27 out, 2024 - 09:08 • Catarina Santos
A 27 de outubro de 2023, depois de semanas de intensos bombardeamentos, o exército israelita iniciava uma incursão terrestre na Faixa de Gaza que se mantém, um ano depois, sem fim à vista. Estima-se que haja mais de 40 mil mortos, mais de 10 mil desaparecidos, 90% da população foi forçada a deslocar-se inúmeras vezes pelo enclave, há problemas generalizados de mal-nutrição (as Nações Unidas falam mesmo em fome extrema) e faltam cuidados básicos de saúde. A ofensiva em larga escala seguiu-se aos ataques do Hamas, a 7 de outubro de 2023, que mataram cerca de 1200 pessoas em Israel e fizeram cerca de 250 reféns.
Os números não têm precedentes no conflito israelo-palestiniano, mas somam-se a ciclos de violência constantes naquele território e que o israelita Neve Gordon tem condenado há anos. Não por ser pacifista, esclarece, mas por puro pragmatismo: "a violência não nos tem levado a lado nenhum", afirmava em março ao National Catholic Reporter.
Defensor de um único estado "do rio até ao mar, em que todas as pessoas tenham direitos iguais, em que haja algum tipo de partilha do poder e respeito pela cultura do outro, pela religião e pela língua", o professor de Direito Internacional e Direitos Humanos olha para o último ano de guerra com pessimismo e apela a cada cidadão que exerça "pressão massiva e ininterrupta sobre as elites políticas e financeiras, para que elas invoquem a lei de acordo com o espírito com que foi criada."
O académico acusa o governo israelita de usar as exceções previstas na lei internacional para "enquadrar toda a Faixa de Gaza como um grande escudo", usando "acrobacias" para "vergar a lei, de maneira a permitir-lhes levar a cabo a violência" que quiserem. Teme que, "se Israel conseguir sair impune com este argumento", a lei se torne "justificação para a violência genocida" e, por conseguinte, "a ordem legal internacional se desmorone".
Enquanto jovem israelita, cumpriu o serviço militar obrigatório nas Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês). Aos 21 anos foi ferido numa missão no Líbano e conta que foi aí que se começou a convencer da inutilidade de alimentar sucessivos ciclos de violência. Desde então, foi-se envolvendo cada vez mais em movimentos de solidariedade com palestinianos, focando-se em soluções que fomentassem a convivência pacífica.
Até 2009, vivia em Israel e dava aulas na universidade de Ben-Gurion. Há muito que era uma voz crítica da repressão exercida sobre os territórios palestinianos, mas foi quando descreveu o país como um estado de apartheid e defendeu boicotes internacionais, num artigo para o Los Angeles Times, que as suas posições lhe valeram um convite para deixar a instituição. Mudou-se com a mulher e os dois filhos para o Reino Unido, onde reside desde então.
É autor do livros "Israel's Occupation" e escreveu também, em parceria com o antropólogo político Nicola Perugini, "The Human Right to Dominate" e "Human Shields: A History of People in the Line of Fire".
No último ano houve uma série de ataques israelitas a escolas, hospitais e acampamentos considerados zonas seguras, repletos de palestinianos deslocados. Acredita que alguma destas ações terá um dia consequências judiciais para Israel?
Creio que essa é a pergunta de 64 milhões de dólares. É muito difícil saber exatamente como as instituições legais internacionais vão responder à violência crescente na Faixa de Gaza. O que está em jogo hoje não é só se Israel será responsabilizado pelos alegados crimes de guerra, crimes contra a Humanidade e mesmo pelo genocídio que está a levar a cabo na Faixa de Gaza, mas também se as instituições legais internacionais criadas depois da Segunda Guerra Mundial continuarão a existir.
