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Ricardo Ferreira Reis

Assad caiu na Síria, e agora? "As peças do dominó vão caindo e podem chegar a Teerão"

09 dez, 2024 - 11:15 • André Rodrigues

Comentador Ricardo Ferreira Reis sublinha papel decisivo das monarquias do Golfo para evitar que a Síria volte a mergulhar no extremismo violento.

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Em entrevista à Renascença, no dia seguinte à queda da dinastia Assad - que durante mais de meio século governou a Síria - Ricardo Ferreira Reis, especialista em assuntos internacionais, defende que o Irão e a Rússia são os grandes derrotados com a queda do regime de Damasco. "Há ali a possibilidade de conseguirmos alguma perspetiva de paz nos próximos tempos, o que seria uma surpresa muito agradável para o mundo, que está a precisar destas boas notícias", diz. Mas alerta que o futuro é uma carta fechada e cheia de interrogações.

A queda de Bashar al-Assad representa, apenas, o fim da guerra civil. Ou é mais do que isso?

Parece ser mais do que isso. É um episódio, eu diria, insólito, porque o grupo que derruba Bashar al-Assad nem é o maior da resistência ao regime; acaba por ser um grupo mais pequeno que toma o poder, muito oportunisticamente, aproveitando-se do menor apoio russo, da fraqueza do Hezbollah e da ausência do Irão no apoio ao regime. E, portanto, há um vazio que é ocupado por estas forças da resistência e, portanto, parece um episódio muito esporádico, mas que acaba por ter repercussões muito grandes em todo o mundo e em todos conflitos a que estamos a assistir nesta altura. Por isso é que eu digo que, claramente, isto é algo bastante mais complexo do que simplesmente o fim de um regime que caiu no vazio.

Falou no Irão e na Rússia. São os perdedores deste processo?

Claramente. Para além do próprio Assad, como é evidente. Começando pelo Irão: tem uma situação de enorme fragilidade no Líbano, porque o maior aliado de Teerão pôs-se a atacar Israel em conjunto com o Hamas, logo a seguir à ação terrorista de 7 de outubro do ano passado. Portanto, o Irão envolveu-se em conflitos e tem uma fragilidade interna bastante grande.

Pode ser o próximo regime a cair na região?

É exatamente aí que eu quero chegar. O Irão precisa desta visibilidade internacional, de ter conflitos para criar inimigos externos para, de certa forma, arregimentar os apoiantes do regime internamente. E isto correu muito mal no Líbano e correu muitíssimo mal na Síria. Portanto, as peças do dominó vão caindo e podem chegar a Teerão agora. É e tem uma implicação geopolítica regional bastante importante porque, caindo o Irão, a situação, altera-se bastante naquela região. Quanto à Rússia, tinha apoiado o regime de Bashar al Assad, aproveitava a Síria para algumas experiências militares.

De certa forma, isto servia para que os recursos de guerra russos fossem desviados para a Síria, numa altura em que eles são todos necessários na Ucrânia. Portanto, nesta altura, a Rússia não pode dar-se ao luxo de ter outros conflitos. Isto também indicia que nem aqueles grupos como o Grupo Wagner e mais um conjunto de de mercenários que apoiavam a Rússia, têm função ou utilidade em conflitos regionais fora da Ucrânia. Portanto, há uma situação perigosa também na Rússia e, sobretudo em termos de propaganda, que é uma das cartas principais de Putin. Neste caso, é uma carta péssima para ser jogada.

Regionalmente, há um terceiro ator que perde em larga medida: o Hezbollah que, a partir do Líbano, atacava Israel, com o apoio, sobretudo, do Irão através da Síria. Portanto, abre-se uma oportunidade para um equilíbrio de forças naquela região.

E os vencedores do fim da era Assad, quem são?

Desde logo, Israel. O que parecia uma coisa impossível de conseguir, a determinada altura. Aliás, achou-se que o que Israel estava a fazer - aniquilar completamente a Faixa de Gaza e não apenas o Hamas – era a prova de que era impossível ganhar uma guerra destas. Com a entrada em cena de uma frente norte do Hezbollah, a partir do Líbano - que Israel basicamente aniquilou rapidamente – há um conjunto de vitórias que mostram que é possível Israel mudar a situação naquela zona.

O que aconteceu ontem foi que Israel aproveitou imediatamente para arrumar a casa ali ao lado, ocupando de novo os Montes Golã, que estavam desmilitarizados, atacando uma fábrica de armamento químico na Síria. E, juntamente com os Estados Unidos, aproveitou para atacar bases do Estado Islâmico dentro da Síria.

Depois, a Turquia, que tem uma posição um bocado ambígua em relação àquela situação e não era muito adepta de Bashar al-Assad. Agora, tem a oportunidade de resolver os seus problemas no Curdistão e ter um regime que possa, a partir da Síria, também controlar um pouco mais a situação naquela zona perigosa para a Turquia, que é a sua fronteira sul.

Há uma incógnita grande para as monarquias do Golfo, que vão entrar num período curioso com administração Trump. Aquilo que a administração Trump I conseguiu fazer, e muito bem, foram os acordos de Abraão, que trazem a Arábia Saudita e as monarquias do Golfo mais para dentro da esfera de influência do Ocidente, inclusivamente com alianças em relação a Israel.

Ou seja, não numa perspetiva de ficarem todos juntos, mas para, de certa forma, haver uma posição desses países que era antagónica em relação a Israel e que passe para alguma neutralidade e para uma disponibilidade de ajudar à paz.

