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Entrevista Renascença

E depois da JMJ? "Se os jovens são simplesmente abandonados, vão-se embora"

14 ago, 2024 - 10:07 • Ana Kotowicz em Varsóvia

Jarosław Mrówczyński é secretário-geral adjunto da Conferência Episcopal Polaca. A Jornada Mundial da Juventude, que na Polónia aconteceu em 2016, foi o arranque da conversa.

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Já esteve em Portugal, para visitar Fátima, mas não tem certeza da data. Foi há uns dez anos, diz à Renascença Jarosław Mrówczyński, que é desde 2008 secretário-geral adjunto da Conferência Episcopal Polaca.

O que se lembra dessa altura é que viajava de Santiago de Compostela para Portugal. Com muito menos tempo do que esperava para chegar ao Santuário de Fátima - quando atravessou a fronteira não tinha presente que havia uma diferença no fuso horário -, acabou a ser escoltado pela polícia, que aceitou ajudá-lo porque a matrícula do seu carro alugado era portuguesa e não espanhola. Assim, chegou a tempo ao santuário, onde diz ter tido uma experiência inesquecível.

Com a Conferência Espiscopal Portuguesa não mantém muitos laços, mas lembra-se de conhecer Monsenhor Duarte da Cunha, quando o sacerdote português foi secretário-geral do Conselho das Conferências Episcopais da Europa, cargo que ocupou durante uma década.

Numa altura em que Portugal celebra um ano da Jornada Mundial da Juventude, deixa um conselho: se os jovens forem deixados sozinhos não é certo que façam o seu caminho de desenvolvimento espiritual, por muito que tenham estado envolvidos na JMJ. Cabe aos sacerdotes que lhes estão mais próximos, nas paróquias, conseguir chegar até eles.

A Jornada Mundial da Juventude aconteceu em Portugal há um ano e, na Polónia, foi em 2016. Há muita expectativa sobre o que se pode esperar. Aqui, assistiu a alguma diferença, por exemplo, no envolvimento dos jovens? O que acha que se pode esperar em Portugal?

Sim, diria que sim. O que se pode esperar é algo que acontece quando os jovens se envolvem nestas organizações. Quando há empenho. Se estão, de alguma forma, ligados a um padre que está com eles, a ajudá-los, ou à paróquia, ou a qualquer centro que é, de alguma forma, responsável por qualquer tipo de atividade… Tudo depende dessas pessoas que são responsáveis pela paróquia ou pelo centro, ou que têm contactos pessoais com o padre. Portanto, temos de distinguir dois aspectos: primeiro, as emoções, que são muito flexíveis.

Portanto, primeiro há entusiasmo e, quando o estímulo acaba, pode haver uma espécie de colapso, uma espécie de desilusão por não se estar a passar nada. Não temos nada para fazer, não há nenhuma meta para realizar, e sentimo-nos frustrados porque já não nos sentimos necessários.

Isto é uma espécie de perigo, porque se todo o ambiente se basear apenas nestas experiências emocionais — que são boas, não as estou a criticar —, há o perigo de se sentirem aborrecidos ou frustrados e de se irem embora. Mas se se encontrarem pessoas que possam, de alguma forma, trabalhar com eles…


O crescimento espiritual é como o crescimento económico, tem um mínimo e um máximo. No crescimento espiritual, temos momentos de encontro avassalador com o amor, a paz e tudo o mais.

Mas depois disso, tem de haver um momento de purificação. Se nos sentimos abandonados, aborrecidos, se sentimos que ninguém nos ama, que Deus não nos ama e não está interessado em nós, nesse caso, digo adeus.

Esta é a lição de Loyola, o patrono de hoje [31 de julho]. Para haver equilíbrio, há um tempo de tristeza e esse tempo de purificação, e o tempo desse sentimento que eu sinto. Não sei como dizer isto em inglês. "Nuisance" [incómodo, aborrecimento]. É uma espécie de preocupação, e uma espécie de angústia. Uma espécie de medo, ou algo do género, tristeza, e por aí fora.