Porque o que vemos hoje é, basicamente, um genocídio a desenrolar-se nos ecrãs dos nossos telemóveis. Vemos os elevados níveis de destruição, elevados níveis de mortes, elevados níveis de feridos na Faixa de Gaza, particularmente junto da população civil, mulheres, crianças, idosos e homens. Sim, há homens civis na Faixa de Gaza – podemos ter de recordar isto aos ouvintes, porque de acordo com os media, não há.
Por isso, se Israel sair impune, não é claro para mim o que acontecerá à ordem legal internacional.
Pode estar em causa a moral que o mundo ocidental terá no futuro para impor a lei internacional e as convenções sobre direitos humanos noutras zonas do mundo?
Sim. Temos de entender o que está a acontecer de facto. As leis da guerra são diferentes das leis de direitos humanos. Uma das maiores diferenças é que, de acordo com as convenções de direitos humanos, não podes matar. E, de acordo com as leis da guerra, podes matar.
O que vemos hoje é, basicamente, um genocídio a desenrolar-se nos ecrãs dos nossos telemóveis.
Guerra Hamas - Israel
Os ataques do Hamas em Israel a 7 de outubro fizer(...)
As leis da guerra distinguem entre civis e combatentes militares, infraestruturas civis e infraestruturas militares. Dizem que é legal matar combatentes e atacar instalações militares. E que, no geral, é ilegal matar civis e atacar infraestruturas civis.
A fundação da lei internacional assenta nesta distinção entre civil e militar.
Agora, o que vemos na Faixa de Gaza é uma tentativa de Israel justificar a destruição massiva, a morte de civis e a destruição de infraestruturas civis – incluindo, como referiu, hospitais, escolas, universidades, mesquitas, edifícios municipais, etc.
O que Israel diz é que o Hamas construiu centenas de quilómetros de túneis debaixo da Faixa de Gaza. E os túneis são um alvo militar legítimo. E que tudo o que está acima dos túneis está a ser usado como escudo para os túneis.
Usar como escudo, de acordo com a lei internacional, é ilegal. E se alguém usa escudos humanos ou hospitais como escudos, isso não torna esses locais imunes a um ataque. Aliás, se uma das partes quiser atacar um alvo militar legítimo pode fazê-lo, mesmo que esteja a ser defendido por escudos humanos.
A lei prevê exceções. Diz, por exemplo, de forma categórica, que não se pode atacar hospitais. Contudo, a mesma cláusula prevê uma série de exceções para situações em que se pode atacar estes locais. A principal é quando o hospital não está a levar a cabo a sua função humanitária. Isso aconteceria quando protege combatentes, armas ou algo desse género.
"Se Israel conseguir sair impune com este argumento, está a usar as leis da guerra para levar a cabo violência genocida. Se isso acontecer, a ordem legal internacional desmorona-se."
Basicamente, Israel está a usar esta exceção para enquadrar toda a Faixa de Gaza como um grande escudo.
Isto é muito importante, porque se Israel conseguir sair impune com este argumento, está a usar as leis da guerra – que foram consolidadas depois da Segunda Guerra Mundial, juntamente com a exigência de “nunca mais” – para levar a cabo violência genocida.
Ou seja, a lei torna-se justificação para a violência genocida. Se isso acontecer, a ordem legal internacional desmorona-se.
Que formas existem, na sua opinião, para provar essa alegada distorção? Como diz, Israel está a usar um argumento que está previsto na lei. Como se consegue construir um caso contra isso?
Acho que a maioria dos advogados de direito internacional discordam do argumento de Israel. Mas temos de perceber quais as forças que concordam e quais as que discordam. Temos de perceber as relações de poder.
Creio que a maioria dos advogados de direito internacional dirão que isto é uma interpretação errada da lei. Mas o direito é um campo sujeito a interpretação. É o que os advogados fazem.
