Siga-nos no Whatsapp

Perfil

“Eu estou a falar”. Kamala Harris em quatro frases que estalaram o telhado de vidro

05 nov, 2024 - 21:00 • Salomé Esteves

Kamala Harris desistiu da corrida presidencial em 2019, assumiu timidamente o cargo de vice-presidente em 2020 e, em 2024, enfrentou três meses de campanha eleitoral com um sorriso, face ao homem que “foi despedido por 81 mil pessoas”. Entre interrogatórios memoráveis, direitos reprodutivos, a segunda emenda e a uma pizza de anchovas, como se escreve a história daquela que pode ser a primeira mulher Presidente dos EUA?

A+ / A-

A frase “partir telhado de vidro” chegou aos ouvidos do mundo em 2016, quando Hillary Clinton estava a caminho de uma vitória histórica que acabou por não acontecer. Oito anos depois, é Kamala Harris quem o pode fazer, depois de três meses de campanha, mais de 20 anos de carreira e da “maior reviravolta de estado de espírito da história política contemporânea”.

Mas o que define Kamala Harris, que pode ser a primeira mulher Presidente dos Estados Unidos da América?

Quando assumiu a candidatura à presidência, Kamala Harris herdou toda a estrutura de campanha que já tinha sido preparada para tentar reeleger Joe Biden. Mas, quando o atual presidente dos EUA abandonou a corrida depois de um primeiro debate “desastroso” contra Trump, a nova campanha tinha de ser rápida e eficaz, para garantir uma possível vitória do partido Democrata.

Na primeira semana, a campanha eleitoral de Harris angariou cerca de 200 milhões de dólares. Aliás, o primeiro dia dessa campanha foram as 24 horas mais lucrativas de sempre para um candidato presidencial nos Estados Unidos.

Os democratas foram rápidos a encontrar o foco da campanha da atual vice-presidente, depois de Biden ter concedido a não prosseguir com a candidatura. Depois do candidato a quem muitos apontavam a idade avançada, a candidatura de Harris definiu-se em três pontos centrais.

A disputa entre Kamala Harris e Donald Trump passou a definir-se como o confronto entre a procuradora e o criminoso condenado; a defensora dos direitos reprodutivos e o ex-presidente que reverteu Roe vs. Wade; uma democrata progressista jovem e um velho republicano.

Como se lê na revista Time, a 12 de agosto: “Harris conseguiu a maior reviravolta de estado de espírito da história política contemporânea”. Já o francês Le Monde diz que a candidata conseguiu “uma extraordinária transformação política.

Afinal, Kamala Harris só aceitou a nomeação para candidata democrata no final de julho, a pouco mais de três meses das eleições, ao passo que Donald Trump anunciou que entraria na corrida às presidenciais com quase dois anos de antecedência, em novembro de 2022. O curto espaço de tempo entre a nomeação oficial e a data das eleições, impediu Harris de criar um programa político ou, até, de reformar a plataforma de Joe Biden.

No final de agosto, as sondagens mostravam a reviravolta anunciada pela Time. Enquanto Biden esteve à frente, as sondagens davam vitória a Donald Trump, mas o ar fresco de Kamala inverteu a tendência por umas semanas. As sondagens mais recentes estimam percentagens muito semelhantes para os candidatos.

Há cinco anos, quando concorreu pela primeira vez às presidenciais, Kamala Harris disse aos jornalistas: “Ainda há muito trabalho para fazer, para tornar claro que as mulheres são excecionalmente bem qualificadas e capazes para liderar os Estados Unidos da América”.

"As mulheres são excecionalmente bem qualificadas e capazes para liderar os Estados Unidos da América"

Apesar de ter começado a levantar ondas ainda como procuradora, na Califórnia, Harris recebeu, ao longo dos anos, críticas sobre as suas posições políticas e posicionamento rígido. Além disso, herda, agora, o legado da administração de Biden, criticado pela sua posição, por exemplo, em relação a Israel, ao uso de armas no país e à imigração.

"Podes ser a primeira, mas garante que não és a última”

Há mais de 20 anos que Kamala Harris procura seguir o conselho da mãe: não é importante apenas ser a primeira, mas abrir as portas para quem vem a seguir.

Em 2019, Kamala Harris foi a primeira mulher negra com descendência indiana a candidatar-se às eleições presidenciais nos Estados Unidos e, depois, a ocupar o cargo de vice-presidente. Nessa altura, o objetivo já era derrotar Donald Trump, mas acabou por se ver obrigada a desistir, em dezembro, por falta de fundos.