Portanto, voltando ao que interessa: as expectativas podem ser grandes, mas o trabalho é básico. Quando os holofotes se apagam, já não há espetáculo, não há emoções, há vida quotidiana. E nesta vida quotidiana, tudo depende das pessoas que são responsáveis por estes jovens. Não se vão desenvolver nem crescer sozinhos. Estas pessoas têm de conseguir agarrá-los, porque este encontro de jovens é uma ocasião para chegar aos jovens. Eles estão concentrados em algo. Isso é bom, mas quando acaba, o grupo deve ser ajudado a desenvolver um aspecto mais maduro da sua vida espiritual.

Ou seja, a JMJ não deve ser encarada como um evento único?

Não, absolutamente não.


Quando os holofotes se apagam, já não há espetáculo, não há emoções, há vida quotidiana. E nesta vida quotidiana, tudo depende das pessoas que são responsáveis por estes jovens. Não se vão desenvolver nem crescer sozinhos. Estas pessoas têm de conseguir agarrá-los, porque este encontro de jovens é uma ocasião para chegar aos jovens.

Como é que se pode fazer isso?

Rezando. Orando. Adoração ao Santíssimo Sacramento. E também um trabalho muito sábio e maduro daqueles que são responsáveis por essas pessoas. Não se trata apenas da oração, também depende do padre.

Eu trabalho aqui, mas aos domingos vou a uma paróquia e observo como é que os padres estão a trabalhar. Se há um padre que não quer saber, não vai atrair ninguém. Mas se o padre se preocupa... Se o padre estiver empenhado... Vou mostrar-vos um exemplo. Posso?

Claro que sim.

Tínhamos um padre que era muito novo, muito talentoso, carismático. E os jovens, os pais e as mães corriam para ele. Mas ele mudou de paróquia, e veio um novo que era uma espécie de desastre. Levou seis meses para destruir tudo o que foi construído antes. Só as unidades mais fortes sobreviveram. Hoje em dia, há um ano ou dois, chegou um novo, muito jovem e muito enérgico. E organizou férias para os miúdos. Levou uns 40 miúdos de férias. E depois de voltar, disse: "Para o ano, vamos precisar de dois treinadores em vez de um” porque a experiência foi tão boa. E os miúdos querem ir para a paróquia, para a igreja, para se envolverem. E isto é um trabalho muito orgânico, não acontece de um dia para o outro, sabe. É basicamente um processo: ou os jovens se desenvolvem ou, se são simplesmente abandonados, vão-se embora.

Está a falar de padres que não se envolvem. Mas a Igreja Católica não é como uma multinacional que pode despedir alguém que não se enquadra. Portanto, como é que se resolve essas situações?

É por isso que eu não quero ser bispo. Demasiado trabalho. [risos]

Não se pode obrigar ninguém, nem um padre, a comprometer-se, certo?

Sim. Se alguém está, por exemplo, esgotado... Como disse, numa empresa, posso despedi-lo e pronto. Na igreja, não. Isso é a preocupação do bispo: o que fazer com alguém que não quer ser, que não sente que deve ser mais, que não sente o carisma. É muito complicado. Não há solução. Quero dizer, há a solução geral, porque tudo depende da incorporação da graça.

E Deus dá a graça, mas um homem livre pode responder a isso, ou não. Pode dizer que não está interessado. Ontem, alguém me pediu para fazer um exorcismo num sítio, no centro de Varsóvia, onde acontecem coisas más. Não quero falar muito sobre isso. Não sou um exorcista, mas posso abençoar o local, e tenho alguns instrumentos para pelo menos ajudar quem pede essa ajuda. E eu sei que quando faço esse ministério, acontece sempre alguma coisa estranha, antes ou depois.

E essas coisas acontecem, esses acontecimentos tentam, pelo menos, assustar-me, ou tirar-me o envolvimento. Acontece sempre.

Está a falar de que tipo de acontecimentos?