Israel, na minha opinião, está a usar acrobacias ou uma espécie de jiu-jitsu para vergar a lei, de maneira a permitir-lhes levar a cabo esta violência. Creio que é uma interpretação falaciosa e acredito que a maioria dos advogados – incluindo o procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI) e o Tribunal Internacional de Justiça [órgão jurisdicional da Organização das Nações Unidas], que considerou plausível que esteja a ser cometido genocídio – discordariam da leitura feita por Israel.
Mas perceber quem concorda é também muito interessante.
Quando as leis da guerra foram desenvolvidas, a maioria das batalhas travava-se entre tanques e infantaria, em campo aberto. Hoje, a maioria das batalhas, sobretudo depois da guerra contra o terrorismo no início dos anos 2000, acontece em territórios urbanos – o que cria um contexto muito difícil de navegar para a alta tecnologia militar, para as forças de defesa dos estados, mantendo a distinção entre civis e combatentes.
Eles compreendem que não podem travar estas guerras sem violar a lei e, por isso, estão a esticar as cláusulas legais até ao limite, de forma a justificar as suas ações.
Por isso, acho que muitos advogados que trabalham para organismos de defesa apoiariam algumas interpretações israelitas.
É nesse momento crítico que estamos. Como disse, se Israel sair vitorioso na sua interpretação da lei internacional, podemos dizer adeus à lei como a conhecemos. E isso seria uma realidade assustadora.
Comentou numa entrevista ao Democracy Now, em abril, a forma como Israel está a usar a Inteligência Artificial (IA) para selecionar alvos. Em que medida é que isto muda a forma como as guerras são travadas hoje?
É um outro lado desta questão a que penso que os departamentos de alta tecnologia militar estão atentos. Veja-se os ataques com pagers no Líbano. Estão a dizer para si próprios: “Queremos fazer isto, OK?”
Ao mesmo tempo, ambos são uma violação flagrante da lei internacional no que respeita aos princípios da distinção, da proporcionalidade, etc.
Em muitos aspetos, as leis da guerra nem têm ainda, sequer, as ferramentas para lidar com a IA. As leis da guerra estão sempre um passo atrás da evolução das armas. Estamos no meio de uma lacuna temporal, com Israel a introduzir a IA na guerra de uma forma que não tem precedentes, que levou à morte de milhares de civis, incluindo provavelmente milhares de crianças. Mas as leis da guerra dizem muito pouco sobre estes mecanismos.
O que é claro, dos artigos que li, a partir de testemunhos de denunciantes que estiveram envolvidos nestas ações, é que o próprio estado de Israel não regulamentou a introdução do sistema de IA, de maneira a assegurar que não comete erros grosseiros. Por isso é que vemos tamanho grau de destruição civil.
Israel fala de uma margem de erro de 10%.
Essa é a margem de erro que eles admitem! Não é a margem de erro [real]. O equipamento de IA funciona sobretudo através de assinaturas digitais. A IA não te está a seguir, está a seguir os teus telemóveis. E está a segui-los devido ao tipo de chamadas que fizeste, à localização GPS e mais alguns dados. Por isso, está a seguir o cartão SIM mas a matar-te a ti. Eu já dei o meu telemóvel ao meu filho. Portanto, podem estar a seguir o meu telemóvel e eu posso nem o ter comigo, pode estar com outra pessoa.
Guerra Israel-Hamas
Nas últimas semanas, vários ataques israelitas ati(...)
Departamentos de alta tecnologia militar [de outros países] estão atentos. Veja-se os ataques com pagers no Líbano. Estão a dizer para si próprios: “Queremos fazer isto, OK?”
O problema com estes sistemas de IA é que eles analisam milhares de milhões de pontos para avaliar se és ou não um terrorista. E não há forma de eu voltar atrás para verificar se essa avaliação era precisa ou não. Porque são milhares de milhões de pontos, demoraria semanas, anos a verificar a fiabilidade.
Os militares dizem que há uma margem de erro de 10%, mas pode ser de 40%. Ninguém sabe.
