09 out, 2024 - 21:00 • Diogo Camilo
A entrega dos prémios Nobel de 2024 começou esta semana e já laureou sete cientistas nas áreas da Medicina, Física e Química. Entre eles está o “padrinho da Inteligência Artificial”, que com outro investigador criou as redes neuronais que abriram caminho para ferramentas como o ChatGPT, ou a descoberta do microRNA, a mais pequena camada de informação das nossas células conhecida até hoje.
Com a ajuda de minhocas transparentes, Victor Ambros e Gary Ruvkun conseguiram identificar os elos de ligação que têm um papel essencial na atribuição de funções a cada célula e que estão diretamente envolvidos no desenvolvimento de órgãos ou no crescimento de tumores. Este microRNA, que existe em mais de mil formas diferentes no ser humano, valeu a ambos o Nobel da Medicina ou Fisiologia na segunda-feira.
Na terça-feira, o norte-americano John Hopfield, professor emérito na Universidade de Princeton, e o anglo-canadiano Geoffrey Hinton, professor emérito na Universidade de Toronto, receberam o prémio de Física por ajudarem a estabelecer a matriz da inteligência artificial moderna. Agora, um deles avisa para os perigos das máquinas começarem a ser mais inteligentes que os humanos.
E esta quarta-feira, o Nobel da Química foi dividido em duas descobertas diferentes que estão, no entanto, ligadas: metade para Demis Hassabis e John M. Jumper, que resolveram um problema com 50 anos ao desenvolver um modelo de inteligência artificial para prever as complexas estruturas das proteínas; e a outra metade para David Baker, que usou a sua imaginação para desenhar proteínas nunca antes vistas e que hoje são usadas em medicamentos e vacinas.
O Nobel de Medicina e Fisiologia deve-se à descoberta de algo que é essencial à vida e que tem vindo a desenvolver-se nos nossos corpos nas últimas centenas de milhões de anos, mas que só foi encontrada pela primeira vez há pouco mais de 30 anos.
O prémio deste ano começa no galardão de 1965, quando François Jacob e Jacque Monod foram premiados pela descoberta de como os genes são regulados, ou seja, de como transmitem a informação para que as moléculas saibam a sua função - onde têm de estar e o que têm a fazer.
Para a sua pesquisa, Victor Ambros e Gary Ruvkun usaram pequenas minhocas transparentes, a espécie "Caenorhabditis elegans", muito usada em investigação por possuir células nervosas e musculares semelhantes à de animais muito maiores e complexos, tornando-se um modelo útil para saber como os tecidos se desenvolvem em organismos multicelulares.
Aquilo que começou por ser uma procura por mutações nesta curiosa minhoca - e de como diferentes células se desenvolvem - tornou-se em algo muito maior, com a descoberta de um inteiro modelo de regulação de genes completamente novo até então e de moléculas de ligação ao mRNA, o intermediário entre os nossos genes e proteínas que serve de abreviatura para ácido ribonucleico.
Usando duas mutações diferentes da minhoca que não se desenvolviam de forma normal, Victor Ambros descobriu que o gene da primeira mutação (lin-4) bloqueava, de alguma forma, a atividade do gene da outra mutação (lin-14). Focando-se na primeira mutação, Ambros descobriu que esta não codificava uma proteína, como seria normal, mas sim pequenas moléculas de RNA.
Na altura, em 1993, sem saber o que lhe chamar, Ambros deu-lhe o nome de “pequenos RNA’s”, passando a chamar-se “microRNA” apenas em 2001.
Dupla reconhecida pela descoberta das moléculas de(...)
Do outro lado, Ruvkun centrou atenções na outra mutação, a lin-14, que codificava uma proteína, e completou o puzzle: o microRNA da mutação lin-4 estava a ligar-se ao RNA mensageiro da mutação lin-14, impedindo a tradução da proteína.
A descoberta foi inicialmente tratada como algo único neste tipo de minhocas, os nemátodos, mas em 2000 a equipa de Ruvkun identificou outro microRNA que, ao contrário do lin-4, era comum a humanos e à maioria do reino animal.
Desde então, foram descobertos dezenas de milhares de diferentes microRNA’s e só no genoma humano estão identificados quase dois mil tipos distintos. A conclusão da comunidade científica é de que estes genes evoluíram e expandiram-se em organismos multicelulares nos últimos 500 milhões de anos, até formarem os animais - e humanos - que conhecemos hoje, muito mais complexos a nível celular.
Mesmo sem uma aplicação médica conhecida e que possamos atribuir diretamente a esta descoberta, investigadores têm agora uma melhor perceção de como as células funcionam e que, sem os microRNA’s, não é possível o desenvolvimento de células ou tecidos.
