07 nov, 2024 - 21:00 • Salomé Esteves
Donald Trump venceu esta semana as eleições presidenciais nos Estados Unidos. Na terceira candidatura consecutiva, foi a segunda vez que venceu uma mulher democrata. Para Maria Luísa Moreira, fundadora do The Gender Diplomat, os resultados desta semana comprovam que “a política ainda é um jogo de homens” e que “o sexismo e o racismo estão super entrelaçados na cultura, na sociedade e na política”, mesmo que o género não tenha sido, forçosamente, o que custou a Kamala Harris a presidência.
Apesar de os atos eleitorais se separarem por oito anos, Hillary Clinton e Kamala Harris foram duas candidatas muito diferentes, com programas distintos e em circunstâncias em muito pouco semelhantes.
Enquanto em 2016, a campanha de Clinton se centrava em mensagens onde o género era reforçado, Kamala afastou-se dessa estratégia, tornando questões inerentemente femininas como pilar do seu discurso. Há oito anos, a campanha democrata fez-se com slogans como “Eu estou com ela” (I’m with her) e “O futuro é feminino” (The Future is Female) e se multiplicavam os discursos sobre como “destruir os telhados de vidro” (“break the glass ceiling”). Em 2024, nos três meses em que foi candidata, Kamala trouxe os direitos reprodutivos e o aborto para o centro da discussão.
Maria Luísa Moreira, analista e consultora em geopolítica, paz e segurança internacional, acredita que Kamala Harris aprendeu com Hillary Clinton e “não focou a sua campanha na sua identidade, que aqui, seria ainda mais histórico”. Afinal, a vice-presidente “não é uma mulher branca e privilegiada”.
“Kamala Harris aprende com Hillary Clinton e não foca a sua campanha na sua identidade, que aqui, seria ainda mais histórico”
Contudo, a questão do género foi trazida para a campanha de 2024, pelo lado dos republicanos, refere Maria Luísa Moreira, para “tirar alguma credibilidade” à candidata, recordando o momento em que um apoiante de Trump gritou que Kamala “trabalhava numa esquina”. A insinuação mereceu risos por parte do agora Presidente reeleito, seguido do comentário: “este lugar é incrível”.
No final de outubro, Donald Trump chegou a insultar ambas as oponentes ao dizer, num comício, que Kamala Harris “é uma verdadeira mentirosa. É pior que a ‘crooked’ [desonesta] Hillary”.
Para a especialista em política internacional, o discurso sexista e, no caso de Kamala, racista “é uma arma que resulta quando estamos a falar de um eleitorado muito polarizado e de uma campanha altamente masculina por parte de Trump”.
Enquanto Kamala Harris se fez acompanhar por mulheres como Oprah Winfrey, Michele Obama e Beyoncé, Trump elevou aos seus palcos Elon Musk, Joe Rogan e Hulk Hogan.
Segundo uma análise do Vox, Donald Trump direcionou a sua campanha para “homens jovens de todas as etnias” e “homens sem educação superior”, que, historicamente, “têm estado entre os grupos mais difíceis de mobilizar”. Enquanto Biden tinha aumentado a percentagem de homens votantes, em 2020, Trump “ganhou os homens de volta”.
Mas, apesar de a abordagem que tomaram na candidatura, “o resultado foi o mesmo”, aponta Martha McKenna, consultora política democrática, ao site POLITICO. Isto, em termos do colégio eleitoral, porque, ao passo que Hillary Clinton conquistou o voto popular e superou Trump por mais de três milhões de votos, Kamala Harris está a perder por cerca de quatro milhões. Até ao momento, ainda estão a decorrer contagens de votos em vários estados.
Nos oito anos que separam as duas eleições, aconteceram vários fenómenos de género e referentes aos direitos das mulheres que abalaram a política norte-americana.
Imediatamente após Hillary Clinton ter perdido, em 2016, sucederam-se várias marchas com milhares de mulheres. Pela mesma altura, eclodiu o movimento #meToo, que trouxe a público acusações de abuso sexual por diversas figuras públicas e de poder.