Fui lá ontem e, no domingo, estava a pensar no que iria acontecer. Felizmente, encontrei um lugar de estacionamento, o que não é fácil no centro de Varsóvia. Acho que é assim em todas as grandes cidades europeias, e também em Nova Iorque. Tranquei o carro e tive de o bloquear, para que ninguém o pudesse roubar. Bloqueei o carro e pus as chaves na minha perna, e paguei o estacionamento, sem sair do carro, através da aplicação no meu telemóvel. Quando abri a porta, levantei-me com estas chaves [mostra as chaves com a mão]. E esqueci-me disso. Elas caíram na rua e, infelizmente, eu estava mesmo ao lado de uma sarjeta — caíram no buraco. O carro ficou bloqueado. E mesmo que conseguisse ligar o carro sem usar a chave, carregando no botão, ele estava bloqueado. E pergunto-me: o que hei-de fazer? Devo ir onde é suposto ir? Ou fico aqui, a olhar para o carro, à espera de ajuda? E decidi ir. Fui para lá. Fiz o meu trabalho.

No final desta situação, as senhoras perguntaram-me o que tinha acontecido porque viram que estava perturbado. Não estava em mim. E, de repente, toda a situação mudou. Chamaram um homem que lhes estava a tratar da casa toda, a reparar o telhado, e resolveram-me a situação.

Mas o objetivo deste acontecimento era que eu não fizesse este trabalho. Quando eu faço isto, acontece sempre algo infeliz, que não é fácil, não é agradável. Se eu me concentrar no todo, vejo que este é o trabalho do espírito do mal. Mas também vejo a ajuda divina. Ele chegou, ouvi-O em mim. Ele disse: fica calmo porque eu trato disto.

Quando olho para o aspecto geral, posso ver as provações que deveriam desencorajar-me, não empreender o ministério que eu deveria fazer. Depois, quando o faço, ultrapasso o problema e vejo a ajuda que recebo.

E sente sempre isso?

No momento certo, é tão penetrante que fico a tremer e tento controlar-me, certo? É muito humano, mas por dentro sinto paz. É muito difícil de explicar, mas consigo sentir a presença que me está a apoiar. Portanto, é como se fossem forças divergentes: uma diz-me para me ir embora, a outra diz-me para ficar e resolver o problema.

Como é que decide que voz deve ouvir?

A paz do coração. Quer ouvir este exemplo?

Sim, claro.

Há um livro muito bom de Walter Ciszek, um jesuíta americano de origem polaca que, nos anos 30, decidiu ir para a União Soviética para evangelizar os comunistas. Por isso, licenciou-se num colégio soviético, em Roma, e foi colocado, antes da II Guerra, numa paróquia na fronteira da Segunda República [termo que designa o território da Polónia entre a I e a II Guerra Mundial]. Era mesmo ao lado da União Soviética, no território da atual Bielorrússia. Quando os soviéticos entraram na Polónia, a 17 de setembro de 1939, ele estava a trabalhar na paróquia desta cidade, embora não pudesse atravessar a fronteira. Quando os soviéticos entraram, toda a perspetiva de entrada na União Soviética estava aberta e ele teve esta hesitação: ou ficava com estas pessoas que estavam a ser aterrorizadas pelos soviéticos — e ele sentia que elas precisavam dele — ou ia para o interior, para Ural [região russa].


Foi para a capela, para perceber o que era correto, e teve esta racionalização: “As pessoas estão num estado muito mau. Precisam de mim, têm medo dos comunistas e a situação é muito má. Devo ficar.” Mas quando decidiu ficar, não sentiu a paz e foi, de novo, à capela.

Depois disso, decidiu ir — e escreveu sobre isso no livro. Se ele soubesse o que ia acontecer, não teria decidido ir para a União Soviética, mas não sabia. Por isso, decidiu ir. E quando decidiu ir, a paz chegou. E ele sabia que era a solução correta, a decisão correca. Loyola chama a isso um discernimento de espíritos.

[A 17 de setembro de 1939, sem uma declaração formal de guerra, a União Soviética invadiu a Polónia, 16 dias depois de a Alemanha Nazi ter feito exatamente o mesmo. No final de agosto, as duas nações tinham assinado um pacto de não agressão e a 6 de outubro, Alemanha e União Soviética tinham anexado e dividido entre elas toda a Polónia.]

E um dos frutos do discernimento é a paz do coração, o que não é assim tão fácil.

