen decidiu tentar minimizar a solidão deste paciente. Pegou no telefone portátil do serviço, pediu para fazer uma chamada para o exterior e ligou para o filho de António.

O filho ficou emocionado. Há dias que tentava ligar para o hospital, sem sucesso, e estava desesperado para saber do pai.

“Eu compreendo, não é fácil falar com o internamento”, explica a enfermeira à Renascença. “Porque são imensas chamadas – muitos familiares a quererem saber dos seus entes queridos ou pessoas a pedirem informações.”

A sobrecarga de comunicações deixa alguns doentes incontactáveis. “Algumas pessoas têm telemóvel, outras foram apanhadas nisto e não têm. Outras simplesmente não sabem usar”, explica Carmen.

Por outro lado, os profissionais de saúde não têm mãos a medir. "Não pensem que não é complicado, porque temos colegas que já estão afetadas e as baixas são contínuas.”

As regras variam de acordo com o hospital, já que não há uma orientação geral sobre como proceder em relação ao contacto com as famílias, numa altura em que as visitas estão suspensas.

Questionado pela Renascença sobre como os familiares podem contactar os seus entes queridos, o Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga (CHEDV), que integra o Hospital de São Sebastião, explica que tem um horário de atendimento médico, todos os dias, das 11 horas às 13 horas, e da equipa de enfermagem, das 13 horas às 19 horas, para informação geral sobre o estado do doente. Já para doentes que estão em cuidados intensivos, a equipa médica faz o contacto com a família todos os dias, para fazer atualização do estado de saúde.

Ainda assim, fonte do hospital admite que por vezes há sobrecarga de chamadas, motivo pelo qual podem não ser atendidas imediatamente.


Apoio dos familiares é "crucial"

António mudou depois de falar com o filho ao telefone. “O meu filho diz que cortaram as estradas todas, isto nem no tempo do Salazar!”, comentava com a enfermeira.

A partir daquela conversa, o paciente ganhou ânimo. Se antes dizia que não tinha forças para se levantar, naquele dia pegou no andarilho e quis espreitar o Castelo da Feira pela janela.

Carmen considera que o apoio dos familiares é crucial para que os pacientes compreendam o estado de exceção que se vive. “Obviamente, uma pessoa de idade não vai compreender, porque não está a ver o que se está a passar lá fora. Um filho poder explicar é muito diferente de sermos nós.”


Como podemos proibir uma pessoa de se despedir do familiar querido? Carmen não conseguiu

A enfermeira Carmen Barreiro partilhou, na sua página de Facebook, esta e outras histórias de doentes que se sentiram abandonados pela família, desde que as visitas foram proibidas nos hospitais.

Os nomes são fictícios, para proteger a privacidade dos doentes.

A história que mais a marcou foi a de Carlos, um doente oncológico com cerca de 80 anos e um tumor na zona do pescoço. A massa não pára de crescer.

Depois de fazer uma traqueostomia, Carlos já não fala e come através de uma sonda. Tendo em conta os cuidados de que necessita e o prognóstico reservado, o homem terá de ficar no hospital – e nada garante que não venha a morrer no hospital também.

Com a suspensão das visitas, a perspetiva de morrer sozinho, numa cama de hospital, não é só possível, é altamente provável.

Há mais de um mês, a esposa de Carlos “furou” a segurança para tentar ver o marido uma última vez. Quando a viu a entrar pela enfermaria, acompanhada de uma vizinha, Carmen travou-a.

"Onde pensam que vão?", perguntou, indignada.

A senhora respondeu humildemente: "Venho despedir-me do meu marido. Sei que vai morrer e que nunca mais o vou ver. Por favor, deixe-me ao menos despedir-me."

“Apesar da proibição das visitas, não consegui dizer que não”, escreveu Carmen na sua publicação. Pediu que a vizinha não entrasse e deu uma máscara à mulher para possibilitar o encontro.

“Como podemos proibir uma pessoa de se despedir do familiar querido?", questiona, em conversa por videochamada com a Renascença. "Eu compreendo a impotência que devem sentir muitos familiares”, desabafa.

Por outro lado, a enfermeira reconhece que está em causa “uma situação excecional, que nunca aconteceu antes”. “Não temos ainda experiência suficiente para saber lidar com isto.

