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Argentina

Um ano de Milei. O presidente argentino que falava "com o espírito de cães” já conseguiu um milagre económico?

10 dez, 2024 - 06:30 • Alexandre Abrantes Neves

As políticas liberais de Milei permitiram uma descida da inflação para os números mais baixos dos três últimos anos, mas a pobreza galopou e já ultrapassa os 50%. Ainda assim, os níveis de popularidade não desceram - graças ao reforço do policiamento nas ruas - e, no parlamento, Milei até tem convencido a oposição.

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Há precisamente um ano, Javier Milei, economista e “anarcocapitalista” assumido, entrava pela Casa Rosada, o palácio presidencial da Argentina, envolto em polémica.

Durante a campanha eleitoral, abriu telejornais com medidas controversas, como a liberalização do mercado das armas de fogo, a venda de órgãos humanos, a criminalização do aborto, a negação das alterações climáticas - ou até por dizer que falava com o espírito de um cão seu já morto (o assunto acabou encerrado a sete chaves pela equipa do presidente).

Mas no cardápio que o fez ser eleito à segunda volta com mais de 55% dos votos, Milei deu grande destaque às promessas de um “milagre económico”, que salvariam a Argentina da crise económica que está mergulhada há décadas.

Defensor de uma política liberal, o presidente argentino tem marcado passo da política de centro-esquerda do Peronismo (corrente política que governou a maioria dos anos na Argentina desde a queda da ditadura militar em 1973) dos últimos anos. No último ano, aprovou medidas como o corte de funcionários públicos, o fim de subsídios para eletricidade, gás e água ou a redução do pacote de obras públicas.

Um emagrecimento profundo do Estado – pelo qual tem um “desprezo infinito” – em todos os setores e que trouxe os resultados macroeconómicos que Milei desejava. Apesar de continuar nos 193% ao ano, a inflação em cadeia desceu para os 2,7% em outubro, o valor mais baixo desde 2021. Também em outubro, o país registou, pelo 10.º mês consecutivo, um excedente orçamental, e a balança comercial também está pintada de verde, graças ao aumento das exportações no setor automóvel e da petroquímica.

Os números macroeconómicos deixam o setor financeiro de sorriso no rosto (o índice de risco, calculado a partir da dívida norte-americana, desceu dos 25% e dos 7,84%), mas a população não respirou de alívio. À política de corte nos serviços públicos como a saúde e a educação, junta-se o poder de compra que continua em níveis muito baixos: desde a tomada de posse de Milei, a taxa de pobreza aumentou 11 pontos percentuais e chegou aos 53%.

Em declarações à Renascença, Marcelo Moriconi, investigador do ISCTE em política da América Latina, aponta que “o tema da pobreza não é uma variável para Milei” – até porque também aqui o presidente culpa o Estado pelos baixos rendimentos.

“Milei entende que não há trabalho, porque a Argentina não cresce e, por isso, há menos empresas. Ele é um fundamentalista do mercado. (…) O Estado não pode continuar a significar o gasto que significa para o povo, através dos impostos. (…) Esta é a lógica do Milei: pagar impostos é de ladrão, o Estado é um ladrão”, assinala.

Ainda na área económica, tanto a extinção do Banco Central da Argentina como a dolarização da economia continuam por concretizar. Na perspetiva de Marcelo Moriconi, é “normal” que existam medidas que não saíram ainda do papel: “ele também não pode ser o presidente mais produtivo da história da Humanidade”, sublinha, entre risos.

Este especialista assinala, no entanto, que a Argentina já assiste há muito tempo a uma “dolarização informal” da economia, até porque a valorização do peso depende sempre da moeda norte-americana. “O peso não vai desaparecer”, clarifica, para explicar o que acontece no país que o viu nascer: “As pessoas já utilizam muito o dólar, para comparar preços (…). Com a chegada do Milei, vimos foi ser formalizado de alguma forma. Por exemplo, em contratos de aluguer, agora pode-se pagar em dólares”.

