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Um ano de guerra Israel-Hamas

Nathan Thrall. "A guerra está muito personalizada em Netanyahu, mas é errado acharmos que ele está fragilizado"

07 out, 2024 - 06:30 • Alexandre Abrantes Neves

A história real de um acidente de autocarro na Cisjordânia que matou oito crianças valeu um Pulitzer a Nathan Thrall. Norte-americano e com raízes judaicas, o jornalista e escritor é claro nas críticas que deixa a Israel e a Netanyahu – mas também não se coíbe de apontar o dedo às divisões internas e à corrupção na Palestina.

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À primeira vista, parece contraditório: norte-americano, judeu e a viver em Jerusalém, mas “profundamente contra as décadas de ocupação na Palestina”.

Nathan Thrall, jornalista e escritor, assistiu às primeiras imagens dos ataques do Hamas há um ano no escritório em casa: “lembro-me bem da ansiedade, ninguém esperava aquilo”. Atrás de si, as prateleiras da estante ainda se estavam a habituar a um novo inquilino – o seu novo livro tinha sido publicado há apenas quatro dias. “Uma coincidência estranha, no mínimo”, confessa.

Em “Um dia na vida de Abed Salama”, o título é auto explicativo: entre o início e o fim da história, passam apenas 24 horas, naquele que é talvez o pior dia da vida da personagem que dá nome ao livro. Quando deixou sair o filho para uma visita de estudo, este palestiniano jamais imaginou que o autocarro onde seguia o pequeno Milad, de cinco anos, iria capotar e incendiar-se num acidente com um camião na estrada de Jaba na Cisjordânia, a nordeste de Jerusalém.

Em duzentas páginas, percorremos quase oitenta anos de conflito e entramos em casas onde o medo e a incompreensão fecham a porta de um futuro melhor a sucessivas gerações. São saltos para trás e para a frente na narrativa, que ajudam a explicar as razões pelas quais os cuidados médicos demoraram a chegar naquela manhã de tempestade, em fevereiro de 2012, e não permitiram evitar a morte de oito crianças e dois adultos.

Nesta entrevista à Renascença – realizada em dois momentos, devido à escalada do conflito dos últimos dias –, o vencedor do prémio Pulitzer 2024 na categoria de não-ficção alterna entre a pele de escritor e a de analista. Thrall fala de uma retaliação de fachada por parte do Irão, denuncia uma “fragilidade fabricada” de Benjamin Netanyahu, reduz a estratégia de Israel a um jogo de custo-benefício e ainda deixa críticas às tensões internas da Palestina, que "só vêm acentuar ainda mais o conflito".

É impossível não começar pela escalada do conflito da última semana. Este é só o início de ataques constantes entre Israel e o Irão?

O Irão deu claramente a entender que não quer uma guerra direta com Israel nem com os Estados Unidos. O Irão está a tentar manter uma linha ténue entre, por um lado, responder de forma limitada à escalada de ataques de Israel, de modo a dissuadir ainda mais ataques, e, por outro lado, evitar uma retaliação que possa ser utilizada como pretexto para Israel continuar a escalada. Aliás, já declarou que, se Israel não respondesse à retaliação iraniana, não haveria mais ataques da parte deles.

E se Israel avançar contra o Irão, podemos esperar o início de um conflito com ataques constantes de parte a parte?

Desde o assassinato de Ismail Haniya [líder político do Hamas], as forças iranianas estão a ser atingidas por Israel várias vezes e praticamente não houve retaliação. A verdadeira preocupação do Irão não é tanto a guerra com Israel, mas sim a possibilidade de uma guerra com os Estados Unidos. A questão é se será algo realmente significativo ou, como foi agora, algo puramente teatral.

Parece sugerir que vai ser difícil travar Israel. Telaviv está a conduzir o Médio Oriente para uma guerra total, como já disseram o Egito, a Jordânia e o Iraque?

