04 nov, 2024 - 08:00 • João Pedro Quesado
Se Kamala Harris for eleita Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), a Europa pode esperar mais do mesmo. Se Donald Trump voltar à Casa Branca, o primeiro impacto vai ser “pior”, mas deve obrigar a Europa a criar “condições de melhoria” para si mesma. É a avaliação de Ricardo Ferreira Reis, professor da Universidade Católica Portuguesa, para quem a União Europeia deve assumir a iniciativa em vários temas em vez de esperar pelo outro lado do Oceano Atlântico.
As eleições presidenciais de 2024 nos EUA, marcadas para esta terça-feira, atraem a atenção de todos os cantos do mundo. A Europa, parceira de longa data, não é exceção, fazendo muitos europeus perguntar qual dos candidatos é o pior para este lado do Atlântico.
Ricardo Ferreira Reis não duvida que “o primeiro impacto seria pior se Donald Trump ganhasse, porque obrigaria a Europa a rever muito daquilo que é o ‘status quo’ das relações internacionais”, mas não acredita que questionar qual dos candidatos é melhor ou pior seja a melhor forma de avaliar os potenciais efeitos. Isto porque, com Kamala Harris, o economista acredita que “íamos ter uma continuação daquilo que têm sido as políticas americanas para a Europa e, de certa maneira, uma certa desresponsabilização da Europa”.
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Por outras palavras, o diretor do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião (CESOP) da Universidade Católica acredita que Donald Trump pode ser uma “pílula amarga” para a União Europeia e o Velho Continente.
“Tenho muita dificuldade em dizer o que é que é pior ou melhor, se é tomarmos um medicamento que sabe mal, portanto nesse aspeto é pior, mas ficamos mais fortes a seguir, ou se é tentarmos ir fazendo a transição sem ter esta dor inicial”, avalia Ricardo Ferreira Reis, avisando que “a Europa não pode ficar parada”.
Esse mesmo sentimento parece estar presente entre vários diplomatas na União Europeia. No final de outubro, o jornal “Politico” dava conta de responsáveis europeus a descrever um regresso de Trump à Casa Branca como “um choque benéfico que vai permitir à UE andar para a frente, como a pandemia ou a crise energética depois da guerra na Ucrânia”. Uma das áreas em que os diplomatas esperam avanços de uma União focada em ganhar resiliência é a defesa.
Nesse assunto, Ricardo Ferreira Reis avisa que “Trump exigiria da Europa uma colaboração mais ativa e não confiar que os Estados Unidos estão sempre disponíveis para qualquer solução e qualquer problema que a Europa venha a ter”. Algo que “põe em causa o artigo 5.º do tratado da NATO e, como tal, põe em causa a própria existência da NATO”, pelo que uma vitória de Trump “poderia ser bastante arriscada” - nomeadamente pela “indisponibilidade para ajudar em conflitos que estejam longe dos seus interesses imediatos, como é o caso da Ucrânia com a Rússia”.
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Donald Trump tem cultivado relações próximas com Vladimir Putin, professando até admiração pelo Presidente russo. Além disso, o ex-Presidente é crítico da ajuda militar dos EUA à Ucrânia - foi um episódio de bloqueio dessa ajuda em 2019, quando ainda era Presidente, para tentar obter favores do governo ucraniano contra Joe Biden, que lhe valeu o primeiro processo de impugnação (do qual acabou ilibado pela maioria republicana no Senado).
Biden é considerado o último Presidente “atlanticista” dos EUA, estando já a pôr em prática uma mudança dos recursos militares para a região do Indo-Pacífico, que vai provavelmente continuar na próxima presidência. Uma das questões é a velocidade da mudança.
Kamala Harris representa, nesse contexto, uma continuidade, prometendo manter o apoio à Ucrânia enquanto for necessário. A vice-presidente representou os EUA na cimeira organizada por Kiev em junho deste ano, na Suíça, onde comprometeu o país com mais 2 mil milhões de dólares de assistência militar.
“Acho que uma administração Kamala Harris seria muito mais centrista do que aquilo que é o discurso original de Kamala Harris. Na questão internacional, tenho sérias dúvidas que fosse tão isolacionista, mesmo que fosse algo protecionista na dimensão económica, mas não era isolacionista em relação à política internacional”, observa o diretor do Centro de Estudos Aplicados da Católica.
Contudo, Ricardo Ferreira Reis avisa que a maior “interação com a Europa” não deve servir para “o adormecimento da Europa, porque tem servido, no passado recente”. E frisa: “a Europa acaba por adormecer por confiar no amigo americano… Nesse aspeto, Trump até nos chama a atenção para a necessidade de encontrarmos alternativas e soluções que não sejam tão dependentes deles”.