Disse antes que não é um exorcista…

Não, mas sou chamado a fazer exorcismos. Há uma grande diferença porque, como padre, tenho o poder de fazer um exorcismo regular. Posso abençoar um sítio, posso pôr óleo ou sal na água e posso dizer uma bênção. Mas se a presença estiver bem enraizada, só o exorcista pode fazer isso, tem uma delegação do bispo. Eu, como padre, se fizesse isso, provavelmente seria possuído, porque estaria a entrar num campo sobre o qual não tenho poder. Só posso fazer isto, nestes limites, dentro do poder que tenho.

Isto é uma coisa que acontece frequentemente?

Acontece, porque as pessoas da paróquia sabem que me acontecem coisas deste género. Portanto, se confiam em mim e se há uma situação fora do controle, quer dizer, do controle natural, tentam perceber o que é que se passa. Não acontece muitas vezes, felizmente, porque não é esse o meu trabalho.

Na verdade, o meu trabalho é a diplomacia, mas estou envolvido na vida pastoral de alguma forma. Estou a falar de envolvimento porque estávamos a falar disso. Eu podia fechar-me dentro do trabalho que faço aqui, não é? Em muitos aspectos, podia fazê-lo entre as seis e as quatro da tarde. Tenho todo o direito de ter o meu tempo livre e de usá-lo. Mas não foi por isso que me tornei padre.


Se alguém está, por exemplo, esgotado... Como disse, numa empresa, posso despedi-lo e pronto. Na igreja, não. Isso é a preocupação do bispo: o que fazer com alguém que não quer ser, que não sente que deve ser mais, que não sente o carisma. É muito complicado. Não há solução. Quero dizer, há a solução geral, porque tudo depende da incorporação da graça. E Deus dá a graça, mas um homem livre pode responder a isso, ou não.


Então por que motivo foi?

Qual foi o meu propósito?

Sim.

O meu propósito... Eu era um estudante de relações externas e de economia do comércio externo. Foi-me concedido um estágio na AIESEC. A AIESEC é uma organização de estudantes que estudam economia e que se concentra no intercâmbio de estágios em todo o mundo — uma espécie de Erasmus atual. Por isso, fiz este estágio. Fiz o estágio em Viena. Um ano depois, fiz um estágio em Liubliana, na Eslovénia. Mas quando lá fui, ninguém estava à minha espera.

Que idade é que tinha?

Tinha 24, ou 23, acho que era o último ano dos meus estudos. Ninguém estava à minha espera e tinha muito pouco dinheiro porque não estava preparado para aquilo. Quando fui para Viena, estava alguém à minha espera na estação e prepararam tudo. Por isso, pensei que ia acontecer a mesma coisa. Depois de muitas aventuras, passei três dias num mosteiro perto de Rubiana [comuna italiana da região do Piemonte, província de Turim].


Depois de uma viagem muito difícil – demorei dois dias, acho eu, no comboio estava muito calor, estávamos em pleno mês de julho —, quando acordei senti isto, o que eu digo que é a essência da minha vida.

Eles estavam a marchar com os capuzes, a ir para a fila e eu estava de pé, de fora, foi a minha primeira experiência ao entrar neste mosteiro. Sentia-me como se estivesse a entrar na sepultura. E estava um bocado assustado. No dia seguinte, estavam a almoçar e lá estava o silêncio e ninguém. De repente, às 12 horas, a porta abre-se e os monges vêm com os hábitos e os capuzes. Toda a gente se ajoelha. Eu aceno com a cabeça, tento encontrar uma reação, mas ninguém se ocupa de mim. No fim, o último pára. Indica-me o caminho e leva-me até ao refúgio, onde almocei com eles. É impressionante. Depois destes três dias, percebi que a coisa mais importante na minha vida é a paz do meu coração. E andei à procura dessa paz durante mais cinco anos.

E encontrou-a?

Encontrei-a quando entrei no seminário. E mesmo estando no seminário, houve provas para me tirar de lá. Tinha a proposta de me tornar diretor da Coca-Cola na Polónia. Na altura, era um cargo muito importante, mas naquele tempo, eram os anos 1990, não se podia imaginar que se pudesse receber este tipo de proposta.

