11 set, 2024 - 16:00 • Marta Pedreira Mixão
A Fundação Champalimaud anunciou, esta quarta-feira, a atribuição do Prémio Visão António Champalimaud 2024 – no valor de um milhão de euros – a quatro investigadores pelos seus trabalhos na compreensão dos mecanismos neurais que permitem o reconhecimento facial – desde o reconhecimento inicial até à identificação da pessoa –, e a forma como vemos a arte, que também está intrinsecamente ligada à forma como o cérebro processa a visão.
Os vencedores do Prémio António Champalimaud de Visão 2024 são os investigadores Margaret Livingstone, Nancy Kanwisher, Doris Tsao e Winrich Freiwald.
O cérebro tem 100 mil milhões de neurónios que nos permitem processar os cinco sentidos, além de outras capacidades como pensar, falar, memorizar. Estas, e tantas outras funções, estão dependentes deste órgão com cerca de um quilo e meio (no caso de um adulto).
A compreensão de tudo isto integra a neurociência, o campo de estudo destes investigadores, cujo trabalho coletivo permitiu avanços significativos no campo da neurociência visual, abrindo as portas para novas formas de entender a forma como vemos o mundo.
Os investigadores Nancy Kanwisher, Doris Tsao e Winrich Freiwald descobriram zonas neurais específicas para o reconhecimento de rostos, o que permitiu compreender de que forma o cérebro processa e codifica as características faciais - desde o reconhecimento inicial até à identificação da pessoa, independentemente da sua pose –, um aspeto fundamental tanto da interação social como da cognição humana e que explicaremos mais à frente.
Nancy Kanwisher, do MIT, começou por identificar a área facial fusiforme (FFA), que é uma região cerebral localizada no córtex temporal inferior e especializada na perceção facial. Esta descoberta demonstrou que existe uma área específica que apenas é ativada perante imagens de rostos humanos e encontra-se praticamente no mesmo sítio em todos os indivíduos.
Depois das descobertas de Margaret Livingstone e Nancy Kanwisher, Winrich Freiwald, da Universidade Rockefeller, descobriu circuitos com funções especializadas da visão e cognição e, com Doris Tsao, da Universidade da Califórnia Berkeley, identificou uma "rede de processamento facial" – áreas que realizam a análise do movimento facial, o reconhecimento de rostos familiares, ligando a visão à memória e ao controlo da atenção. Os investigadores descobriram que mais de 95% dos neurónios desta pequena área respondiam seletivamente a imagens de rostos.
A forma como vemos a arte está também ligada à forma como o cérebro processa a visão e Margaret Livingstone, da Universidade de Harvard, foi responsável por demonstrar que as primeiras áreas do cérebro que processam o que as pessoas veem estão organizadas em partes separadas, especializadas na cor, na forma, no movimento e na profundidade.
Neste sentido, a investigadora explorou a forma como a biologia e as técnicas artísticas influenciam a nossa percepção da arte.
Para a neurocientista, os artistas desenvolveram uma certa percepção sobre a forma como vemos, que se antecipou à investigação científica sobre o neuro-processamento da informação visual.
O trabalho coletivo destes neurocientistas foi distinguido pelo seu impacto na neurociência visual, permitindo uma melhor compreensão da forma como o cérebro processa e reconhece os rostos - ao associarem a atividade de neurónios e regiões cerebrais específicas a este comportamento -, além de poderem influenciar a compreensão e tratamento de distúrbios relacionados com a percepção facial e perturbações da visão.
Em entrevista à Renascença, Margaret Livingstone explica como tudo começou com as discussões que tinha com David Hubel - um dos vencedores do Nobel da Medicina em 1981 pelas descobertas sobre o processamento da informação através da visão.
"Comecei a pegar em obras de arte e a usá-las para ilustrar a minha ciência. Depois descobri que isto era tudo o que as pessoas se lembravam das minhas palestras"
"Convenci David Hubel de que devíamos analisar as monoaminas e o córtex visual e quando estava a analisar a segregação das subdivisões seletivas e daltónicas da nossa via visual queria ilustrar o facto de que se tivéssemos luminância igual ou cores de valor igual, obtínhamos este efeito cintilante estranho. E isso revelava algo sobre a forma como processamos a cor e a luminosidade. E apercebi-me que os artistas faziam um trabalho muito melhor do que eu”, relata.
"O que é que o artista fez que faz com que toda a gente goste desta obra de arte?
Os artistas estudam há mais tempo do que os neurocientistas os processos visuais, por isso "sabem que, se usarem cores de igual luminância, as cores brilham e têm um aspeto alegre. Mas o que podemos fazer, agora, é facultar-lhes a teoria, a ciência, sobre o porquê de todas estas coisas", argumenta.
