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Eleições nos EUA

E se todos os votos contassem? Kamala pode ser a próxima vítima do Colégio Eleitoral dos EUA

31 out, 2024 - 20:24 • João Pedro Quesado

Donald Trump deve fazer crescer a quota de votos obtidos a nível nacional em 2024, mas a atual vice-presidente deve manter a superioridade democrata na votação nacional. Se não conseguir ganhar os estados decisivos necessários, pode juntar-se a Hillary Clinton, Al Gore e três políticos do século XIX num clube pouco invejável.

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As eleições presidenciais de 2024 nos Estados Unidos da América (EUA) são a 60.ª vez em que os norte-americanos são chamados às urnas para escolher quem vai viver na Casa Branca durante quatro anos. Mas, se as atuais sondagens estiverem corretas, 2024 pode ser a terceira vez desde 2000 em que o Colégio Eleitoral dá a vitória a quem teve menos votos em todo o país.

Sondagens como as do “The New York Times” indicam um possível empate na votação nacional entre Kamala Harris e Donald Trump, ao mesmo tempo que a vice-presidente segura uma liderança, ainda que mínima, em alguns dos sete estados decisivos para a eleição. No último dia de outubro, a média de sondagens do jornal coloca tanto Harris como Trump com 48% dos votos na totalidade dos EUA.

A eleição de 2024 pode significar, pelo menos, uma redução da vantagem do Partido Republicano no Colégio Eleitoral – a tradição eleitoral recente indica que o Partido Democrata precisa de uma vantagem de três pontos na votação nacional para ter hipóteses de conquistar a Casa Branca.

Por detrás dessa mudança está a possibilidade de um padrão eleitoral semelhante ao das eleições intercalares de 2022, para a Câmara dos Representantes e parte do Senado. Os republicanos podem estar a ganhar votos em estados de maior dimensão, como o Texas e a Flórida, onde já têm a vitória assegurada (aumentando apenas a vantagem), e até em Nova Iorque e na Califórnia - onde, apesar dos ganhos republicanos, a vantagem do Partido Democrata continua a ter uma dimensão difícil de ultrapassar.

Por outras palavras, os republicanos ganham votos que não ajudam o partido a vencer em mais estados e, assim, ter votos eleitorais. Uma sina mais comum ao Partido Democrata - entre os dois cenários, o mais provável ainda é o de Kamala Harris ser a mais votada em todo o país mas não conseguir chegar à presidência.

Trump, o beneficiado de 2016

Em 2016, Hillary Clinton foi a prejudicada pelo Colégio Eleitoral. Apesar de receber mais do que 2,8 milhões de votos do que Donald Trump, essa vantagem resultou principalmente da vitória na Califórnia, onde a democrata venceu por quase 4,3 milhões de votos. No estado de Nova Iorque, Hillary venceu com 1,7 milhões de vantagem.

Face à vitória e reeleição de Barack Obama em 2012, o Partido Democrata perdeu não só os supostamente fiáveis estados do Wisconsin, Michigan e Pensilvânia, como o Ohio, o Iowa e ainda a Flórida.

O estado peninsular da Flórida era, até então, frequentemente aquele que decidia o vencedor das eleições, mas 2016 marcou o início de uma forte viragem à direita – em 2020, Trump alargou a vantagem de 1,2 pontos percentuais para 3,3 pontos, e as sondagens de 2024 colocam os republicanos com cerca de 6 pontos de vantagem.

2000, o ano do “ex-próximo Presidente” Al Gore

A disparidade de 2000 entre a votação global nacional nos EUA e o resultado do Colégio Eleitoral tem muito mais história. Nesse ano, o democrata Al Gore, então vice-presidente de Bill Clinton, teve 543 mil votos mais do que George W. Bush. A vitória no Colégio Eleitoral ficou dependente da Flórida.

