20 jun, 2017 - 08:13 • João Carlos Malta
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O almoço acabara e, como é normal, para ela e para a maior parte da população de Escalos Fundeiros, o hábito manda tirar uma soneca de hora, hora e picos. Quase todos os 40 que vivem nesta pequena aldeia de Pedrógão Grande têm mais de 60 anos. A idade e o calor não perdoam. Mas no sábado todos saíram mais rápido das camas.
O chilrear dos pássaros foi substituído pelo metálico e ululante som das aeronaves. Pouco depois eram já as sirenes dos carros dos bombeiros. Instalou-se a aflição total na aldeia. Cristina Rodrigues, de 62 anos, ainda tem as marcas no corpo dessa desorientação. Partiu a cabeça, esfolou o joelho.
Mas não era com ela que estava preocupada. Era com o marido, cego e com cinco AVC no corpo. Não parou para trás e para a frente. Primeiro: pôr o companheiro em segurança. Ela que mora na parte de baixo da povoação teve de subir até lá acima para o deixar na associação da terra. E depois descer. Tinha que proteger a casa. Foi muita coisa ao mesmo tempo.
“Aquilo começou ali por detrás e depois foi uma coisa por demais. Eu e estas vizinhas, que são todas velhotas, estávamos todos a tentar ajudar”, conta Cristina. Felizmente, essa solidariedade chegou para que ninguém perdesse mais do que uns montes ardidos ou uns barracos.
São os únicos prejuízos no local em que a PJ acredita que começou o incêndio, graças a uma trovoada seca, que devastou tudo o que lhe apareceu pela frente: aldeias, casas, carros, terrenos, animais. E vidas humanas, 64, segundo o balanço oficial divulgado pelas 20h09 de segunda-feira, dia 19 e segundo dia de luto nacional.
Foi aqui que começou a tragédia, mas em Escalos Fundeiros ainda se vê algum verde, ao contrário das povoações por onde o fogo, já com mais combustível, arrasou tudo por onde passou. Uma constatação que valida aquilo que muitos peritos dizem: a de que a zona onde começa o fogo não é a mais afectada.
Ciência e suspeitas
Se a Judiciária garante que se baseia em critérios científicos para dizer que não houve mão criminosa nesta tragédia, em Escalos Fundeiros a ciência levanta muitas dúvidas.
“Queria desmentir o que a comunicação social diz acerca da tempestade. Não houve relâmpago, quando já tinha ardido tudo é que vieram os relâmpagos. Hoje, houve relâmpagos bem maiores. Havia fogo por todo o lado. Era ali em cima, era em baixo, à frente. Tudo no espaço de minutos. Questionem o que andavam a fazer três avionetas na sexta-feira. Toda a gente as viu”, suspeita Vanda, de 48 anos.
Não é a única que duvida da primeira tese oficial. Muitos dos que ali se cruzam com um carro de um meio de comunicação social pedem para parar. E todos dizem mais ou menos o mesmo: “Não acredite no que eles dizem, isto foi mão criminosa.”
No entanto, há também pessoas como Luís Filipe, de 58 anos, que vive em Lisboa, mas tem a mãe de 85 anos e o filho de 26 a morarem em Escalos Fundeiros, a alertar para os mitos das avionetas que sempre correram na região.
Facto é que esta terça-feira os inspectores do Laboratório da Polícia Científica, depois de a GNR ter vedado o local durante todo o dia, tinham como missão fazer nova inspecção ao terreno. E todos os dados recolhidos pelas autoridades apontam para que não haja origem dolosa, tal como o director nacional da PJ, Almeida Rodrigues avançou no dia seguinte à tragédia.
Sozinha sem se poder mover
Vanda está agora ao lado da mãe, mas quando tudo aconteceu não conseguiu chegar até ela. Alcina, de 74 anos, fora operada há pouco tempo e não conseguia sair de casa. No entanto, o nervosismo fê-la subir e descer escadas. O joelho é que as pagou.
“Estive sempre sozinha. A minha filha não podia vir porque estava lá em baixo a cuidar do que é dela. Andava a subir e a descer as escadas, mas sem poder. Não podia ir para lado nenhum. Era meia-noite e ainda andava tudo a arder. Metia medo, íamos à casa-de-banho e via-se as labaredas”, conta a septuagenária.
A filha ouve-a e interrompe. A memória ainda muito vivida da noite de sábado começa a falar. “Só se ouviam os eucaliptos. Veio como uma força tal que ficámos debaixo de fogo-de-artifício. As chamas eram tantas que tínhamos as chamas por cima de nós. Isto não teve explicação. Nunca se sentiu tanto medo. Parecia que tinham lançado pólvora pela terra”.
Luís Filipe já tinha confidenciado que ali toda a gente dorme com a ideia de que um fogo pode vir a qualquer momento – “quando se nasce aqui está-se habituado”. Mas se em mais de 50 anos já viveu muitos fogos, apenas o de 1991 se assemelha a este. A mesma ideia é repetida por todos na aldeia.