E eu tive esse discernimento. Estava sentado na sala do seminário e disse: “Fico aqui, em paz. Saio e aceito esta oferta, com muito dinheiro e todo o tipo de benefícios, privilégios, e não sinto paz.” Recebi um telefonema de Viena, dois ou três dias depois, com outra proposta para me tornar diretor-geral da atual Clear Channel, uma empresa de publicidade exterior.

E, nessa altura, já estava no seminário, é isso?

Sim, e aconteceu a mesma coisa. “Fico aqui e continuo os meus estudos? Vou-me embora, tenho os meus estudos na universidade. Então fico ou vou-me embora? Fico, paz. Vou-me embora, sem paz. Fico.”

E isto é muito bom, embora por vezes tenha de o pagar, claro. Não tenho mulher, não tenho filhos e sinto-me de alguma forma... A solidão é por vezes muito dolorosa. Mas este é o preço.


Não acontece todos os dias [a comunicação com Deus]. Foi o que eu disse sobre a juventude portuguesa. Há dias em que há silêncio. Eu quero ouvir alguma coisa e não ouço nada. E às vezes… Ele vem sempre de repente...


Arrepende-se de alguma coisa? Ainda sente essa paz de que fala?

Em geral, sim. Por isso, divido a minha vida em duas partes: quando tive a vida, digamos, mundana e depois, quando me tornei padre, o que é uma espécie de escândalo na minha família, porque eles podiam esperar tudo, mas nunca essa escolha. Há essas duas partes da minha vida. É a boa e a má. Quero dizer, não é má, mas não é tão frutuosa.

Vem de uma família católica?

Sim, uma família católica normal. Vão à igreja, quer dizer, frequentam a igreja. Mas isto é outra coisa, quando se vai à igreja, se vai à missa, certo? Uma coisa absolutamente diferente é quando temos contacto pessoal com Ele, com Deus, e nos correspondemos com Ele, comunicamos com Ele, e podemos sentir-nos apoiados por Ele, e Ele mostra-nos o caminho, diz-nos o que fazer, e assim por diante. Isto é uma vida absolutamente diferente.

Como é que vive essa comunicação quotidiana?

Não acontece todos os dias. Foi o que eu disse sobre a juventude portuguesa. Há dias em que há silêncio. Eu quero ouvir alguma coisa e não ouço nada. E às vezes… Ele vem sempre de repente...

Há três formas de comunicação. Uma é a palavra de Deus — o que aprendi nos Estados Unidos. A segunda é a voz da minha consciência. Não. A primeira é a palavra da minha consciência, o cerne da questão. A segunda é a palavra de Deus, que vem como um "rema" (chama-se "rema" em grego — já explico o que significa) e a terceira, as chamadas coincidências. Sabe o que é que Einstein chamou às coincidências?

Não, não sei.

Coincidência é Deus a passar incógnito. Acontece alguma coisa que não estavas à espera, surpreendeu-te. E alguém que tem esta comunicação, pergunta a si próprio o que é que isso significa. O que é que devo entender sobre esta situação concreta? E com Deus… Com a palavra de Deus, isso vivenciei em Nova Iorque. Disseram-me para ler a Bíblia, que é muito monótona e não tão divertida como dançar na discoteca, certo?

Isso aconteceu antes de ir para o seminário?

Sim, trabalhei lá numa empresa comercial americana e alemã e Nova Iorque está muito cheia de pessoas e veículos, não é? Por isso, às vezes é melhor usar a bicicleta. Chamava-lhe "cabra". Ela-cabra ("She goat"). Era uma bicicleta normal, nada de especial. E uma vez um amigo meu veio ter comigo: "Sabes, há um negócio, temos aqui uma bicicleta Peugeot para comprar.” Eu respondi: “Ok, ok. Qual é o preço?” “50 dólares.” E eu disse: “50 dólares, meu Deus, vale pelo menos 500 dólares. De onde é que ela é?” “Não perguntes”, disse ele, “é um ótimo negócio”. Eu respondi: “Vá lá, é roubado?” “Não queiras saber, leva-a”, disse-me ele.