A dúvida que existe, nesta altura, é sobre como vão reagir estes países à situação da Síria, se vão conseguir que o regime que agora se inicia seja próximo desses dessas monarquias – o que é bastante provável acontecer – ou se se vão tentar ocupar o vazio deixado pelo Irão neste contexto, o que eu acho improvável de acontecer.

Eu acho que há ali a possibilidade de conseguirmos alguma perspetiva de paz nos próximos tempos, o que seria uma surpresa muito agradável para o mundo, que está a precisar destas boas notícias.

Mas quem é que manda agora na Síria? Quem são estes rebeldes? E já agora, duas perguntas numa: qual é o risco da Síria sair de mais de 50 anos de uma dinastia sanguinária – a Dinastia Assad - e poder, eventualmente, correr o risco de mergulhar num futuro e pouco melhor do que este?

O risco é idêntico àquilo que aconteceu na Líbia, embora pareça haver algumas diferenças, que são consideráveis em relação àquilo que aconteceu na Líbia. Desde logo, a saída do ditador, que não aconteceu na Líbia. Kadhafi ficou e, depois, foi morto pelos rebeldes. Bashar al-Assad percebeu e aprendeu essa lição, pelo menos. E também tinha outra dimensão que não existia na Líbia: o apoio bastante explícito da Rússia, que, aliás, permitiu-lhe sair para a Rússia. Kadhafi também não teve isso na Líbia.

O risco na Síria é o de cairmos num ‘Não Estado’, numa situação de conflito permanente, o que seria muito grave numa zona muito perigosa do globo. Não que na Líbia isso não seja um perigo. Aliás, nós sofremos no Mediterrâneo as consequências da não existência de um Estado líbio, porque é uma zona de entrada de refugiados no Mediterrâneo. Há uma situação idêntica na Síria, que permitiria a entrada de refugiados na Turquia e o tráfico humano em larga escala, semelhante à vaga que tivemos de refugiados e que acabaram, em grande parte na Alemanha. Basta ver, aliás, as imagens da Alemanha que eram bastante eloquentes da quantidade de sírios que se refugiaram nesse país. Portanto, desde logo, esse risco existe e as redes de tráfico humano terão interesse em promover. Há um conjunto de fações associadas a tráfico humano, tráfico de opiáceos e de outras mercadorias que podem também influenciar a existência de um regime cleptocrático, muito pouco recomendável neste contexto e, no limite, a perpetuação de uma guerra civil.

Por outro lado, há uma dimensão religiosa: temos o Irão com os xiitas, os sunitas. Mas a temos ainda a presença dos Curdos, de cristãos, ainda que em menor número. E, depois, temos questões puramente tribais, absolutamente divisivas, que nos remetem para uma espécie de Lawrence da Arábia e para a necessidade de unificação em torno de uma de uma figura.

Mas existe, efetivamente, o risco desta coligação de fações semear o caos na Síria, podendo esse fator ser aproveitado para trazer de volta o fantasma do terrorismo e, em particular, o regresso do Estado Islâmico?

Essa parece ter sido a principal preocupação do dia de ontem, nomeadamente da administração Biden: quem é este grupo que, aparentemente, não é o principal opositor ao regime. Embora, de certa maneira, seja um descendente da resistência, porque há pouca diferença nesse contexto. Este grupo tem no currículo um conjunto de ligações que não abonam muito a favor. Eles são mujahideen, lutadores pela liberdade como no tempo do Afeganistão. E eu não usei termo inocentemente, porque os mujahideen deram origem a grupos mais fundamentalistas e mais islamistas, depois de se libertarem da União Soviética, no Afeganistão. Portanto, é uma coisa semelhante, mas que parece ter sido apanhada ainda a montante. Portanto, ainda é moldável e, de certa maneira, pode ser aproveitado para não deixar cair nestas tendências extremistas.

Mas é preciso ter cuidado com o papel que Israel vai ter. Não pode ser um grupo que a população e sobretudo a chamada ‘Rua Árabe’ associe a Israel e não demasiado ao Ocidente. E aqui, volto à minha questão original das monarquias do Golfo: é a oportunidade que esses países têm para que este movimento seja algo que não se converta numa ditadura extremista, terrorista, que faça da propaganda anti Israel e anti Ocidente a sua principal bandeira. E que seja verdadeiramente um fator de promoção da paz e da e do desenvolvimento de um país que tem bastantes potencialidades a toda em todas as dimensões.

Ontem, eu estava a ver as imagens da população a celebrar com muita alegria. E há uma coisa que é demonstradora da situação em que vivia aquela população: as fronteiras estavam cheias de gente a voltarem ao país. Portanto, estes movimentos demográficos são indícios daquilo que está a acontecer e do que estava a acontecer. As pessoas tinham fugido do regime e, portanto, assim que caiu o regime, regressaram à Síria. Portanto, aquilo não é a resistência. A saída da Síria não era uma questão económica, não era uma questão e ambiental, não era uma questão de mais nada: enquanto aquele regime existisse, eles estavam fora.

E note uma coisa: a situação é de enorme instabilidade e as pessoas estão a voltar, o que é uma coisa que nos deixa bastante otimistas em relação a estes movimentos. Isto é tudo representante de uma situação em que a população quer, de facto, que haja estabilidade e que haja mudança e que tem a expectativa de que as coisas possam correr bem agora, porque preferem sair dos países onde estão para voltarem para um país que está numa enorme instabilidade e vêm para ajudar e isso é um ótimo sinal. Assim consigam manter-se em paz e esse será o grande desafio nesta zona bastante conturbada.

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