Equação simples. Mais polícia é mais popularidade

Nancy Gomes, doutorada em Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa, acrescenta que estas políticas terão “um custo social elevado”, o que pode levar a pressão por parte dos sindicatos e dos partidos à esquerda.

Esta especialista deixa, no entanto, a ressalva de que os índices de popularidade ainda não tremeram. Em parte, porque há esperança na “política diferente” de Milei – mas também porque, acrescenta Marcelo Moriconi, aumentou a perceção de medidas contra a corrupção e, principalmente, de segurança e de ordem nas ruas.

“Antes havia muitas ruas cortadas, muitas greves, gente que impedia a circulação nas ruas – desordem social. Milei proibiu isso. Podes manifestar-te, mas não podes cortar nenhuma rua, senão chega a polícia. Um grande setor popular vê Milei com bons olhos por esta ordem que trouxe à vida cívica”, esclarece.

Ainda assim, a visão na Argentina não é a de que haja uma limitação de direitos ou da liberdade de expressão, até porque Milei “tem respeitado as instituições e o parlamento e o senado continuam a funcionar de forma constitucional”.

Nancy Gomes e Marcelo Moriconi concordam, por isso, que o medo de um impulso antidemocrático no país está, por enquanto, afastado – e que isso também explica os consensos que Milei tem conseguido no Congresso, onde não tem a maioria dos deputados.

“Ele vai compreendo as regras do sistema político”, acredita Nancy Gomes, que recorda uma das grandes narrativas de Milei quando se candidatou: a do confronto e derrota das “castas políticas adversárias”.

“Vai procurando nessas castas, vai criando pactos, úteis para a governação que ele ainda precisa de consolidar”, tal como fez em maio deste ano para conseguir fazer passar a Lei de Bases no congresso argentino (ainda que numa versão já alterada, em que teve de desistir de cerca de dois terços das propostas para tirar poder ao Estado).

Trump e Milei, amigos para sempre?

A nível internacional, Marcelo Moriconi também acredita que há temas que não vão passar do “nível discursivo e de publicidade” de Milei. O principal é mesmo o acordo de livre comércio que a Argentina quer firmar com os Estados Unidos da América (EUA) – mas que, a avançar, deve acabar travado: “um acordo bilateral exige unanimidade dos países do Mercosul e há uma frente de esquerda a dominá-lo”.

Ainda assim, este especialista assinala que a relação próxima com Donald Trump – que já classificou Milei como o seu “presidente favorito” da América Latina – pode trazer problemas à Argentina. Porquê? Pequim pode não gostar e a China é uma importante peça nas exportações daquela zona do globo.

“Este acordo é uma estratégia dos EUA e pode abrir as portas a mais investimento norte-americano na Argentina e Milei tem um objetivo económico. (…) Mas Milei tem sido muito pragmático. Ele mostra ódio ao comunismo e à China nos discursos, mas tem sido muito inteligente em evitar conflitos diplomáticos. Teremos de ver como é que vai jogar agora com a China”, antecipa.

Na leitura de Nancy Gomes, será também interessante olhar para a influência de Milei na América do Sul.

Esta académica considera que, se o milagre económico de Milei e a melhoria das condições de vida se concretizarem, pode haver novos movimentos migratórios – nomeadamente vindos da Venezuela e do México, onde o tradicional destino dos EUA (com uma política de imigração apertada por Trump) pode ser substituído pela Argentina.

Mas, para Nancy Gomes, o efeito mais visível de um primeiro mandato que “deixou a população satisfeita” será o efeito de arrasto para os países perto da Argentina.

“A verdade é que ele conseguiu conquistar um eleitorado jovem, masculino. No Brasil, porque não pensar em alguma força que é dada a Bolsonaro? Ele também aparece como um outsider, um exemplo messiânico. O Milei também cada vez mais faz referência à Bíblia e assume-se como um libertário em todo o sentido da palavra”, remata.

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