E eu fiquei com aquela sensação... É um bom negócio, não é? Por outro lado, não está certo. E à noite — eu tinha o costume de ler passagens da Bíblia, por isso abria a Bíblia ao acaso e lia duas páginas —, nessa noite, abri o livro de Tobias. Há uma história em que Tobias fica cego, e a sua mulher vai ao mercado e compra as coisas necessárias para a casa e uma cabra. Lembra-se da bicicleta? Chamava-a de cabra, não era?

Sim, sim, lembro-me.

Sete horas depois da conversa com o meu amigo, leio isto. A mulher traz uma cabra para casa e Tobias, cego, toca na cabra e pergunta: “O que é isto?” Ela diz-lhe que é uma cabra. E o Tobias pergunta de onde é que ela vem. “Não é roubada? Porque se for, não vale a pena. Não podemos ter uma coisa roubada em nossa casa.” E eu pensei: não, não, não, isto não está a acontecer. Esta era a resposta clara à minha hesitação e discernimento, certo? E isto é "rema". Em grego significa palavra. Há duas palavras: "logos" é a palavra superficial, quando leio a história e ela não me toca. E há "rema", que me diz o que devo fazer.

É por isso que existe a palavra viva de Deus na Bíblia. Por isso, se alguém descobrir isto, tem a luz no seu caminho.

Acha que qualquer pessoa pode descobrir isso?

Toda a gente. A única coisa que é preciso é ter a prática da leitura. Orígenes, um padre cristão, disse que o Espírito Santo vive na bíblia.


Sempre que abres a Bíblia e lês uma frase, abres uma janela da tua alma ao Espírito Santo. Depois disso, tens de o deixar entrar. Claro que é preciso ter essa disposição e isso acontece de repente, não é algo que se possa arranjar. É impossível. Ele não atua dessa forma.

Quando foi a primeira vez que sentiu que Deus lhe falava?

Naquela altura, com a cabra. Antes disso, costumava ler e era muito cansativo, porque abria e lia as cartas de São Paulo. Lembro-me que ia para o seminário e no autocarro estava a ler e a pensar: "De que está ele a falar, São Paulo, nestas cartas?” Não conseguia perceber nada porque não tinha preparação filosófica e teológica. Não fazia ideia. Os textos eram tão difíceis para mim, mas mesmo assim continuei a ler. Quando o descobri, ele veio com a frase vocacional. Três meses depois. Disse-me exatamente o que devia fazer.

E eu soube que devia voltar para a Polónia. Foi um acontecimento que mudou a minha vida. Não, foi a revolução na minha vida. Tive de cancelar tudo o que tinha feito até então. E perguntava-me: os meus estudos, a minha educação, para que serve isso? Mas quando me tornei padre, e fui ordenado…

Quando é que isso aconteceu?

Em 1999. Então, o primaz decidiu tornar-me seu secretário e aí descobri para que servia a minha educação.

Então, hoje em dia, está a usar a diplomacia?

Com certeza.


Sempre que abres a Bíblia e lês uma frase, abres uma janela da tua alma ao Espírito Santo. Depois disso, tens de o deixar entrar. Claro que é preciso ter essa disposição e isso acontece de repente, não é algo que se possa arranjar. É impossível. Ele não atua dessa forma.


Quando foi a última vez que sentiu que Deus lhe falou?

Ontem. E não lhe posso dizer o que foi porque diz respeito a uma situação que tenho aqui e foi-me dito o que tenho de fazer.

Alguma vez temeu que deixasse de falar consigo?

Não, absolutamente não. De maneira nenhuma. Absolutamente não. Porque sei que, com a confiança que deposito Nele, Ele faz ainda mais do que eu espero.

Lembro-me que começámos a história a falar de envolvimento…

Certo. Envolvimento.

E em Portugal, e na Polónia, o número de pessoas que dizem ser católicas está a diminuir, assim como o número de pessoas que vão à missa. O que é que a Igreja pode fazer perante esta situação?