“O que é que o artista fez que salta um passo no processamento da informação visual ou invoca um fluxo e não outro? O que é que o artista fez que faz com que toda a gente goste desta obra de arte?”, questiona.
Para responder a esta questão, Livingstone procurou obras que todos reconhecem como “incríveis” e investigou “a neurobiologia subjacente" ao fascínio pelas obras.
Um exemplo disto, é a "Mona Lisa" de Da Vinci, na qual o artista criou uma "ilusão ótica", recorrendo de forma intuitiva a técnicas que começam agora a ter uma base científica.
Da Vinci percebeu que os raios de luz não chegam a um único ponto do olho, mas atingem a área central da retina - a melhor área do olho para ver pequenos pormenores -, enquanto a área em redor é melhor para captar sombras e preto e branco. Assim, quando olhamos para um objeto de frente, ele parece mais nítido, enquanto se olharmos de forma periférica, ele fica mais desfocado, como se estivesse mais longe.
Este é foi o truque de Da Vinci na criação do sorriso de Mona Lisa, que gera o efeito de um "sorriso interativo", que desaparece quando é olhado diretamente e que reaparece quando a visão se foca noutras partes da pintura.
Com estas análises, Livingstone procura explicar técnicas que são usadas há muito tempo, e de forma intuitiva, pelos artistas, detalhando a forma como a biologia da nossa visão afeta a percepção da arte.
“Por isso, comecei a pegar em obras de arte e a usá-las para ilustrar a minha ciência. E, depois, descobri que isto era tudo o que as pessoas se lembravam das minhas palestras. Não a ciência, mas a arte que estava na palestra”, recorda.
Mas como é que funciona esta percepção? A partir dos padrões de luz recebidos pelos olhos, o cérebro constrói a nossa percepção de um mundo tridimensional, composto por objetos com formas, cores e movimento. E o cérebro separara "todos estes domínios especializados”, havendo assim "domínios para rostos ou cenários, para cores, forma ou orientação".
Na década de 1980, foi proposto um modelo de função visual que inclui circuitos dorsal e ventral - duas vias corticais diferentes, cada uma para processar informações visuais diferentes.
"Descobrimos que há uma circuito dorsal que não é selecionado para a cor e é muito semelhante ao sistema visual da maioria dos outros mamíferos. Os primatas têm uma corrente ventral seletiva para a cor que é muito boa a reconhecer objetos. E fizemos experiências de percepção para mostrar isto, que se podia usar luminância igual ou cores de valor igual para dissecar o que um circuito fazia", explica Margaret Livingstone.
"O cérebro está subdividido em muitos módulo para várias coisas, cada área é composta por módulos", refere a neurocientista, explicando que há duas teorias principais.
"Uma é que estes módulos são todos optimizados para fazer o que fazem pela evolução, ou seja, são inatos. E a outra é que o cérebro é apenas uma arquitetura geral de domínio que se adapta a qualquer ambiente em que se encontre, ou seja, é um analisador estatístico do ambiente em que se encontra, e os neurónios ligam-se entre si através de regras de auto-organização".
"Estou muito do lado da arquitetura geral do domínio que se liga a si própria de acordo com o ambiente. Por isso, estamos a fazer experiências", defende.
Até agora, sabemos então que diferentes áreas do cérebro - e diferentes processos de percepção - são responsáveis por funções visuais específicas como cores, formas e movimento.
Winrich Freiwald identificou assim a existência de uma rede especializada composta por um número fixo de regiões seletivas do rosto, cada uma delas dedicada a uma dimensão diferente da informação facial. Todas estas regiões, exceto uma, estão interligadas para formar uma rede de processamento facial.
Em entrevista à Renascença, Freiwald explicou como decidiu tornar-se "neurocientista, pensando que poderia fazer descobertas sobre o cérebro e que estas poderiam ser usadas no futuro para ajudar pessoas com dificuldades de saúde mental ou perturbações neurológicas".
"Comecei a interessar-me por rostos, porque são objetos muito especiais no mundo. São importantes para nós, enquanto indivíduos sociais e mostram muita informação", justifica.
"Se olharmos para a cara de um bebé a sorrir, temos uma reação emocional. Estamos completamente indefesos e isso fá-lo-á feliz"
Freiwald estuda também a forma como o sistema visual do cérebro extrai o "significado social" de um rosto e depois influencia outros circuitos para gerar reações emocionais, ativar memórias, direcionar a atenção e orientar ações sociais.
"Se olharmos para a imagem de um rosto durante apenas uma fração de segundo, obtemos muita informação, mesmo que não queiramos. O nosso cérebro está lá para processar a informação do rosto e extrair até coisas como 'confiança'. Assim, formamos opiniões muito pormenorizadas sobre as outras pessoas só de olhar para as suas caras", explica o investigador.