A vitória de Donald Trump arrasta outro problema – o do crescimento dos autoritarismos dentro da União Europeia. Ricardo Ferreira Reis considera que um segundo mandato de Trump “valida esse discurso”, principalmente pelo impacto da resposta à pandemia de covid-19.
“Há um conjunto de medidas que todos tivemos que tomar”, recorda o economista, “mas isso levou à inflação, que penalizou a imensa classe média americana, e a um conjunto de instabilidades económicas, de emprego, que fez com que a economia americana tenha passado aqui por um certo solavanco, sendo que é de longe a economia dos países do G7, por exemplo, que melhor recuperou do covid-19".
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Essa boa recuperação, sublinhada por um crescimento de 2,8% da economia no terceiro trimestre (mas temperada com números fracos de crescimento do emprego em outubro), permitirá ao próximo Presidente “começar o mandato a dizer ‘desde que eu cheguei que isto está muito melhor’”, aponta Ricardo Ferreira Reis.
“Isso vai de facto validar discursos de políticos semelhantes, Orbán é o melhor exemplo, mas também outro tipo de políticos europeus, e não apenas europeus, na América Latina isso continuará a acontecer, também que vão dizer 'isto só está bem quando está um político como Trump no poder'”, diz o professor universitário.
A extrema-direita foi o setor político que mais cresceu nas eleições europeias de junho, passando a contar com 171 eurodeputados (agora divididos por três grupos políticos). A nível nacional, seis países europeus (Itália, Croácia, Hungria, Eslováquia, Chéquia e Finlândia) são governados por partidos de extrema-direita, enquanto países como a França e Alemanha procuram manter o cordão sanitário, ao mesmo tempo que adotam medidas e discursos semelhantes à extrema-direita.
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Sobre os impactos na Europa de uma cedência de Trump aos interesses de Putin na Ucrânia, Ricardo Ferreira Reis considera que “depende de até que ponto é que a Ucrânia consegue aguentar e resistir”.
“Aquilo que tem sido a estratégia dos países que conseguiram derrotar a Rússia no passado é sobretudo de desgaste, de se aguentarem, de resistência, de conseguirem exaurir o enorme manancial de recursos russo, até que as famílias, as famosas mães russas, percam a paciência e exijam o fim das hostilidades”, pelo que seria importante a Europa “assegurar muito daquilo que os Estados Unidos têm assegurado e o mais rapidamente possível”.
A economia tem sido consistentemente apontada pelos eleitores norte-americanos como a maior preocupação no ciclo eleitoral de 2024. A resposta de Donald Trump a esses anseios é a mesma de 2016: tarifas comerciais sobre produtos importados.
Segundo o think tank “Council on Foreign Relations”, Trump aplicou, como Presidente, 360 mil milhões de dólares em tarifas comerciais para produtos da China (que foram depois mantidas por Joe Biden). Durante o mandato, Trump também impôs tarifas de 25% e 10% sobre as importações de aço e alumínio da UE (um total de 6,4 mil milhões de euros anuais), que provocaram uma retaliação europeia – essas tarifas estão suspensas de forma mútua até ao fim de março de 2025.
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A manutenção de tarifas comerciais por Joe Biden, na avaliação de Ricardo Ferreira Reis, aponta para uma mudança no consenso da política norte-americana, marcada por uma lógica de comércio livre na segunda metade do século XX e, em particular, depois do fim da Guerra Fria.
“Antigamente as empresas, as indústrias deslocalizavam-se para a China e para a Ásia porque a mão de obra era mais barata lá e era uma componente importante daquilo que estavam a fazer”, afirma o economista, que ressalva que “à medida que vamos substituindo mão de obra por automação, por inteligência artificial, deixa de ser tão relevante esse fator”, o que permite “trazer para dentro das nossas costas indústrias que outrora estavam a ser exportadas”.
Recordando que a indústria chinesa é hoje “altamente mais sofisticada do que era antes”, Ricardo Ferreira Reis prevê novas tarifas comerciais sobre produtos europeus numa administração Trump, mas ressalva que o isolacionismo norte-americano pode representar uma oportunidade.
“Quem é que vai lutar pelo comércio livre, quem é que vai ficar a lutar por que haja esses acordos multilaterais ou internacionais? Nós e a China. E a China tem feito um progresso muito grande nesse sentido. Basta dar uma volta por África para perceber isso, basta ir à América Latina para perceber isso, as suas áreas de influência são iminentemente comerciais e continuarão a ser”, remata o professor universitário.