E o que é definido como alvo? Nunca nos disseram. São apenas comandantes de altas patentes? É qualquer pessoa que seja considerada combatente do Hamas? Ou são contabilistas do Hamas, alunos e professores do Hamas, políticos, funcionários municipais? Quem são os alvos? Não é claro. Se for a partir de relações interligadas, quem garante que são combatentes?
Mas, mais uma vez, esta será uma área bastante difícil de investigar, certo?
Certo, mas parece-me que devemos querer que seja investigada antes de ser usada e não depois.
Outro possível crime, denunciado pela Human Rights Watch e referido num artigo seu para a New York Review of Books [juntamente com a advogada de direitos humanos palestiniana Muna Haddad], é o facto de a fome poder estar a ser usada como arma de guerra. Considera que este é um aspeto mais fácil de provar ou está também sujeito a interpretação legal?
Na verdade, acho que é bastante fácil de provar. Há um longo historial de uso da comida como um instrumento de controlo e dominação do povo palestiniano por Israel – e dos palestinianos de Gaza em particular.
Há provas abundantes de que Israel não deixou entrar ajuda humanitária na Faixa de Gaza durante meses a fio. No momento em que estamos a falar, não está a deixar entrar ajuda humanitária no Norte de Gaza, porque acredito que quer esvaziar aquela zona de população palestiniana.
Neste campo, ao contrário de outros, acho que é relativamente fácil provar, porque sabemos quantos camiões são necessários para suprir as necessidades dos palestinianos. E sabemos exatamente quantos camiões Israel permite que entrem.
Além disso, sabemos que foram destruídas estufas, campos agrícolas, embarcações de pesca. Israel destruiu toda a capacidade de produção de alimentos na Faixa de Gaza. Provavelmente, neste momento apenas 1 ou 2% dos alimentos que existem em Gaza são produzidos lá.
Sem provar a intenção, não se consegue provar um crime. (...) Os líderes israelitas disseram vezes sem conta que iam privar os palestinianos de comida.
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De visita a Portugal, Francesca Albanese tem vária(...)
Sabemos que Israel implementa estas restrições. Há vários documentos a comprovar que Israel restringe a entrada de comida.
E sabemos também que há intenção. Temos de nos lembrar que, para a lei internacional, a intenção é quase tudo. Sem provar a intenção, não se consegue provar um crime. E o que temos aqui, ao contrário de outras guerras, são abundantes provas de intenção, porque os líderes israelitas disseram vezes sem conta que iam privar os palestinianos de comida. Por isso, não será um problema demonstrar e provar que houve intenção.
Essas declarações aconteceram sobretudo nos primeiros dias de guerra. Depois o que vimos foi a narrativa de que iriam controlar a entrada de combustível, por exemplo, porque acabaria por servir os intentos do Hamas. E quanto à ajuda humanitária e aos camiões de alimentos, o argumento era que a falta de distribuição era culpa do Hamas.
Em primeiro lugar, há incidentes ou declarações de intenção que foram acontecendo até há poucas semanas, sobretudo por ministros de extrema-direita como [o ministro da Segurança Nacional Itamar] Ben-Gvir.
O argumento de que o Hamas usa o combustível ou que se apropria dos alimentos ou dos medicamentos é insuficiente em termos da lei, porque significaria que, para travar isso, estou disposto a levar a cabo uma punição coletiva – o que não é permitido. É ilegal.
Não se pode castigar uma população inteira com o propósito de impedir o Hamas de ficar com parte do combustível. Não se pode inutilizar todos os hospitais em Gaza porque o Hamas está a ficar com combustível. É ilegal.
Estas justificações não são satisfatórias perante a lei.
Mas devo acrescentar que, na minha opinião, a lei não vai resolver o problema. A lei não vai libertar os palestinianos. O que interessa é a vontade política e os interesses geopolíticos. E o que vemos hoje é a lei ser usada pelos poderes quando lhes interessa e, quando não interessa, esquecerem a lei.