Os problemas começaram ainda na noite eleitoral. Os cinco principais canais de televisão norte-americanos (ABC, CBS, CNN, FOX e NBC) lançaram projeções que atribuíam a vitória no estado a Al Gore, apenas para recuar cerca de duas horas depois, declarando o estado como “demasiado renhido para atribuir” (uma tradução literal de “too close to call”). Algumas horas mais tarde, alguns canais anunciaram Bush como vencedor... apenas para acabar por também retirar esse anúncio.

A confusão foi tal que o próprio Al Gore, que tinha ligado a George W. Bush a conceder a derrota na eleição, ligou de novo ao então governador do Texas para recuar nessa concessão quando percebeu que a margem era mínima. Os norte-americanos acordaram no dia seguinte, 8 de novembro de 2000, sem saber quem seria o próximo Presidente.

A realidade era quase inimaginável. Bush liderava a contagem final do dia de eleições na Flórida por 1.784 votos, uma diferença tão pequena que espoletou uma recontagem automática dos votos, definida por lei. As recontagens foram reduzindo a vantagem de Bush, até se chegar, três dias depois, a uma vantagem de 327 votos eleitorais para o republicano.

A disputa seguiu para os tribunais. A campanha de Al Gore pediu recontagens manuais em quatro condados, e interpôs ações nos tribunais para prolongar os prazos de finalização das recontagens. Enquanto o mundo via o drama a desenrolar-se através de imagens de funcionários a olhar para cada boletim e decidir quais continham um voto válido, a campanha de George W. Bush procurou parar as recontagens e excluí-las do total final.

A 26 de novembro, a última data definida pelo Supremo Tribunal da Flórida para a certificação dos resultados da Flórida, Bush tinha uma vantagem de 537 votos. A decisão sobre a certificação acabou nas mãos do Supremo Tribunal dos EUA, que pegou no caso já em dezembro. No dia 8, os juízes da Flórida ordenaram a uma recontagem de todos os boletins cujo voto não tinha sido registado pelas máquinas de votação. No dia seguinte, os juízes do Supremo dos EUA decidiram parar essa recontagem.

A 12 de dezembro, o Supremo Tribunal dos EUA decidiu pela paragem da recontagem por não existir uma metodologia uniforme em toda a Flórida e não haver tempo para definir essa metodologia e completar a recontagem. Al Gore concedeu a derrota para Bush no dia seguinte.

Durante o mês em que não havia vencedor na Flórida, todos os detalhes se tornaram uma controvérsia, incluindo o design do boletim de voto num condado em que um candidato de outro partido, Pat Buchanan, teve um número excecionalmente alto de votos. O facto de a Flórida ser governada por Jeb Bush, irmão de George W. Bush, não ajudou a acalmar os ânimos dos democratas. Hoje, ainda se falam em boletins de voto que desapareceram e nunca foram contados, além de táticas pouco leais usadas para influenciar todo o processo.

O longo episódio já foi retratado de várias formas, como o documentário de 2020, “537 Votes”. O resultado foi a atribuição dos 25 votos eleitorais da Flórida ao republicano Bush, colocando-o com apenas um voto eleitoral acima do estritamente necessário para vencer – a margem mais reduzida na história eleitoral moderna.

Três casos da América inicial

Os outros casos pertencem a outra era norte-americana, a do século XIX. 12 dos atuais estados ainda eram territórios dos EUA – meramente administrados pelo governo federal, sem soberania e sem poder de voto para os habitantes, como ainda acontece com a ilha de Porto Rico. O Partido Democrata era, então, o partido da escravatura e segregação racial, dominando no Sul do país – o que apenas mudou na década de 1960, um processo iniciado na eleição de John F. Kennedy e concluído com a aprovação da Lei dos Direitos Civis por Lyndon Johnson, em 1964.

Em 1888, numa eleição dominada pelo tema das tarifas comerciais a produtos importados (uma bandeira que Donald Trump recuperou em 2016), o republicano Benjamin Harrison venceu o Colégio Eleitoral apesar de somar menos 90 mil votos do que o então Presidente democrata Grover Cleveland – o único Presidente dos EUA, até agora, que cumpriu mandatos não-consecutivos.