Israel já lançou uma guerra total contra o Líbano, e não é uma questão de saber se haverá uma guerra total – ela já aconteceu. Parece que o Hezbollah quer muito evitar uma guerra com Israel também, mas Israel continua a escalar e está a tornar muito difícil para o Hezbollah não retaliar.

Porque diz isso, numa altura em que também há ataques constantes vindos do Líbano?

Isto é uma campanha de mutilação em massa. Não é válido que Israel tenha efectuado um ataque indiscriminado contra todas as pessoas que se encontravam nas proximidades destes pagers e walkie talkies.

A primeira proposta de cessar-fogo com o Hezbollah acabou rejeitada, mas é provável que as próximas possam ser aceites por Israel?

Eles vão dizer que um papel como esse não vale nada. Já existe uma Resolução 1701 do Conselho de Segurança da ONU que proíbe a presença de grupos armados no sul do Líbano, junto à fronteira com Israel – a chamada linha azul – e não é cumprida. Eles vão perguntar: "porque havemos de concordar com outro pedaço de papel sem valor?".

Estas outras frentes de conflito serão tentativas de desviar atenções de Gaza, como acreditam muitos analistas?

Não creio que o objetivo dos ataques no Líbano seja desviar as atenções dos ataques de Gaza. Penso que Israel está bastante satisfeito com o facto de o mundo ter ficado insensível ao que se passa em Gaza. O mundo continuaria a funcionar, mesmo se os ataques no Líbano não tivessem acontecido.

Mas já são várias frentes de ofensiva e de conflito num só ano. Israel é capaz de se defender ou não?

Israel é mais do que capaz de se defender. É uma das forças armadas mais fortes da região. Veja-se que está a atacar palestinianos na Cisjordânia, palestinianos em Gaza, libaneses, sírios, iraquianos, iranianos e está a atacar em todo o lado.

Retaliação foi puramente teatral. O Irão não quer uma guerra direta com Israel ou os EUA

E essa imagem de força militar e de invencibilidade não mudou com os ataques de 7 de outubro?

A imagem de Israel foi prejudicada porque foi um ataque de um alcance sem precedentes e que ninguém pensava que o Hamas fosse capaz de fazer. Temos discutido muito se os ataques foram legítimos ou não, mas a questão é que, se Israel tivesse simplesmente um número normal de forças na fronteira com Gaza nessa altura, a forma como os acontecimentos desse dia se teriam desenrolado teria sido completamente diferente. Portanto, muito disto tem a ver apenas com um fracasso israelita, mais do que com um brilhante sucesso do Hamas.

A onda de contestação interna dos últimos meses veio desse fracasso? A imagem de Netanyahu está cada vez mais fragilizada?

Ele é muito forte, é errado acharmos que está fragilizado. Não parece que alguém seja capaz de o substituir, mas a política israelita é bastante imprevisível.

Então se fosse a eleições, ganharia?

Concentramo-nos demasiado em Netanyahu porque a política israelita personaliza a questão nele, mas é mais do que isso. Todos os governos israelitas, desde 1967, têm expandido os colonatos e restringido os palestinianos a espaços cada vez mais apertados. É o que acontece com os partidos à esquerda, à direita e ao centro. As pessoas que o iriam substituir são também apoiantes totais da guerra. Não existe uma verdadeira alternativa política.

No seu primeiro livro ("The Only Language They Understand", não publicado em Portugal), falava do facto de ser necessário puxar as duas partes para um acordo para ser coercivo de alguma forma. Atualmente, como é possível aplicar esta estratégia?

Israel é um estado racional – faz cálculos de custo-benefício e, quando os custos aumentam, reajusta a estratégia para minimizar os custos. Durante a Segunda Intifada, Israel tinha um número relativamente pequeno de colonos em Gaza e estava a pagar um preço muito elevado com os seus soldados. Pensaram “isto é demasiado derramamento de sangue para proteger um número demasiado pequeno de pessoas, por isso vamos retirar-nos de Gaza”.

Essa tese pode levar a mais ataques e mais mortes, com um prazo indeterminado...