Por exemplo, os Estados Unidos da América (EUA) têm inscrito no seu memorando de comércio de armas, muito claramente, que não podem fornecer armas a países ou partes em guerra que violem a lei internacional. Ninguém com olhos na cara pode afirmar que Israel não violou a lei internacional. E, contudo, o Departamento de Estado e o Pentágono conseguem ter advogados que desenvolvem acrobacias e conseguem afirmar que o fornecimento é legal. Isto acontece porque é do interesse geopolítico dos EUA continuar a apoiar Israel.
"O desafio é não permitir que a matança em Gaza se torne rotineira. Esse é o papel de cada pessoa que se preocupe: não se calar, não fechar os olhos, não olhar para o outro lado."
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Por isso, pensar que a lei pode resolver o problema é enganador. O que pode resolver o problema é a pressão. Pressão massiva e ininterrupta sobre as elites políticas e financeiras, para que elas invoquem a lei de acordo com o espírito com que foi criada.
Até lá, até que essa pressão aconteça, vão usar a lei como quiserem.
Para isso seria necessária alguma pressão da opinião pública...
Alguma não: pressão pública massiva.
Mas o que temos visto, como já vimos noutros conflitos, é que um grande choque inicial vai dando lugar a alguma normalização. Acredita que é o que está a acontecer? A opinião pública está dormente?
Esse é o desafio. Todo o tipo de violência à nossa volta pode ser normalizado. Da violência doméstica à guerra, passando pela ocupação colonial, pela tortura... Tudo pode ser normalizado se for mantido por tempo suficiente.
O desafio é não permitir que seja normalizado, que a matança em Gaza se torne rotineira.
E esse é o papel de cada pessoa que se preocupe: não se calar, não fechar os olhos, não olhar para o outro lado. Escrever cartas aos editores dos jornais, ligar aos seus representantes no governo, ir para a rua protestar, organizar vendas de bolos para angariar dinheiro para os feridos de Gaza, etc.
Todas as pessoas podem fazer algo. E se todas as pessoas fizerem algo, parece-me claro que esta guerra acabará. O problema é: como mobilizamos o grande público para resistir?
Como antecipa que será o futuro de Gaza, tendo em conta a evolução do conflito? O que poderá ser Gaza quando o conflito acabar?
É muito difícil ver uma luz neste momento. Não é claro para mim que vá ter um fim num curto prazo. Eu consigo imaginar uma forma de existência diferente entre Israel e a Palestina, uma existência de que eu gostaria de fazer parte.
Não é uma impossibilidade. Podemos pensar num país, do rio até ao mar, em que todas as pessoas tenham direitos iguais, em que haja algum tipo de partilha do poder e respeito pela cultura do outro, pela religião e pela língua. Podemos imaginar um futuro melhor para as pessoas que ali vivem e para a diáspora palestiniana, à qual foi negado o direito a regressar àquela zona. Podemos imaginar judeus israelitas e palestinianos a viverem lado a lado em paz. Eu consigo imaginar isso.
É o mesmo espírito messiânico que está a levar a cabo uma limpeza étnica na Cisjordânia, que quer uma recolonização do Norte de Gaza e que quer fazer desaparecer a mesquita no Monte do Templo.
Um ano de guerra Israel-Hamas
A história real de um acidente de autocarro na Cis(...)
Mas chegar lá a partir das ruínas de Gaza é extremamente difícil. Não só por causa do conflito local entre o projeto colonizador e tudo o resto. É difícil imaginar por causa dos líderes mundiais, por causa de pessoas como [Joe] Biden e [Donald] Trump e [Kamala] Harris e Keir Stammer e [Emmanuel] Macron e [Olaf] Scholz.
Os líderes deste mundo não estão a bater o pé e a dizer “basta, não apoiamos isto e daqui para a frente será assim”. Não o estão a fazer porque têm certos interesses geopolíticos no Médio Oriente, nos quais Israel tem um papel a desempenhar.