Mas além desses feitos, Harris quebrou uma série de barreiras.

Há mais de 20 anos, em 2003, a agora candidata à presidência foi a primeira mulher negra e a primeira pessoa de descendência asiática a exercer funções como procuradora superior no seu distrito.

Nesse mandato, em 2004, celebrou o primeiro casamento entre pessoas do mesmo sexo em São Francisco e um dos primeiros no país. Bradley Witherspoon e Raymond Cobane celebraram 20 anos de casamento em fevereiro. Numa conversa gravada entre a vice-presidente e o casal, Harris relembra o momento como “um dos mais alegres” da sua carreira, em que “pessoas de todas as etnias, todas as cores, todos os tamanhos, todas as configurações, se juntaram num só quarteirão”.

Em 2008, a Proposition 8 – lei que proibia o casamento entre pessoas do mesmo sexo – foi implementada, com o voto contra de Harris, apenas para ser considerada inconstitucional em 2010. Três anos depois, Harris voltou a celebrar casamentos entre pessoas no mesmo sexo, desta vez, entre Sandy Stier e Kris Perry.

Depois de ser eleita em 2010 como procuradora-geral da Califórnia, com uma margem inferior a 1%, começou a ganhar reconhecimento dentro do partido republicano. E, em 2017, começou a carreira de senadora. Com este título, não foi a primeira mulher negra, mas a primeira pessoa de descendência asiática a integrar o Senado.

Quando foi nomeada por Joe Biden como ‘running mate’ em julho de 2020, Kamala Harris tornou-se na primeira mulher, na primeira pessoa negra e na primeira pessoa sul-asiática a assumir o cargo de vice-presidente dos Estados Unidos da América. Ainda que estas tenham sido vitórias para Kamala, a própria disse na tomada de posse que “se erguia sobre os ombros de gigantes”, mulheres, que abriram caminho para si.

Acontece que outras mulheres podiam ter estilhaçado telhados de vidro semelhantes. Afinal, todas as possíveis escolhas para vice-presidente eram mulheres. Entre elas, encontravam-se Elizabeth Warren, que como Harris, inicialmente concorreu contra Biden; Stacey Abrams, a primeira mulher negra a encabeçar a Casa dos Representantes da Georgia; e Val Demings, que foi apontada por Nancy Pelosi para liderar o processo de destituição de Donald Trump, no Senado, em 2020. Das 11 possíveis nomeadas para vice-presidente de Biden, seis são mulheres negras.

Elizabeth Warren Foto: C. J. Gunther/EPA
Elizabeth Warren Foto: C. J. Gunther/EPA
Foto: Cheriss May/Reuters
Foto: Cheriss May/Reuters
Val Demings. Foto: Michael Brochstein/Reuters
Val Demings. Foto: Michael Brochstein/Reuters

Depois de ter assumido o cargo, Kamala Harris foi, também, a primeira vice-presidente norte-americana a visitar uma clínica dedicada ao aborto. Os direitos reprodutivos e de acesso a interrupções de gravidez seguras são, aliás, um dos pilares centrais da sua campanha eleitoral.

Como presidente do Senado, a ainda vice-presidente, bateu um recorde de 200 anos de maior número de desempates de votos e presidiu à tomada de posse da primeira juíza negra no Supremo Tribunal, Ketanji Brown Jackson.

“Senhor vice-presidente, eu estou a falar”

O primeiro momento viral de Kamala Harris chegou quando Mike Pence, então candidato a vice-presidente, tentou interrompê-la durante o debate pré-eleitoral. A frase tornou-se numa espécie de assinatura de campanha e acabou estampada em t-shirts, chapéus e canetas pelos Estados Unidos fora.

Mas esta não foi a primeira interação que deu alguma notoriedade a Harris. Em 2018, quando o juíz Brett Kavanaugh testemunhava em preparação para a sua integração no Supremo Tribunal, Kamala Harris questionou-o acerca da sua posição sobre Roe vs. Wade, a lei que assegurou o direito ao aborto para as mulheres americanas.

Harris: Consegue lembrar-se de alguma lei que dê ao Governo o poder de tomar decisões sobre o corpo masculino?

Kavanaugh: Não consigo lembrar-me de nenhuma agora.”

