12 ago, 2024 - 09:15 • Sandra Afonso
“Nada vai acontecer na Europa”, avisa o professor David Beatty. O mundo entrou numa nova era, da ampliação cognitiva, mas a União Europeia ainda nem entrou na corrida, “ainda nem começaram”.
A Renascença falou com o professor de estratégia na Rotman School of Management (TU), à margem da Cimeira Digital With Purpose, no Estoril. David Beatty admite que a nova tecnologia está a ser implementada a toda a velocidade e sem regulamentação, mas já ninguém a para. Enquanto isso, na União Europeia “estão tão ocupados a escrever leis e diretivas e em sobrecarga, que nada vai acontecer”.
“O centro de gravidade disto são os Estados Unidos, a China e a Índia”, avisa o professor, com várias condecorações e prémios pela gestão e administração de várias empresas em diferentes países.
Nesta entrevista, David Beatty admite que a revolução tecnológica impõem um preço elevado, mas avisa os Estados-membros da UE e, sobretudo, os empresários, que ficar de fora é assinar a certidão de óbito da empresa.
Estamos a viver o início de uma nova era, uma revolução na tecnologia, que tipo de desafios nos esperam?
Ninguém sabe. Estamos nos primeiros momentos de uma página totalmente nova na história da humanidade. Nunca passámos por uma mudança tão dramática, tão rápida e tão amplamente aceite. Quem sabe o que vai acontecer amanhã, muito menos na próxima semana, muito menos no próximo mês.
Vai transformar praticamente tudo o que fazemos como seres humanos. É uma nova era. Tivemos a idade da pedra, tivemos a era industrial, tivemos a era da informação e agora estamos no que chamam de era da ampliação cognitiva, onde as máquinas nos vão sugerir ideias.
Pode dar-nos um exemplo?
Sempre tivemos ferramentas, normalmente usadas com as mãos. Pegamos num cinzel e num martelo e "bang, bang, bang", criamos uma estátua. Agora as ferramentas vão chegar até nós através do computador.
O "deep learning", o "machine learning", as redes neurais e todos esses sistemas vão fazer-nos coisas, e connosco e ao nosso lado, como nunca aconteceu. Por isso não faço ideia o que o futuro reserva.
"Nunca passámos por uma mudança tão dramática. Vai transformar praticamente tudo o que fazemos como seres humanos"
Diz que estamos apenas no início e que vai transformar o homem. Em que sentido?
Eles fazem imensos trabalhos muito melhor do que nós. Por exemplo, os prémios do seguro automóvel, como é que são calculados? Vários analistas, pessoas, sentam-se com um papel à frente, agora já têm folhas de cálculo, e analisam 72 pontos sobre o cliente. Se vai ou não ter um acidente, qual será a gravidade se bater com o carro, se já aconteceu antes, para decidirem o valor a cobrar pelo seguro. Mesmo quem dirige a empresa acredita que a precisão é de 25%. Acertam um em cada quatro.
Decidiram usar o Google DeepMind durante dois dias, com os mesmos 72 dados, e melhoraram a precisão para 75%, aumentou três vezes. Quem é que ainda precisa de analistas?
É mais uma profissão que deverá desaparecer?
Ainda são necessários alguns para verificar o trabalho. Mas, indústria após indústria, onde quer que existam enormes quantidades de dados, estão a ocorrer mudanças transformacionais.
A John Deere fabrica tratores, mas há seis anos compraram uma empresa por 275 milhões de dólares e agora têm uma máquina que diz ao computador tudo o que ele precisa: um pouco mais de água, um pouco menos de fertilizante, um pouco mais de pesticida. Desta forma, em vez de espalhar água pelo campo, dou água às 475.322 plantas de milho que precisam dela e não às outras.
Transforma a economia da agricultura de uma forma nunca vista. Sabemos agora o que cada pé de milho precisa, num campo com 20 milhões de pés de milho. O custo de produção de uma espiga de milho caiu 80%.
A John Deere deixou de ser uma empresa de tratores para se tornar uma empresa de produtividade agrícola e isso vai acontecer indústria após indústria. Estas máquinas fazem as coisas muito melhor e de forma muito mais inteligente do que jamais fomos capazes de fazer.
DÚVIDAS PÚBLICAS
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Falamos de uma enorme perda de empregos?
Claro, mas já aconteceu antes. Em 1900, 60% da economia de Londres, Inglaterra, era baseada em cavalos. O que aconteceu quando o Sr. Ford inventou o automóvel? Os cavalos desapareceram. De alguma forma, as pessoas em Londres encontraram novos empregos, fazendo coisas novas e transformadoras.
Agora vai acontecer o mesmo. Provavelmente vão perder-se muitos serviços jurídicos, porque agora pode-se escrever um testamento no Chat GPT, basta dizer que tenho X anos, tenho esta quantia de dinheiro, tenho três filhos e pede-se um testamento normal. Cinco segundos depois, temos o testamento.
Certamente, nem todos ficarão seguros se os documentos gerados por Inteligência Artificial não forem certificados por profissionais.
Ainda podemos querer consultar um advogado, chamam a isso o piloto do copiloto. Mas já não são necessários 50 funcionários ou dois dias para escrever um novo formulário. Agora acontece tudo em três segundos.
Vamos assistir a muitas mudanças de emprego. Mas não sei se isso significa, necessariamente, perda de empregos.