"Se virmos alguém a olhar numa determinada direção, também vamos olhar, a nossa atenção é desviada para lá, mesmo que não esteja a acontecer nada de interessante. É automático, não há defesa contra isso"
Os rostos, além de nos permitirem identificar uma pessoa, permitem-nos perceber o seu "estado de espírito" através das suas expressões faciais, assim a mais pequena mudança na expressão de um rosto permite-nos obter mais informação, desempenhando um papel importante na nossa socialização e interação.
"Agora, temos alguma compreensão fundamental no domínio da identificação, mas o processamento de rostos é multidimensional. E, assim, se estivermos numa situação social, não importa apenas saber qual é a identidade do rosto, não importa apenas a expressão ou a direção do olhar, mas, sim, a combinação de todas estas coisas juntas", defende, elucidando que a sua investigação procurou "explorar estas diferentes dimensões - como estão a ser processadas no cérebro, como são processadas em conjunto e como dão origem a respostas comportamentais adequadas".
Ao estudar a forma como o sistema de processamento facial está integrado no cérebro, o laboratório de Freiwald explora as suas ligações ao comportamento social, tais como a forma como um sorriso pode provocar uma resposta emocional ou como um rosto pode ativar memórias antigas.
"Se olharmos para a cara de um bebé a sorrir, temos uma reação emocional. Estamos completamente indefesos e isso fá-lo-á feliz. E se virmos alguém a olhar numa determinada direção, também vamos olhar, a nossa atenção é desviada para lá, mesmo que não esteja a acontecer nada de interessante. É automático, não há defesa contra isso", exemplifica.
A compreensão dos circuitos que implementam estas funções complexas pode ajudar a compreender condições caracterizadas por respostas sociais ou emocionais atípicas, como o caso do autismo.
"A forma como o cérebro processa a informação que vem dos olhos sobre o rosto dos outros é surpreendentemente simples, há partes do cérebro que existem com um objetivo apenas, que é processar a informação do rosto"
Apesar de os rostos serem bastante complexos, a sua perceção pela nossa visão é muito simples.
Uma vez que existe um circuito dedicado ao seu processamento, os rostos oferecem uma oportunidade única para estudar o reconhecimento de objetos e as funções sociais e cognitivas do cérebro - como estímulos para a atenção, a emoção, memórias e os pensamentos.
"A forma como o cérebro processa a informação que vem dos olhos sobre o rosto dos outros é surpreendentemente simples, há partes do cérebro que existem com um objetivo apenas, que é processar a informação do rosto", afirma, acrescentando que "estas áreas são feitas de células que são seletivas" e que "respondem de forma diferente a rostos" quando em comparação com outros objetos.
Depois de a imagem ser captada pela retina, "há várias camadas de processamento", refere, "cada uma completamente composta de células seletivas de rosto que estão a tentar extrair diferentes pedaços de informação", por exemplo, diferentes áreas faciais vão processar caras de modo distinto, havendo células mais "seletivas para a orientação da cabeça", enquanto outras são mais dedicadas para a identidade do rosto. E estas áreas estão ligadas entre si.
Freiwald destaca ainda que a ligação entre a perceção de um rosto e a memória ("o reconhecimento de um rosto") acontece também numa parte específica do cérebro.
O investigador procura compreender melhor o funcionamento interno deste sistema.
"Quando reconhecemos um rosto, significa que já sabemos de quem é o rosto. Portanto, é um processo, mas é a interação da perceção e da memória. Compreendemos alguns dos mecanismos: como é que isso acontece, como é que funciona, mas ainda há muitas coisas que não compreendemos", refere, relembrando que o que vemos é "processado através de várias camadas até à identificação e depois ao reconhecimento".
O neurociensita explica que o trabalho do seu laboratório também está "intimamente ligado ao desenvolvimento de redes neurais artificiais".
"As que estão no telemóvel e que permitem associar um nome a uma imagem são construídas com base em princípios neurocientíficos e, agora, estamos a estudar em pormenor circuitos que fazem algo muito semelhante, como o reconhecimento facial".
O investigador avança que estão "prestes a descobrir novos princípios de processamento de informação no cérebro" que, acredita," terão um impacto na tecnologia".
"Isto permitir-nos-á eventualmente construir uma rede neural artificial que funcione exatamente como o nosso circuito de reconhecimento facial", refere.
"Se o conseguirmos construir, significa que compreendemos completamente o sistema", afirma, numa alusão à célebre frase do físico Richard Feynman.