“Há sempre o drama do fogo. O último grande fogo tem 26 anos. Foi relâmpago como este na velocidade, veio de nordeste e limpou esta zona toda. Foi um fósforo autêntico. Mas, ao contrário do que aconteceu agora, não houve vítimas”, recorda.
Luís foi um dos muitos que arrancou de longe para vir socorrer a família. Soube por uma rede social de que estava tudo a arder à volta da aldeia da mãe e do filho. Veio num tiro. Saiu de Lisboa e pouco depois estava no centro da acção.
Veio a comandar as decisões da família pelo telemóvel. Disse aos familiares: saiam de casa, vão para o centro de Pedrógão Grande. Luís teve dificuldades, passou por aflições, o carro não passou em alguns lados. Mas chegou e ainda bem, diz ele. “Quando éramos mais novos, os jovens eram muito solidários. Não digo que agora não sejam, mas não há população que chegue. Quando houve um reacendimento mais à noite, tive de pegar no carro e ir à procura de ajuda.”
O que fazer à terra
Luís Filipe elogia os bombeiros. Há muitos que os atacam na aldeia, por se sentirem desprotegidos face às chamas, mas ele não personaliza a gratidão.
“O senhor Alcino e os colegas [bombeiros de Pedrógão Grande] foram muito zelosos. Quando eles vieram estava o fogo a entrar nos barracões. Chegaram mesmo no momento certo. O estarmos cá salvou casas e barracões porque tínhamos meios [carros] disponíveis para ir chamar ajuda”, enfatiza.
As conversas sobre o que poderia evitar a catástrofe acabam sempre por desembocar na limpeza das matas e no emparcelamento do terreno. O mesmo Luís, quando questionado sobre o tema, desenvolve a teoria.
“É uma situação difícil e urgente de resolver. Vivemos numa zona
de pequenas parcelas, fala-se muito do emparcelamento, mas não sei. No passado,
havia gado e roçava-se o mato porque servia de fertilização para as terras. Com
a redução do número de pessoas, não há culturas, vemos as florestas ao
abandono. Depois, quem é o dono dos terrenos? Se for o Estado a mandar e a
ficar com os terrenos vai haver mais segurança e fiscalização?”, questiona.
A mãe Maria da Conceição, de 85 anos, assiste à conversa na parte de cima da casa, que há dois dias teve fogo a menos de 10 metros. Pouco depois diz: “Dava-me pena a casa. Quando estava em Pedrógão depois de fugir, só pensava que quando chegássemos a casa íamos ver tudo queimado. Mas, por Deus, o fogo não veio”.
A comadre Maria Alzira, que mora umas casas acima, não tem medo de dizer que teve medo. E muito. “O fumo era imenso, mal respirávamos. Nem me quero lembrar. Mas nos Troviscais [povoação nas imediações] ainda foi pior”, relativiza.
O receio é algo que anda colado a quem mora com hectares e hectares de mato à volta. “Andava sempre a pensar que ele ia voltar a passar.” Ele é o fogo, que de tão familiar já nem é tratado pelo nome.
“Está tudo cheio de silvas, mata e sucata. Há pouca gente para limpar, mas mesmo os que cá estão fazem o mesmo. Se calhar eu quando deixar de poder também deixo”, desabafa.
O bom inglês
Quem tem toda a terra arada e plantada é Tony Plat, um inglês de 57 anos. Não é o único estrangeiro a morar ali. Serafim, um vizinho, diz que ainda bem que assim é já que os portugueses não querem nada com o interior.
À volta do terreno de Plat, onde há uma vivenda generosa e um campo enorme com árvores, está tudo queimado. A propriedade onde vive há seis anos está intacta. No local, o verde e o preto têm uma linha demarcada entre a terra tratada e cuidada e a terra ao abandono.
Tony conta que no sábado tinha saído de casa para ver alguns amigos, mas ao ver fumo regressou de imediato. Demorou 20 minutos a voltar. “Já se podia ver o barulho do fogo. Numa hora estava aqui. Foi muito rápido e extenso”, recorda.
Quanto às teses sobre a origem do fogo é sintético: “Não vi nada”. Mas adiciona um dado: “A minha electricidade foi abaixo uma hora antes, o que costuma ser uma indicação de trovões. E houve uma tempestade.”
Lembra-se do som e do fumo, tudo “horrível”. “Estou cá seis anos e este foi um dos nossos piores pesadelos a tornar-se realidade. Nunca vi nada como isto.”
Tony adora viver na aldeia, mas sabe que, “obviamente, este é um dos riscos do centro de Portugal”. “Esperamos que nunca aconteça, mas aconteceu”, afirma de forma pragmática.
Não pensa em sair da casa que ama e revela o sentimento de pertença. “Já ardeu tudo, pelo que acho que não vai voltar a acontecer. Por isso, não vejo um problema. Portugal é incrível, esta já é a nossa casa. Penso que não demorará muito a recuperar”, afirma.
“Tive muita sorte. Estou cá, a minha casa também, e muitos não estão.”