A questão é saber qual o custo que os palestinianos e a comunidade internacional podem, em conjunto, impor a Israel para que este país decida um dia “é melhor para mim acabar com a ocupação”. No entanto, isso não está em cima da mesa e não podemos imaginar um futuro em que Israel seja banido dos Jogos Olímpicos, o Acordo de Associação UE-Israel seja cancelado, os EUA deixem de fornecer armas a Israel...

Mas tem havido vários apelos para contenção, incluindo de Joe Biden e António Guterres há dias, na Assembleia-Geral da ONU...

É um apelo vazio se tivermos o poder de acabar com esta guerra, como fazem os Estados Unidos, cortando as armas. Se temos esse poder e não o estamos a exercer e, em vez disso, apenas apelamos à contenção, isso não significa nada.

Até agora apenas fala de estratégia e de as partes quase se sentirem obrigadas a terminar o conflito. A solução não pode passar por negociar um cessar-fogo, até com mediação?

Não creio que a questão seja quem é o mediador. Israel exigiu que quer um acordo em Gaza em que lhe seja permitido manter as suas forças em Gaza e continuar a atacar depois da troca de reféns. O Hamas tem uma coisa que Israel quer – os reféns. Seriam suicidas se quisessem desistir do seu único trunfo, mas num acordo em que Israel é autorizado a bater-lhes e a continuar a bombardear... [é impossível].

Sobre o livro, gostaria de começar por um pormenor. Dizem-nos que a personagem que dá título à obra, Salama, não é religiosa. Tentou apresentar um conflito mais político do que religioso? Costumamos olhar para o conflito de uma forma errada?

O conflito é fundamentalmente político. É claro que as pessoas nesta parte do mundo são muito mais religiosas do que na Europa Ocidental, por exemplo, e a religião é uma parte importante da vida, da ideologia e da forma como as pessoas se enquadram. As pessoas não competem entre si por um entendimento religioso ou político. Aqui, o político é religioso e o religioso é político. Agora que me perguntou, acho que de alguma forma se fundem.

No livro, as personagens palestinianas saem muitas vezes prejudicadas devido a problemas internos, como a corrupção ou a discórdia em relação à Autoridade Palestiniana.

Precisamente sobre a Autoridade Palestiniana – é uma consequência da ocupação israelita, desacreditada aos olhos do seu próprio povo, e é óbvio para todos que apenas está a tornar a vida da ocupação mais longa, facilitando a ocupação e fazendo o trabalho do ocupante por ela. É claro que há outros problemas. Há corrupção e muitos outros problemas, mas essa é uma questão distinta da questão de saber se o povo palestiniano tem ou não direito à autodeterminação, se tem ou não direito à liberdade.

Mas os problemas não dificultam essa missão?

Algumas destas coisas são utilizadas por Israel como desculpa para privar os palestinianos da sua liberdade e essas desculpas não são legítimas. Mas será que dificultam o facto de os palestinianos estarem politicamente divididos, de existirem governos separados em Gaza e na Cisjordânia, de não haver acordo sobre uma estratégia nacional palestiniana? Será que estas coisas tornam mais difícil a libertação dos palestinianos? Sim, tornam.

A história parece dar mais destaque às tensões entre palestinianos do que as que existem entre israelitas...

Não acho que assim seja e, de qualquer forma, as duas situações são importantes. No que toca às divisões entre israelitas, de que ainda não falámos, as tensões têm a ver com questões internas ao judaísmo, com a forma como o Estado se vai tornar teocrático. Não há tensões sobre a ideia da Palestina – Israel vai continuar a controlar as vidas dos palestinianos indefinidamente.

Divide o livro em diferentes partes, cada uma delas dedicada a um ângulo do acidente, desde as vítimas até as autoridades e equipas médicas. É um reflexo da complexidade de todo o conflito?

Através da mente das personagens – tanto judias como palestinianas – tento mostrar quem são os arquitetos deste sistema de dominação. Por exemplo, a pessoa que criou o muro que cercou a comunidade de crianças, pais e professores que sofreram este trágico acidente de autocarro escolar. Aliás, o próprio muro é uma das personagens, também os postos de controlo que dificultaram o atendimento médico ao acidente.