O laboratório que Winrich Freiwald, na Universidade de Rockefeller, focado no reconhecimento facial e na atenção, está a procurar, agora, "compreender como o cérebro gera sentimentos e como são alterados na depressão", depois de terem encontrado "princípios organizadores que nos permitem lidar com a complexidade do cérebro de formas que não imaginávamos antes".
Esta rede de processamento da face identificada por Freiwald, pode ainda ajudar a desvendar a organização básica do cérebro, mostrando como os neurónios extraem e integram a informação ou como esta se propaga nas redes neuronais e porque é que o processamento da informação visual está organizado em hierarquias. Além disso, pode contribuir para descobrir como a alteração dos circuitos de reconhecimento facial pode conduzir a perturbações psiquiátricas.
"Tenho esperança que venhamos a descobrir outros princípios organizadores, que sejam igualmente simples, mas talvez diferentes dos que já descobrimos, que tornem outros problemas tratáveis, que estão atualmente fora do nosso alcance. Agora, temos um circuito para o processamento de rostos e, em muitos domínios de perturbações psiquiátricas, mas também de perturbações do desenvolvimento neurológico, estas perturbações afetam tanto o nosso bem-estar emocional e social, que requerem realmente o processamento de rostos. Qualquer conhecimento que tenhamos aqui ajuda-nos a compreender isto", argumenta.
O investigador destaca ainda que "as duas direções" que mais o interessam são: "a depressão, é uma doença debilitante e que toda a gente conhece alguém que sofre dela", e o autismo.
"No meu laboratório, trabalhámos na segunda rede que controla o movimento do rosto, incluindo a expressão das emoções e, se tivermos estas duas redes, podemos agora preencher as lacunas. O que é que está a acontecer no meio? Pensem em quando se apercebem de uma cara sorridente. Se estivermos de bom humor, sorrimos de volta. Se estivermos de mau humor e não sorrirmos de volta, talvez até fiquemos irritados com alguém que nos sorri e façamos uma expressão facial diferente", sugere.
Sobre o autismo, conta que o investigador Miguel Costa Branco, da Faculdade de Medicina de Coimbra, o alertou "para o facto de que muitas pessoas no espetro do autismo terem dificuldades em reconhecer expressões faciais" e que tem ideias de como treinar pessoas com esta condição para melhorar o reconhecimento de expressões".
"Sei onde o reconhecimento das expressões faciais está a acontecer no cérebro e tenho as ferramentas para compreender como se processa."
Freiwald também estuda a forma como o cérebro exerce o controlo da atenção e como esta interage com o ambiente e as representações dos objetos, tendo identificado uma nova área cerebral para o controlo da atenção.
"Utilizámos a mesma abordagem - usada para descobrir os neurónios da face na rede da face - para encontrar outra região, uma região adicional que controla a atenção. Digo adicional, porque eram conhecidas duas regiões principais e descobrimos uma terceira, que está numa localização muito invulgar, na verdade perto das áreas da face", revela.
"Foi algo completamente inesperado! Por isso, penso que é a descoberta mais surpreendente que fizemos", acrescenta.
A visão é um processo ativo que escolhe o que é relevante e que rejeita o que não é.
O investigador explica que "as áreas, que sabíamos estarem envolvidas no controlo da atenção, estão muito ligadas ao domínio dos movimentos oculares e, muitas vezes, aquilo a que se está a prestar atenção é também aquilo para que se está a olhar. Mas aqui está uma área que parece estar separada dessa ligação e está realmente muito mais envolvida no reconhecimento de objetos".
Winrich Freiwald acredita que esta descoberta poderá ter "implicações em muitos domínios, incluindo a consciência e, na verdade, a interação do mundo externo e dos nossos mundos internos".
Quanto à distinção que recebeu, Freiwald descreve-a como "uma honra incrível".
"Também devo dizer que, agora, significa muito ter uma ligação ao Instituto Champalimaud, que é uma história de sucesso espantosa. Gosto muito de sublinhar isto porque, quando estamos aqui perto como portugueses, podemos não nos aperceber... Mas este é o único exemplo que conheço em que um novo instituto de investigação foi fundado a partir do nada e, em poucos anos, tornou-se num dos principais institutos de investigação em neurociência do mundo", sublinha.
O prémio da Fundação Champalimaud é o maior do mundo na área da visão. Nos anos ímpares é atribuído a organizações que trabalham no terreno e nos anos pares distingue a área da pesquisa. O júri é presidido pelo oftalmologista e epidemiologista norte-americano Alfred Sommer.
O prémio tem o nome do industrial português António Champalimaud (1918-2004), que deixou em testamento a criação da Fundação Champalimaud e morreu cego e com um cancro, uma das doenças estudadas no centro de investigação da instituição.