Da mesma forma, quando ocorre uma falha na regulação de genes pelo microRNA, a mesma pode levar a doenças como tumores, diabetes ou doenças autoimunes, enquanto mutações na codificação de genes pelo microRNA podem causar a perda de cabelo congénita ou doenças relacionadas com olhos ou ossos.
Nos dias de hoje, se precisarmos de saber a resposta a uma pergunta mais complicada, quisermos um resumo por tópicos de um documento ou apenas uma receita com base nos ingredientes que temos à disposição no frigorífico, basta recorrermos ao ChatGPT ou a ferramentas como o Copilot da Microsoft ou o Gemini da Google.
Mas, até aos anos 40 do século passado, a gama de tecnologia capaz de pensar por nós era muito limitada. Com a descoberta da rede de neurónios - e do envio de sinais através de sinapses -, cresceu a vontade de replicar a maneira de funcionar do nosso cérebro e foi na estrutura do nosso sistema nervoso que um físico - John Hopfield - e um cientista da computação - Geoffrey Hinton - chegaram, de diferentes formas, a maneiras de a máquina aprender com o homem.
Em 1982, Hopfield desenvolveu uma rede que reconhece padrões e guarda-os para usar no futuro, corrigindo distorções. Imaginemos uma imagem digital, em que cada ponto é formado por um pixel: neste modelo criado por Hopfield, se a imagem estiver incompleta, a rede trabalha de maneira metódica para encontrar a imagem guardada mais aproximada.
Usando o método Hopfield como base para o seu trabalho, Geoffrey Hinton criou um novo método - a máquina Boltzmann - que consegue reconhecer elementos característicos para um determinado tipo de dados e que aprende, não através de instruções, mas depois de reconhecer vários exemplos dados.
David Baker, Demis Hassabis e John M. Jumper foram(...)
À Renascença, o físico e professor da Universidade de Coimbra Carlos Fiolhais explica como é que o Nobel mudou a nossa vida, lançando a inteligência artificial que conhecemos hoje e sendo um elemento transformador da sociedade.
“Hoje em dia temos máquinas que imitam o nosso cérebro e são capazes de aprender. O que eles fizeram foi propor, no fundo, imitações das nossas associações de neurónios”, afirma, falando sobre as redes neuronais artificiais, que tornam possível que as máquinas aprendam.
“Esses redes são feitas por ligações entre eles que podem ser ajustadas. E é precisamente o ajuste dessas ligações que permite à máquina aprender e isso está patente em todos os programas que hoje funcionam com inteligência artificial, como o ChatGPT”, exemplifica.
Dividida a metade, a primeira parte da distinção desta quarta-feira foi para Demis Hassabis e John M. Jumper, trabalhadores da DeepMind, uma empresa da Google especializada no desenvolvimento de máquinas de inteligência artificial.
Juntos conseguiram resolver um problema com o qual químicos de todo o mundo se debateram durante mais de 50 anos: a projeção da estrutura 3D de uma proteína a partir daquilo que a forma - as suas sequências de 20 aminoácidos, que podem ser repetidas de infinitas maneiras.
Em 2020, os dois lançaram um modelo de IA chamado AlphaFold2, capaz de visualizar a estrutura das quase 200 milhões de proteínas conhecidas. Desde então, o programa já foi utilizado por mais de dois milhões de pessoas, em 190 países, e permite a investigadores que testem diferentes conjugações de sequências de aminoácidos, dando espaço para que se perceba melhor fenómenos como a resistência a antibióticos ou se criem imagens de enzimas que conseguem decompor o plástico.
David Baker, Demis Hassabis e John M. Jumper foram(...)
A segunda parte do Nobel foi para David Baker, que sozinho desenvolveu algo que muitos consideravam até 2003 ser impossível: proteínas a partir do nada com funções completamente novas, em alguns casos, e que podem ser agora usadas como medicamentos, vacinas, nanomateriais ou sensores.
Além destas criações, Baker foi também responsável pelo projeto Rosetta, no qual a comunidade de investigação faz contribuições de formas tridimensionais de proteínas.
À Renascença, o professor do Instituto Superior Técnico Arlindo Oliveira explica como as duas descobertas estão ligadas: “O David Baker, além de ter projetado uma nova proteína, foi também o pai do sistema Rosetta, que prevê esta estrutura tridimensional, enquanto os outros dois criaram um sistema excecionalmente bom a calcular esta estrutura tridimensional”.
O investigador lembra também a importância da projeção de estruturas 3D de proteínas para o desenvolvimento de novos medicamentos ou tratamentos, indicando que em laboratório o mesmo trabalho é muito caro e que, em computador, é possível testar centenas de milhares de sequências de proteínas ao mesmo tempo.