31 out, 2024 - 16:19 • José Pedro Frazão , enviado da Renascença aos EUA
O mundo pode mudar muito, mas ainda há pessoas que habitam nas certezas profundas. A 5 de novembro, pelas cinco da manhã, tal como nos últimos 10 anos, Saquanna estará pontualmente a entrar na Biblioteca Pública de Brooklyn para assumir o seu lugar numa das mesas de voto. Uma hora depois, começarão a entrar outros americanos para escolher o novo Presidente dos Estados Unidos. Quem estiver na fila até às nove da noite poderá votar.
Quando acredita em algo, a nova-iorquina de 49 anos, negra, veste a camisola até ao fim. Ainda há poucos dias, deslocou-se até ao comício de Donald Trump em Madison Square Garden. Apresentou-se de camisola vermelha, estampada com a mensagem “Trump 24”, e o incontornável boné MAGA (“Make America Great Again”). Foi travada por falta de informação: não sabia que a mala pessoal é um dos objetos proibidos nos comícios de Trump pelo "Secret Service", a força policial que garante a segurança das altas individualidades.
"Não venhas para casa com essa roupa vestida, disseram-me no bairro. Mas mesmo assim fui, ostensiva e orgulhosa, com este meu equipamento", conta a norte-americana.
"Eu fui democrata por muito tempo, mas quando comecei a entrar nas mesas de voto — e a assistir às diferentes corridas eleitorais e até a protestos em Albany e Washington —, passei para o outro lado."
Saquanna é de Brooklyn, do outro lado da ponte que liga a Manhattan. Desse bairro, Trump saiu sempre derrotado. Teve 22% contra 77% de Biden em 2020 e não passou de um quarto dos votos de Hillary Clinton em 2016.
Brooklyn é um bairro maioritariamente democrata há décadas. Tal como Saquanna já foi, em 2008, quando votou em Obama.
"Eu fui democrata por muito tempo, mas quando comecei a entrar nas mesas de voto — e a assistir às diferentes corridas eleitorais e até a protestos em Albany e Washington —, passei para o outro lado. Os democratas estavam apenas a lutar uns contra os outros, não estavam a fazer muito. Então mudei, virei para o outro lado", explica à Renascença.
À volta de Saquanna, agora é tudo Kamala e os tempos não estão para grandes diálogos. "É uma fonte de grande tensão, mas não tem impacto no meu voto", diz, reconhecendo que há muitas divisões entre pessoas por causa da política. "Para ser totalmente honesta, acredito que tem tudo a ver com a raça e com o facto de ele ser um homem branco. E não necessariamente com o que ele fez pelo nosso país há quatro anos."
Há racismo contra Trump? Saquanna, mulher e negra, não acredita que Trump seja racista. "Ele só diz o que lhe vem à cabeça, tal como ele é, não passa açúcar em ninguém".
Foi essa personalidade que cativou esta mulher de Brooklyn. "Fala do que as pessoas sentem e têm medo de dizer", afirma.
Acreditar nas pessoas é algo que faz sentido para Saquanna. Foi assim que passou de seguidora de Obama para Trump. "São dois mundos diferentes. Mas hoje o nosso mundo está sempre a evoluir e a mudar. E não acho que isso tenha necessariamente a ver com o partido. As pessoas falam sobre os partidos, mas olho sobretudo para a ética de trabalho da pessoa. E Trump é o homem certo para o cargo. É ele que vai tornar a América grande outra vez", insiste.
Essa crença magnética em Trump percorre muitos apoiantes de Trump. É o caso de Anna, de 60 anos, residente em Allentown, a terceira maior cidade da Pensilvânia, por onde Trump passou em campanha esta semana.
Politicamente, Allentown é terreno maioritariamente democrata, mas, como em muitas áreas urbanas daquele estado, vai mudando de cor politica à medida que nos afastamos do centro da cidade.
A paixão de Anna por Donald é antiga, vem de longe, exactamente de Nova Iorque, onde viveu durante 40 anos antes de se mudar para a Pensilvânia.
"Quando ele foi Presidente, fez algumas coisas mal e outras bem. Mas quero que seja eleito. Somos ambos nova-iorquinos e cresci a vê-lo na televisão, a fazer isto e aquilo, antes ainda de assumir o cargo", afirma, justificando o seu voto num candidato com o qual não concorda em muitos aspectos.
"Às vezes ficamos confusos por causa de alguns comentários. Às vezes ele ataca-nos e outras vezes defende-nos."
Basta dizer que Anna é porto-riquenha de origem para se entender que a estrada que a conduz a Trump tem algumas curvas difíceis de ultrapassar. As piadas sobre Porto Rico, comparado com uma "ilha flutuante de lixo" por um comediante no comício de Nova Iorque, não caíram bem na comunidade.
"Foi um bocado rude para nós, para o nosso país e para Porto Rico. Têm que entender que somos americanos. Trump tem de compreender que somos da América e somos americanos. Foi algo que não deveria ter sido dito, mas também acho que cada um tem a sua opinião e a sua forma de a manifestar. Mas não somos lixo", adverte. Assinala, contudo, que as palavras não vieram da boca de Trump, de quem esperaria um pedido de desculpas.