O livro é um caleidoscópio, mostra a forma como muitos tipos de vida existem neste lugar, em estreita proximidade, mas em total segregação. Tudo, desde o acidente em diante, foi uma consequência previsível de um conjunto de políticas israelitas que negligenciam deliberadamente centenas de milhares de palestinianos.

No final do livro, dá a entender que nada disso mudou e que é provável que a situação se repita.

Já houve outros acidentes como este. Aliás, no livro também falamos de um incêndio e mostramos como é diferente o tratamento quando uma catástrofe acontece numa zona israelita ou numa zona palestiniana.

Qual a razão para escrever o livro na terceira pessoa? Para se distanciar um pouco dessa história, como se nunca a tivesse sentido em si, foi uma forma de os respeitar?

Não sei como seria essa história na primeira pessoa. Não é a minha história. Por isso, se fosse na primeira pessoa, seria um pouco estranho. Tentei afastar-me de mim na primeira pessoa, mas ao mesmo tempo esforcei-me para me aproximar destas pessoas e mostrar as suas perspectivas. Queria que o leitor calçasse os seus sapatos e visse o mundo através dos seus olhos.

Falou com estas pessoas desde o dia 7 de outubro?

Sim, com o Abed até nos últimos dias. Não tem sido fácil para eles. As restrições à circulação são tão grandes como sempre foram – atualmente, são necessárias horas para percorrer distâncias que antes demoravam meia hora. Houve uma enorme perda de postos de trabalho. Além disso tudo, a escala da matança neste momento em Gaza é algo nunca visto e que choca todos os seres humanos.

O livro é um caleidoscópio, mostra como muitos tipos de vida existem neste lugar, em proximidade, mas em total segregação

Como jornalista, que avaliação faz da cobertura do conflito?

Desequilibrada. Há uma clara distinção entre quem é subjugado e quem está a subjugar e a imprensa nem sempre o mostra, parece haver alguma confusão. Há um povo que foi ocupado e invadido e outro que parece não querer resolver o conflito, que parece não querer ceder. Muitas vezes olhamos para Israel e mostramos que é uma democracia, quando não é. É preciso percebermos essa distância, estarmos a par dessa distância e saber analisá-la.

Mas essa não poderá ser uma visão algo anti-sionista – e até parcial?

Os jornalistas hoje têm medo disso. Disso e de muitas outras coisas e é normal.

De represálias por parte do governo israelita?

Por exemplo.

E não seria necessário colocar mais jornalistas, nomeadamente de outras geografias, na Faixa de Gaza?

Antes de mais, acho que é importante não descredibilizarmos o trabalho fantástico de muitos jornalistas que estão na região. Em condições muito difíceis, estão a fazer um trabalho heroico e a relatar, da melhor forma que podem, o que veem e vivem. Mas se me fala de colocar jornalistas de agências internacionais, a minha resposta é claro que sim. Acho que é necessário que se acrescentem mais trabalhos rigorosos e credíveis.

Depois de ganhar o Pulitzer, disse que queria abrir mentalidades, nomeadamente de apoiantes de Israel. Sente que o tem conseguido?

Há várias citações minhas sobre isso e sem dúvida que esse é um dos meus objetivos – tornar os sionistas mais liberais, mais conscientes e alertas para o que se passa, abrir a sua mente, mudar as perspetivas, tentar alterar comportamentos e valores. Desde que publiquei o livro já recebi várias cartas de pessoas que disseram que a história os ajudou a mudar a forma como pensam sobre o conflito. Mas se me perguntar do governo israelita, não tive nem uma reação.

E esse objetivo já está terminado?

Nem pensar. Quero continuar a escrever histórias, livros de não ficção e focados sobre o que passa aqui. Ainda não tenho o próximo livro pronto, nem sequer o comecei, se é isso que me pergunta [risos].

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