Em 1876, os EUA ainda recuperavam dos anos de Guerra Civil. O ato eleitoral foi marcado por fraude eleitoral e ameaças contra republicanos na Flórida e no Louisiana, onde o democrata Samuel J. Tilden vencia nos primeiros resultados, e na Carolina do Sul, cuja primeira contagem coloca o republicano Rutherford B. Hayes na frente. Esses três estados, em conjunto com o Oregon, aprovaram dois diferentes conjuntos de eleitores para o Colégio Eleitoral – um leal aos democratas, outro leal aos republicanos.

Foi apenas no início de março de 1877 que se alcançou um compromisso, depois de as decisões de uma comissão bipartidária para decidir que eleitores aceitar em cada estado também serem disputadas. O compromisso, do qual não há provas escritas, terá envolvido (segundo o Miller Center, da Universidade da Virgínia) o fim do bloqueio dos democratas à decisão da comissão bipartidária, permitindo a eleição do republicano Hayes como Presidente, em troca da retirada das últimas tropas federais dos estados sulistas – o que permitiu ao partido consolidar o controlo da região.

A eleição de 1824 acontece ainda antes da Guerra Civil, quando os Estados Unidos ainda nem tinham ultrapassado os 50 anos como país independente, grande parte do atual território pertencia ao México, e havia apenas um partido político, o Partido Democrata-Republicano. Com vários candidatos viáveis, a eleição marcou o fim deste sistema unipartidário.

Nenhum candidato conseguiu uma maioria no Colégio Eleitoral, pelo que a eleição teve que ser decidida, pela segunda vez, pela Câmara dos Representantes – um desempate chamado de “eleição por contingente”. Aí, John Quincy Adams conseguiu o apoio de 13 dos então 24 estados. Andrew Jackson, que tinha conseguido mais votos eleitorais e a maioria dos votos dos então norte-americanos, ficou para trás, com o apoio de apenas sete estados.

O cenário de uma eleição contingente na era moderna é improvável, mas não impossível - em 2024, há vários cenários desenhados pelos resultados das sondagens que admitem um empate no Colégio Eleitoral, o que obrigaria a Câmara dos Representantes a decidir a Presidência.

Colégio Eleitoral ainda longe do fim

Já o Colégio Eleitoral continua longe de ser eliminado do sistema eleitoral dos EUA, apesar de existir uma tentativa em progresso. O Pacto Interestadual do Voto Popular Nacional é um acordo iniciado em 2006, com o objetivo de garantir que o ocupante da Sala Oval da Casa Branca é o candidato que recebeu mais votos em todo o país.

Com emendas à Constituição para eliminar o Colégio Eleitoral a caírem repetidamente nas câmaras do Congresso durante a segunda metade do século XX, o pacto foi desenvolvido como uma forma de contornar essa dificuldade.

Este pacto modifica a forma como os estados dos EUA participam no Colégio Eleitoral e nomeiam os eleitores que resultam da eleição presidencial. Apenas dois estados (o Maine e o Nebraska) dividem os votos eleitorais entre o vencedor do estado e o vencedor nos diferentes círculos eleitorais para a Câmara dos Representantes – os restantes dão todos os eleitores ao vencedor do estado.

Contudo, os 270 votos eleitorais que importam nas eleições presidenciais também são importantes neste caso. O pacto apenas funciona quando um conjunto de estados que representem uma maioria absoluta no Colégio Eleitoral o tiverem ratificado – assegurando sempre um mínimo de 270 votos eleitorais ao vencedor do voto popular a nível nacional.

Para o pacto entrar em efeito, é preciso que o número mínimo de votos eleitorais tenha sido alcançado até seis meses antes da tomada de posse. O próximo objetivo dos detratores do Colégio Eleitoral é chegar ao dia 20 de julho de 2028 com o Pacto apoiado por 270 votos eleitorais. Uma derrota de Trump no Colégio Eleitoral ao mesmo tempo que este vence a votação global nacional pode ser o impulso necessário para atingir esse objetivo.

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