Apesar de tudo, Anna acredita que Trump será um bom presidente para os latinos. E essa reserva liga-se à forma como o empresário se expressa. "Às vezes ficamos confusos por causa de alguns comentários. Às vezes ele ataca-nos e outras vezes defende-nos. Mas vamos ver, cada um tem a sua opinião".
Por um lado, esta porto-riquenha de Allentown acredita que "as coisas mudaram" e o regresso de Trump trará sobretudo "as coisas positivas". Mas quando se aprofundam os temas, emergem discordâncias com o candidato republicano.
É o caso do crescimento demográfico acentuado da cidade, com a entrada massiva de imigrantes, sobretudo latinos.
"A cidade começa a ficar sobrelotada. Se é mau ou é bom? Acho que é bom. Muitos imigrantes vêm para cá. Ligação entre imigração e crime? Não acredito nisso, porque sou filha de Deus e acredito que todos deveriam ser também. É justo dar uma oportunidade a todos, sejam imigrantes ou todo o tipo de raça, toda a gente", explica Anna, enquanto espera pelo comício de Trump na sua cidade.
A repetição de incidentes após as eleições também não lhe tira o sono, embora afirme com firmeza que não gostou de assistir aos acontecimentos de 6 de Janeiro de 2021, aquando da invasão do Capitólio por um grupo de apoiantes do candidato, que se recusava a aceitar os resultados das eleições que deram a vitória a Joe Biden.
"O comício que teve lugar em Washington nunca deveria ter acontecido. Eu não gostei e não gosto de faltas de respeito. E o que eles fizeram — e o que ele fez, se é que ele mandou nisso —, sim, foi muito desrespeitoso", afirma.
O que Trump diz tem o seu peso, mas é sentido de forma diferente de pessoa para pessoa. Saquanna, por exemplo, não acredita na tese de que as eleições foram roubadas a Trump em 2020.
"Votos são votos. As eleições foram justas e estas também serão", assegura esta mulher de Brooklyn que conhece bem o processo eleitoral. Acrescenta que algum equipamento está velho "e os votos podem não ser contados como deve ser", mas considera que a derrota de Trump em 2020 é indiscutível.
"Kamala esteve três anos e meio no cargo e não consigo ver o que é que ela fez para melhorar a minha vida."
Durante a votação, Saquanna estará na mesa ou a fazer o processo de digitalização. É uma mulher que gosta de estar presente, de "trabalhar" com os eleitores, de digitalizar o voto de cada um e "saber que ele entra mesmo lá dentro da urna".
Saquanna não é analógica, tem uma embirração com boletins de papel. "Acho que não são assim tão bem contados, por isso não sou grande fã de votos em papel ou mesmo de um processo de votação antecipada."
Antes do dia da votação, mesmo em terreno contrário, rodeada de amigos no campo oposto, Saquanna acredita que ainda consegue convencer mais negros a votar em Trump. "Mas fazem-no à porta fechada. É o que eu vejo. Só não dizem isso. Não sei se é algo de que tenham medo, em termos sociais, mas acabam por apoiá-lo de forma discreta", assegura.
A mulher de 49 anos gaba Trump por ser capaz de "ir por aí e fazer acordos para nos manter seguros" e de não ter entrado em guerras pelo mundo. Considera que, quando Donald se mudou para a Casa Branca, a sua vida foi "muito melhor", ganhando "muito mais dinheiro".
As certezas da norte-americana passam, por isso, por uma nova mudança de casa para o dono da Trump Tower, sita na Manhattan que avista todos os dias.
A 150 quilómetros de distância, em Allentown, Anna diz algo parecido. "Metade das pessoas de Porto Rico que conheço apoiam Trump, mas não gostaram do que foi dito no domingo". E partilha da ideia de um certo medo ou vergonha em assumir o voto no candidato republicano.
As duas mulheres negras, com tanto em comum sem se conhecerem, apresentam ainda um caderno de encargos ao ex-Presidente. "No nosso país, a prioridade deve ser a economia. Dar a todos oportunidades iguais, um seguro médico, tratar dos impostos, porque está tudo a ir para um nível elevado. Deveríamos reduzir tudo para que as pessoas possam pagar ou pelo menos para terem o suficiente para poderem viver", propõe Anna.
E Kamala? "Não a conheço. Não sei de onde ela é", começa por responder Anna, para depois reconhecer que sabe que vem da Califórnia.
Já Saquanna, em Brooklyn, diz saber bem como Kamala encanta os vizinhos. "No mundo de hoje, andam à procura do 'poder das mulheres'. Mas Kamala esteve três anos e meio no cargo e não consigo ver o que é que ela fez para melhorar a minha vida e a dos meus próximos".
Em concreto, Saquanna deteta atrasos nos centros de prevenção de overdoses e acusa a candidata de remover fronteiras na imigração. "E anda sempre atrás do que Trump diz, parece que não tem ideias próprias", conclui.
A Renascença nos Estados Unidos com o apoio da TAP Air Portugal.