Mais tarde, os votos de Brett Kavanaugh e de Amy Coney Barrett contribuíram para a reversão de Roe vs. Wade e, em consequência, da remoção do aborto como um direito constitucional. Esta decisão, que Kamala promete anular se for eleita, levou a proibições totais ou parciais de interrupções da gravidez em 14 estados.

Brett Kavanaugh é atualmente um dos juízes do Supremo Tribunal. Foi nomeado por Donald Trump, em 2018, mesmo depois de acusações de consumo excessivo de álcool e de abuso sexual.

Na mesma altura, em 2018, Harris também interrogou Brett Kavanaugh e o procurador-geral, William Barr, sobre os seus envolvimentos no chamado ‘Mueller Report’ que investigava a interferência da Rússia nas eleições americanas de 2016.

Ao longo de uma série de perguntas, Kamala Harris levou Barr a admitir que não tinha revisto as provas anexadas ao relatório conforme previamente indicado. Pelo que não podia, com conhecimento de causa, tê-las declarado insuficientes, como fez.

Depois desta interação, Trump acusou Harris de ser “extremamente desagradável”.

Já enquanto candidata à presidência, este ano, Kamala Harris “dominou”, de acordo com a revista Time, Donald Trump durante o seu primeiro, e único, debate, a 10 de setembro.

Do lado de Harris, o debate ficou marcado por frases como “Donald Trump foi despedido por 81 milhões de pessoas” e “as pessoas começam a sair cedo dos comícios deles por exaustão e aborrecimento”.

Mais tarde, no início de outubro, foi J.D. Vance quem atacou Kamala. O candidato a vice-presidente pelo partido Republicano sugeriu que o facto de a candidata democrata não ter filhos lhe tirava humildade, acrescentando que o país estava a ser “governado por mulheres com gatos e sem filhos que são miseráveis e querem que o resto do país seja miserável também”.

Harris, a quem os dois enteados chamam “Momala”, respondeu que “há muitas mulheres que não estão a tentar ser humildes”.

“Há muitas mulheres que não estão a tentar ser humildes”

Apesar de ter recebido algum apoio, Vance acabou por ser criticado nas redes sociais e por figuras do próprio partido. Uma dessas vozes foi Nikki Haley, que disse que a troca de palavras sobre este tema “não foi útil”. A antiga governadora da Carolina do Sul acrescentou que "Donald Trump e J.D. Vance têm de mudar a forma como falam sobre mulheres".

“Se alguém invadir a minha casa, vai ser baleado”

No início de outubro, depois de uma entrevista com Oprah Winfrey, Kamala Harris enfrentou uma intensa onda de críticas, depois de confessar ter uma pistola em casa, apesar de a residência ser, atualmente, protegida por agentes dos Serviços Secretos.

Durante anos, Harris defendeu restrições ao uso de armas nos Estados Unidos, apoiando, particularmente, uma análise mais aprofundada dos perfis das pessoas, a proibição federal de certos tipos de espingardas - as chamadas ‘assault riffles’ - e a definição de leis de sinalização para prevenir que caiam “nas mãos de pessoas perigosas”.

Acontece que a pistola que Kamala tem em casa pode, ou não, estar ao abrigo de uma lei que estabelece aspetos de segurança obrigatórios para armas produzidas depois de 2010. A campanha não divulgou qual é o modelo da Glock da vice-presidente.

No mesmo programa, Harris assumiu que defende a Segunda Emenda — escrita em 1791 —, que "protege o direito de ter e empunhar armas”, justificando com o seu passado em lei e policiamento. Durante os seus mandatos como procuradora na Califórnia, lê-se na plataforma oficial da candidatura, “removeu mais de 12 mil armas ilegais das ruas”.

Depois de ser acusada de hipocrisia por ativistas de ambos os lados dos argumentos sobre o uso de armas, Harris insiste que defender o direito a ter uma arma não invalida que se implementem políticas de restrição do uso de armas o que, acredita, é “apenas senso comum”.

Kamala Harris já tinha sido acusada, ao longo dos anos, de hipocrisia pela sua posição em relação à pena de morte. No início da sua carreira enquanto procuradora, Harris recusou-se a pedir a pena de morte para um jovem membro de um gang (apesar da pressão nesse sentido, já que tinha assassinado um polícia), uma vez que tinha prometido, quando foi eleita para o cargo, que nunca pediria uma pena dessa severidade. Mas, quando se elevou à procuradoria, na California, já afirmou “aplicar a pena de morte, conforme dita a lei”.