Se a situação não se alterar e os líderes políticos não mudarem a narrativa, acredita que será possível assistirmos, no futuro, a uma recolonização da Faixa de Gaza por Israel, como defendem alguns líderes israelitas de extrema-direita?
Sim. Quer dizer... Esta semana houve uma conferência às portas da Faixa de Gaza, a um quilómetro de Be’eri, onde aconteceu um dos massacres do Hamas; a um quilómetro do festival de música Nova onde houve outro massacre. Foi uma espécie de conferência de celebração. Havia festejos. E o motivo da celebração era que, de certa forma, neste tipo de pensamento distorcido e cruel, o 7 de Outubro é uma oportunidade para nós. É uma oportunidade de voltar a colonizar Gaza.
Estavam lá cinco ministros e 15 membros do Likud [partido do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu] que fazem parte do Knesset [parlamento israelita]. Um terço dos deputados do partido que está no governo estava lá, a dizer que é preciso esvaziar o Norte da Faixa de Gaza – que é o que Israel está a fazer neste preciso momento. A defender que temos de voltar a colonizar o norte e empurrar todos os palestinianos para o sul.
No seu entendimento, vão continuar a policiar os palestinianos no Sul de Gaza durante anos, enquanto constroem um colonato no Norte.
Outro aspeto que não tem recebido atenção mediática é o Monte do Templo, a mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém. Por um lado, o norte de Gaza é um elemento importante para os judeus messiânicos, que acreditam que temos de recapturar a terra bíblica de Israel. Por outro lado, entre esses judeus messiânicos, há quem queira destruir a mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém, no Monte do Templo. E deduzo que Ben-Gvir, que é ministro da Segurança Nacional, esteja nessa fação. Para estes tipos, é um assunto sério. E se fizerem isso, será o descontrolo total. Vai começar uma guerra religiosa no Médio Oriente, que não se sabe como acabará, quantos anos durará e quantas centenas de milhares, se não milhões, vão morrer.
Guerra Israel-Hamas
A ONU considera-os ilegais. Os palestinianos denun(...)
São aspetos para os quais algumas pessoas estão a começar a olhar e não sabemos o que está a ser feito por baixo da mesa. É o mesmo espírito messiânico que está a levar a cabo uma limpeza étnica na Cisjordânia, que quer uma recolonização do Norte de Gaza e que quer fazer desaparecer a mesquita no Monte do Templo.
Tudo isto está ligado e é o poder messiânico entranhado na política israelita que está a segurar Netanyahu no poder. Ele precisa deles e está a permitir que façam o que quiserem, sem entraves, devido à constelação política em torno do próprio Netanyahu.
Mas, conhecendo a sociedade israelita como conhece, acredita que isso seria possível? A forma de pensar de Ben-Gvir nesta matéria não é a da maioria da sociedade israelita, certo?
Acho que a forma de pensar de Ben-Gvir colonizou o Likud. Se antes havia uma distinção entre a ideologia de Ben-Gvir e a do Likud, não tenho a certeza que ainda exista.
Mas tem razão ao afirmar que o Likud e Ben-Gvir não representam toda a sociedade israelita. Talvez haja uma maioria, ou pelo menos metade da população israelita, que é contra isto. O que não significa que consigam... Uma maioria de judeus israelitas queria que Netanyahu fizesse um acordo para libertar os reféns e ele não o fez, porque queria que a guerra continuasse, não queria um cessar-fogo.
Portanto, não significa que a maioria consiga o que defende. E o que vemos hoje é Netanyahu a subir nas sondagens. Portanto, não é claro o que acontecerá. Netanyahu precisa desta situação.
Espero estar enganado. Deixe-me enquadrar assim: rezo mesmo, mesmo para estar enganado e para que algo melhor aconteça no futuro. Mas tenho de considerar o que vejo à minha frente. E esta é uma clara possibilidade.