Em primeiro lugar, dar este testemunho. Aquilo de que está a falar é de uma espécie de purificação entre a igreja e uma forma superficial de ser católico. Quer dizer: eu sou batizado, vou à igreja, caso-me na igreja, enterro a minha família num cemitério católico. Isto não quer dizer nada... Bem, quer dizer alguma coisa, mas não é esse o cerne da questão. O cerne da questão é o contacto pessoal com Deus. Portanto, se não há um testemunho de que Ele está vivo, de que Ele vive, de que Ele está à mão... isso é superficial.

Ratzinger falava sobre isso em 1969, que o cristianismo deixará de ser como é agora. Estaremos rodeados de pagãos. O cristianismo será reduzido a ilhas verdes, ilhas verdes espirituais, iremos para o mundo pagão com este testemunho, com este coração, com esta energia, com esta alegria, e assim será mudado. Este é o processo. Vocês observam-no lá e nós observamo-lo aqui. Ratzinger falou sobre isto em 1969. Tinha muita razão, era uma espécie de profeta.

Um exemplo. Lembram-se de todo o tumulto da abertura dos Jogos Olímpicos? Isto aconteceu em Paris. [Mostra um vídeo antigo de católicos a rezar em Paris.] Eles vieram sem força. Este é o cerne da questão. Eles conhecem a experiência, deram o testemunho, e esse testemunho é tão contagioso que alguém que está à parte, vê isto, e diz: "Eu também gostaria de ter este sentimento, esta experiência, como fazer isto?" E começa o processo de transformação.

Portanto, não se trata de números...

Não é a quantidade, mas a qualidade. Sem dúvida.

E acha que é esse o caminho que a Igreja Católica está a fazer?

A igreja está a tentar fazer o que pode ser feito nesta situação. Não exclui a ação do Espírito Santo. A igreja é o corpo de Cristo. Não a fundámos e não morremos por ela. Ele é a cabeça dela, ele cuida dela, e Ele, quando vê que algo está mal, isso tem de ser reparado.

Todos estes molestamentos, abusos, todos estes tipos de escândalos, tudo isso tem de ser purificado, deitado fora.


Um pecado é um pecado, fere o corpo da Igreja, e deve ser, antes de mais, removido e também curado.


Como é que se pode fazer isso quando falamos de abusos?

Em primeiro lugar, dando nome a toda a situação, sem tentar dizer que nada aconteceu. Um pecado é um pecado, fere o corpo da Igreja, e deve ser, antes de mais, removido e também curado.

E isso, às vezes, é como uma árvore, quando o vento forte sopra, apenas folhas vivas ficam nos galhos. As que estão mortas, caem. Mas as que são fortes estão muito ligadas ao ramo. Jesus diz, penso que no capítulo 15 de João: "Ficai comigo e eu ficarei convosco, porque sem mim nada podeis fazer."

Acha que os escândalos dos abusos sexuais tiveram esse objetivo? De retirar da igreja quem não devia lá estar?

É um processo complexo porque os escândalos são fruto do espírito do mal. Isso prejudica o corpo da igreja.

A única coisa que podemos fazer é nomear a situação, remover os fatores e as pessoas que causaram isso, e tentar recuperar desse desastre, fortalecidos pela presença de Deus. Porque essas folhas que ficam, essas pessoas que ficaram escandalizadas de alguma maneira, como eu fiquei escandalizado, por exemplo, com o meu padre. Eu não fui molestado, não fui abusado, mas ele disse-me, no primeiro ano do meu seminário: "Vai-te embora da minha paróquia porque não tens vocação e não vais às missas que eu celebro."

E expulsou-me da paróquia. Senti-me tão escandalizado que me preparava para fazer as malas e voltar para Nova Iorque. Mas senti que devia ficar cá. Por isso, apesar do seu comportamento, fiquei. E encontrei a solução.

Se alguém é fraco, cai. Mas alguém que está ligado ao ramo, fica. E se fica, é reforçado pela graça e, dessa forma, pode dar o testemunho de que vale a pena fazê-lo. E mesmo que alguém se afaste, talvez reconsidere, talvez regresse e volte à fonte — que é um pedaço do coração. Isto não se pode criar, não se pode comprar, só se pode receber. Há três maneiras: a oração e os sacramentos, a escuta da palavra e a observação das coincidências.

A jornalista viajou a convite da Embaixada da Polónia em Lisboa

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