Em 2019, na sua primeira corrida às presidenciais, o programa ditava que “Kamala acredita que a pena de morte é imoral, discriminatória e ineficaz”. Depois, ao lado de Joe Biden, a administração opôs-se, pela primeira vez na história, à aplicação da pena capital.

Mas o uso pessoal de armas de fogo e a pena de morte não são os únicos assuntos sensíveis que Kamala tem de navegar. Também a posição de Harris, que herda de Joe Biden, sobre Israel e a Palestina tem dividido as intenções de voto de americanos, mesmo entre democratas.

Bernie Sanders, antigo candidato democrata às presidenciais, é uma das figuras do mesmo partido que afirma não concordar com a posição de Harris e Biden sobre Israel. Ainda assim, insiste, com a eleição de Harris, há uma possibilidade de discussão de mudanças de posição, enquanto o contrário, é impossível.

Kamala Harris apelou a um cessar-fogo temporário, em março, e tem, desde então, defendido uma solução de dois estados. Por outro lado, não apoia uma suspensão do envio de armas para Israel e, em agosto, rejeitou a presença de um orador palestiniano-americano na Convenção Democrata.

Anualmente, o governo dos Estados Unidos transfere para Israel 3,8 mil milhões de dólares em apoio militar. A administração de Biden, de que Kamala Harris não se distanciou neste assunto, autorizou um pacote adicional de 14 mil milhões de dólares.

Pela sua relutância em cortar relações com Israel e denunciar a violência e as consequências mortais da opressão israelita na Faixa de Gaza, milhares de votantes, na sua grande maioria democratas, prometem não votar em Kamala Harris.

“Eu adoro comer boa comida”

Na noite em que Joe Biden apoiou a candidatura de Kamala Harris às eleições presidenciais, o plano de ação foi encomendar uma pizza de anchovas e passar 10 horas ao telefone, na procura de delegados e apoiantes.

Desde picar cebolas com a atriz e realizadora Mindy Kaling, a salivar por bolo de caramelo na Georgia, a comida é um pilar da vida política de Kamala Harris há mais de cinco anos.

Em 2019, na campanha para as eleições presidenciais de 2020, a então senadora Harris entrou numa nova era do seu canal do Youtube: vídeos de culinária. Do outro lado da câmara de meia dúzia de convidados ilustres – da culinária e não só - Harris partilha receitas de bolachas de chocolate, sandes de atum, e do prato tradicional indiano masala dosa, entre outros.

O vídeo mais recente da playlist 'Cooking with Kamala' (Cozinhar com a Kamala) é do final de outubro. A candidata à presidência junta-se ao chef Rene Andrade para preparar pratos tradicionalmente mexicanos e recordar as comidas de infância. Nos primeiros segundos, Harris lembra: “A minha mãe disse-me: ‘é melhor aprenderes a cozinhar, se gostas tanto de comer boa comida’”.

Nestes vídeos, Kamala fala de uma infância recheada de “boa comida”. Para a filha de pai jamaicano e de mãe sul-indiana nascida na Califórnia, as memórias de uma avó vegetariana que não “comia nada que tivesse mãe” juntam-se às das bolachas caseiras acabadas de fazer que a tornaram, diz, “uma snob de comida”.

Mas como nenhum ato de campanha eleitoral escapa à política de todas as coisas, Kamala Harris aproveitou estas conversas em direto para discutir a luta dos negócios de restauração durante a pandemia ou políticas de segurança alimentar.

Já na campanha de 2024, e depois de os vídeos mais antigos terem ressurgido nas redes sociais em versões curtas, a comida voltou a fazer parte da campanha de Kamala Harris. “Esse bolo é de quê?”, ouve-se num vídeo que viralizou no final de agosto, “chocolate e caramelo”.

@kamalaharris

Had to get a sweet treat at Dottie’s Market in Savannah.

♬ original sound - Kamala Harris

Mas não é apenas Harris que usa a culinária em prol da sua campanha. Em agosto, mais de 60 chefs, donos de restaurantes e críticos gastronómicos juntaram-se para “Cozinhar por Kamala”. A 29 de setembro, a angariação de fundos arrancou com um evento virtual em que a chef Suzanne Goin preparou um frango inteiro com ervas, uma receita da própria candidata. Além da refeição, o evento gerou cerca de 250 mil dólares para a campanha eleitoral.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+