"Vai acordar uma manhã e o seu trabalho desapareceu"
Não vê esta mudança como algo negativo?
De modo algum. Nos cuidados de saúde já aconteceu. Para detetar cancro da mama são usadas fotos de radiação, o número de falsos positivos de seres humanos que olham para essas fotos aumenta em 20% depois das 15h00, porque o radiologista está mais cansado. O software que temos agora pode detetar o cancro da mama antes do radiologista e com mais detalhe.
Penso que o cancro da mama deixará de ser uma das principais causas de mortalidade feminina dentro de dois ou três anos, porque este software já está a ser integrado na máquina que tira as fotografias das glândulas mamárias.
As drogas serão criadas quase instantaneamente pelo mesmo tipo de manipulação de dados. Enormes avanços serão feitos nos cuidados de saúde, assim como nos negócios, enormes.
Mas teremos períodos de transição, na forma como os empregos e as pessoas serão afetados?
Não. Vai acontecer. Vai acordar uma manhã e o seu trabalho desapareceu (risos).
Tínhamos três empresas de táxi na cidade onde moro e fecharam, literalmente, da noite para o dia, porque havia alguém com um programa de software que permitia chamar pelo telefone, dizer o percurso e não exigia pagamento em dinheiro. As companhias de táxi tinham carros sujos, com motoristas que não sabiam para onde iam e foram retirados do mercado pela Uber.
Isso vai acontecer uma e outra vez. Vai acordar uma manhã e "oops"! É melhor encontrar algo novo para fazer.
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Algum dia as máquinas vão pensar por nós?
Não sei o que se entende por pensar. Mas outra forma de fazer a pergunta é se pode uma máquina ser criativa? Porque, tudo o que faz é reunir o que foi escrito no passado e juntá-lo de maneiras diferentes.
No concurso europeu de fotografia de 2023, adjudicado por 10 fotojornalistas de renome, com dezenas de milhões de inscrições, venceu uma fotografia maravilhosa de duas mulheres, uma a olhar por cima do ombro da outra. Não são mulheres de verdade, a fotografia é completamente artificial!
O que é Isso? Criatividade, sorte cega? Penso que as máquinas vão apresentar ideias novas que nós, como humanos, consideraremos criativas porque nunca pensámos nelas. Isso significa que nos vão substituir como máquinas pensantes? Algumas pessoas pensam que sim, os prazos variam entre dois a 10 anos, mas já estão bem próximo.
Não nos devemos preocupar?
O homem que fundou as redes neurais, Geoffrey Hinton, que é professor na minha universidade, abandonou toda a área por medo exatamente disso, de que um dia algum programa de computador diga: "o verdadeiro problema deste planeta é o número de pessoas. Como podemos livrar-nos deles? Vamos derrubar aviões, vamos explodir centrais nucleares?" É com isso que ele está preocupado.
Não sei o suficiente sobre o funcionamento das redes neurais para ter uma perspetiva, mas há algumas pessoas que se preocupam com isso. É realmente uma ameaça existencial para a humanidade a longo prazo, que eles tenham iniciativa própria. Talvez sim. Não sei.
"Na UE ainda nem começaram. Estão tão ocupados a escrever leis e diretivas e em sobrecarga que nada vai acontecer na Europa"
É preciso debater amplamente este tema?
Não. Está a acontecer por toda a parte e não se pode parar.
Os Estados Unidos são o centro de gravidade e há provavelmente 100 mil empresas a trabalhar em vários projetos, em vários setores. Não vai parar.
No ano passado, foram investidos cerca de três biliões de dólares em novas startups. As próprias grandes empresas gastam biliões por ano na compra de coisas que parecem interessantes. Nunca vai parar e não há regulamentação.
O "número dois" é a China, que tem as startups de Inteligência Artificial mais ativas do mundo, depois dos Estados Unidos. Em terceiro está a Índia.
A lei tem como propósito fomentar o desenvolviment(...)
E onde está a União Europeia?
Ainda nem começaram. Estão tão ocupados a escrever leis e diretivas e em sobrecarga que nada vai acontecer na Europa. O centro de gravidade disto não está aqui.
O centro de gravidade disto são os Estados Unidos, a China e a Índia. Todos o tipo de pessoas com ideias são da Índia, por exemplo, e acabam nos Estados Unidos, porque lá conseguem o capital mais facilmente. Os chineses não migram, não têm permissão para isso.
Há uma vitalidade tremenda, que é extraordinária na sua profundidade, na sua amplitude e no seu alcance nos Estados Unidos hoje em termos de inovação. Ninguém vai impedir isso.
Tendo em conta que o futuro passa por aqui, é incontornável, o que acontecerá à União Europeia?
(Risos) Faço parte do conselho de uma organização que deveria representar diretores em países europeus de capital aberto, mercados públicos. Passam quase 100% do tempo preocupados em comentar projetos de diretivas da UE. Não há sequer um item na agenda sobre como estamos a evoluir em termos de novas empresas inovadoras esta semana, este mês, este ano.
Sou pessimista. Se não entram nesta corrida, de alguma forma, este será um evento de extinção para quem ficar de fora, ponto final.
Ainda é cedo, ninguém está eliminado, mas avisamos os conselhos de administração que se não iniciarem esta migração para compreenderem o que está a acontecer, só resta uma pergunta: onde querem ser enterrados?