Brett Kavanaugh, agora juiz do Supremo Tribunal, foi um dos homens contra quem surgiram acusações. A própria Kalama Harris interrogou-o sobre esse assunto (e sobre a sua posição sobre o aborto) no interrogatório preliminar à sua tomada de posse no Supremo. Já em 2022, deu-se a reversão do Roe vs. Wade, a legislação que protegia o acesso das mulheres à interrupção da gravidez.
Em entrevista ao POLITICO, Patti Solis Doyle, responsável pela campanha eleitoral de Hillary Clinton em 2008, diz que “o país ainda é sexista e não está preparado para ter uma mulher Presidente”. A esperança, acrescenta, era que Kamala tivesse melhores resultados do que Clinton, nas duas eleições. “Mas ficamos mais longe”, lamenta.
No mesmo artigo, a especialista em sondagens Angie Kuefler reforça que a campanha eleitoral de Trump usa as diferenças de género “explicitamente” e que se centra “numa masculinidade tradicional”.
Kuefler acrescenta que "não queremos dizê-lo publicamente, mas uma mulher não consegue ser eleita”. Afinal, Kamala Harris caiu no voto feminino, face tanto a Joe Biden como a Hillary Clinton, além de não ter conquistado o voto masculino que reforçou a eleição de Trump.
"Uma mulher não consegue ser eleita”
Na mesma eleição em que se votava para a presidência, 10 estados incluíram uma questão sobre o direito ao aborto nos seus boletins. Em sete desses (Arizona, Colorado, Nova Iorque, Maryland, Missouri, Montana e Nevada), os eleitores decidiram, por maioria, assegurar a integração do direito ao aborto nas suas constituições estaduais.
Ainda que as contagens não tenham fechado em todos estes estados, no Arizona, Colorado, Missouri, Montana e Nevada, Donald Trump lidera. Assim, há eleitores de Trump que também votaram em favor do direito ao aborto, uma das grandes bandeiras de Kamala Harris.
Para Maria Luísa Moreira, o uso da saúde reprodutiva e sexual como principal bandeira pela campanha de Kamala Harris pode não ter sido a melhor estratégia. Saída de uma administração “com uma taxa de aprovação baixíssima”, a candidata democrata “procurou sempre esta via da saúde sexual e reprodutiva achando que seria suficiente para captar mulheres, mulheres do partido republicano, dos subúrbios”, mas, acrescenta, “tal não se verificou”.
A analista acredita que há um desfasamento entre o tempo e recursos dedicados pela campanha de Kamala Harris a direitos das mulheres e aborto em detrimento de “questões como economia, inflação e segurança”, que surgem como mais relevantes para grande parte do eleitorado.
Em três meses de campanha, defende Maria Luísa Moreira, a vice-presidente dos Estados Unidos não conseguiu distanciar-se do programa político da sua administração nem “clarificar as suas posições”. Por consequência, acabou por não conseguir “a ambição de conquistar as mulheres republicanas”, ao mesmo tempo que perdeu terreno entre as mulheres brancas.
Ao eleger de novo Donald Trump, os Estados Unidos continuam a nunca ter elegido uma mulher para o cargo de Presidente. Mais de metade dos países do mundo já foram liderados por uma mulher. De acordo com uma análise do Washington Post, foram 175 as mulheres que asseguraram as posições de governo mais altas num total de 87 países. Entre as 20 principais economias do mundo, apenas sete nunca tiveram uma mulher num cargo de poder, e os EUA são um desses países.
Em Portugal, uma mulher é identificada neste grupo: Maria de Lurdes Pintassilgo. Em 1979, o então Presidente da República, Ramalho Eanes, nomeou Pintassilgo para o cargo de primeira-ministra, que ocupou durante seis meses. Mas, como nenhuma outra mulher em Portugal, não foi eleita para ocupar essa posição. De facto, a primeira mulher portuguesa a vencer uma eleição foi Marta Temido, quando o Partido Socialista venceu as eleições europeias de 2024.