Questionado pela Renascença, o Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga explica que, "desde que não sejam positivos Covid-19, há a possibilidade de utentes em fim de vida (e analisando caso a caso pela equipa médica e de enfermagem) de receber visita familiar, obedecendo sempre a criteriosas regras e procedimentos de segurança".

Já depois da última visita, Carlos voltou a conseguir falar com os familiares, novamente com a ajuda de Carmen. Não pôde expressar-se por palavras, mas ouviu a voz da mulher e, com gestos, e a chorar em silêncio, pediu à enfermeira que lhe dissesse que está tudo bem.

"Enfermeira, muito obrigada. Hoje foi o dia mais feliz da minha vida. Não estava mesmo à espera", disse a esposa de Carlos à enfermeira, ao telefone.

Dias mais tarde, Carmen fez ainda uma videochamada para o filho do paciente, que fazia anos. “Foi muito emotivo”, conta a enfermeira. “O filho gostou muito.”


Resposta é dada pela solidariedade de pessoas e empresas

Depois da primeira publicação no Facebook, a caixa de mensagens de Carmen Barreiro encheu-se de pessoas a querer doar "tablets" ao hospital.

A primeira foi uma mulher, que disse que tinha gosto em oferecer dois aparelhos que eram dos filhos, mais auriculares.

“Achei suficiente ter dois 'tablets', um para cada serviço”, conta a enfermeira. Por isso, apelou a quem quisesse oferecer que os distribuíssem também por hospitais e lares próximos.

Esta é a forma que, atualmente, as unidades de saúde têm de conseguir este tipo de equipamentos, já que ainda não houve uma resposta oficial ao problema de comunicação com as famílias.

O Ministério da Saúde anunciou apenas que iriam ser distribuídos 108 "tablets" para as equipas hospitalares de cuidados paliativos de todo o país, uma doação da Fundação “la Caixa” e do BPI, no âmbito do Programa Humaniza – Apoio Integral a Pessoas com Doenças Avançadas.

Para os outros serviços, não há uma resposta. Ainda assim, vários privados mobilizaram-se para doar equipamentos.

Além dos dois "tablets" que Carmen conseguiu para o seu serviço, outros dois funcionários do CHEDV conseguiram garantir a doação de outros 14 "tablets" para vários outros serviços.

Fonte do hospital avança à Renascença que os "tablets" foram distribuídos por todos os serviços com internamento, "para que possa ser promovida a comunicação, adicionalmente, por videoconferência dos utentes com os seus familiares".

As iniciativas repetem-se um pouco por todo o país. O hospital São Francisco de Xavier, por exemplo, recebeu 10 "tablets" e 10 telemóveis doados pela Worten, por intermédio da página "SOS.Covid19.Portugal", uma iniciativa solidária de um grupo de cidadãos.

É assim que cada hospital arranja maneiras de lutar contra o isolamento dos seus doentes.


“Confiem em nós”

Carmen Barreiro compreende que esta situação não é fácil para o doente nem para as famílias. Mas deixa uma mensagem para aqueles que não conseguem estar com os entes queridos hospitalizados.

“Digo às famílias para confiarem em nós, que nós os cuidamos como se fossem da nossa família. Pelo menos eu cuido”, garante.

A enfermeira faz um esforço para que todos os pacientes consigam comunicar com as suas famílias, mas os turnos constantes de 12 horas, muitas vezes dias inteiros com o mesmo fato, esgotam-na física e emocionalmente.

Ainda assim, Carmen vê maior mérito nos profissionais mais "invisíveis" no serviço. “As assistentes operacionais são impecáveis, ganham uma miséria, um ordenado vergonhoso, e dão resposta mais do que nós.”

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  • Maria abreu
    22 mai, 2020 Porto 03:32
    "Sem visitas, doentes sentem-se abandonados ", esta foi a vossa reportagem a 22 de Abril em plena pandemia e confinamento. Justo, humano, o melhor dos nossos profissionais numa altura terrível e perigosa. O meu obrigada a todos. Não consigo entender é o que se está a passar agora. IPO Porto, paliativos ala sem covid e não autorizam visitas/acompanhamento dos familiares aos doentes terminais? (APENAS UMA VISITA DE HORA E MEIA POR SEMANA)? Não entendo a humanidade desta atitude. Perigo de infecção? Fazer um teste antes de entrar o familiar e não deixar que os nossos entes partam sozinhos.

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