21 jul, 2024 - 08:42 • José Pedro Frazão
Gabam-lhe a escrita em alta escala na imprensa norte-americana, mas Joshua Cohen diz não ligar aos rótulos. Deixa a defesa da paz para a sua condição cívica, mas gostaria de questionar Benjamin Netanyahu sobre o mundo que este deseja. Conta anedotas sobre o 7 de Outubro, defende o humor como parte da identidade judaica e descarta a ideia de um poder judaico influente nos Estados Unidos. Em entrevista à Renascença, este escritor de 43 anos, judeu americano, explica o que fez o pai do primeiro-ministro israelita. E também o que não fez para merecer algumas ideias que considera autênticos mitos. A conversa foi registada na FLAD - Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, em Lisboa, onde foi lançada a tradução portuguesa de "A Família Netanyahu".
'A Família Netanyahu' não é uma biografia, mas às vezes parece que sim, mesmo que as explicações que constam do livro sejam muito importantes para o compreender. Já pensou em fazer uma biografia completa a partir desta história?
Não. Por Deus, não. Uma biografia não do famoso Netanyahu, mas do pai de Netanyahu? Não. Sabe, eu quero ganhar dinheiro, não posso escrever uma biografia.
Como é que entrou nestas histórias sobre este historiador, o pai de Netanyahu?
Foi através de Harold Bloom, que foi um grande crítico literário norte-americano que queria que eu o ajudasse a escrever as suas memórias no final da sua vida. Ou seja, não irei escrever biografias, mas sim memórias de outras pessoas.
Passei algum tempo com ele e, enquanto me contava diferentes histórias sobre a sua vida, acabou por me contar uma pequena história engraçada sobre um encontro com Bibi [Benjamin] Netanyahu. E eu disse, 'quando conheceste o Bibi Netanyahu ', e ele disse 'acho que tinha 10 anos quando o conheci, mas quem conheci verdadeiramente foi o seu pai, Benzion Netanyahu' . Parecia estranho e ele disse ' sim, foi em 1960' e contou-me uma pequena história. E então a sua mulher, Jeanne Bloom, que ainda está viva, entrou no quarto e disse: 'não, Harold, não foi assim que aconteceu'. E estavam ali dois idosos a discutir sobre a história que aconteceu há 60 anos.
E esta história ficou-me na cabeça, mesmo sendo muito simples. Basicamente Harold estava a trabalhar na universidade, era o único professor judeu contratado e eles iam entrevistar um rapaz para um emprego em história medieval. E disseram-lhe que devia levá-lo a passear porque também era judeu. E foi a partir daqui que fiz este romance.
Descreve a viagem deste historiador para a América, as cartas de recomendação e assim por diante. Foi um processo difícil para ele.
Sim. Benzion Netanyahu nasceu em Varsóvia e chega muito jovem à Palestina. Ele é membro de uma das primeiras turmas de licenciatura na Universidade Hebraica. Mas enquanto ele frequenta esta universidade, toda uma série de académicos muito famosos refugiados estão a vir da Europa. E, sabe, se pode contratar um estudioso refugiado barato, porque é que vai contratar o tipo local? Ele dá por si fora da academia israelita e ao mesmo tempo trabalha como uma espécie de propagandista do movimento sionista revisionista de Vladimir Jabotinsky, em torno do qual gravitam certos jornais e revistas. E ele torna-se uma espécie de persona non grata no chamado Mandato Britânico da Palestina [que administrou o território entre 1920 e 1948]
Quando Jabotinsky é basicamente exilado da Palestina, todo o seu círculo se desfaz e Benzion Netanyahu é forçado a 'fazer-se à estrada'. E é assim que ele vem para os Estados Unidos. A sua especialidade são as inquisições medievais, especificamente as inquisições ibéricas do século XV e as expulsões de judeus de Espanha em 1492 e de Portugal em 1496. Este torna-se o seu tema essencial.
Escreve muitos livros sobre o assunto, incluindo um de 1000 páginas, e é na sua obra que afirma que foram as Inquisições ibéricas - por serem Inquisições da realeza e não do papado - que sustentaram a redefinição fundamental do Judaísmo de uma religião para uma raça. E foi este tipo de interpretação, este 'judaísmo racializado' da Inquisição, na sua opinião, que acabou por se tornar o modelo para o século XX e para o nazismo.
Ele desenvolve a sua teoria sobre a conversão destes judeus ao cristianismo.
Uma das suas ideias era essa, a de que a conversão não era suficiente para a Inquisição, porque só porque se diz que se acredita em alguma coisa, continua-se a ser judeu, pois ainda se tem ligações familiares ou conexões comerciais. A ideia era que, independentemente do que dissesse ou acreditasse, o mundo iria sempre lembrar-se de qual é o seu sangue.
Foi essa interpretação muito dura, opressiva e sombria da identidade judaica que Benzion Netanyahu tirou dos seus estudos sobre a Inquisição que ele depois transmitiu ao seu filho, Bibi Netanyahu, que acredita que os judeus estão sempre ameaçados existencialmente e que não há lugar onde os judeus estejam em segurança, com a exceção da pátria judaica, Israel.
Essa definição aplica-se ao povo judeu no mundo real de hoje?
De acordo com Benzion Netanyahu, sim. Para mim, não. Qual é a diferença? Não sou um estudioso da Inquisição e não sou primeiro-ministro de Israel.
Então como vê o povo judeu?
Vejo-os todos os dias e demasiados (risos) Como vejo os judeus? Bom, se acredito que há uma ameaça existencial? Não. Penso que uma das ideias da existência do Estado de Israel é que o antissemitismo é este vírus eterno e recorrente - muito na definição de Benzion - cuja cura não é tentar mudar a opinião das pessoas, mas sim construir um Estado com um exército forte e um programa nuclear. Penso que, em muitos aspetos, esta seria a resposta de Bibi Netanyahu a isto.
A minha própria resposta é um pouco mais complicada do que isso. Penso que limitar a identidade judaica a um Estado judaico é contraproducente e também não descreve a realidade ou a riqueza da experiência judaica.
Encontrou algum detalhe específico surpreendente na relação entre pai e filho?
Não sei. Quer dizer, você tem um pai, certo? Todos conhecemos os nossos pais. Eu acho que apenas pensei no meu próprio pai e projetei isso neste relacionamento. Quando alguém tem um pai frustrado e ressentido como Benzion Netanyahu estava... Pense nisto: a década mais importante da história judaica provavelmente desde a destruição romana do Templo [de Jerusalém] em 70 DC foi de 1940-1950. E nessa década Benzion Netanyahu não estava a ser assassinado na Europa e não estava a ajudar a construir o seu Estado na Palestina, chamado Israel. Vivia nos subúrbios de Long Island e de Filadélfia, nos Estados Unidos, e sentia-se excluído da História.
E aquela frustração, ressentimento e a sensação de ter sido maltratado e de não ter recebido ou de não lhe ter sido concedido o seu direito a liderar é exatamente o que ele dá ao filho. Portanto, de certa forma, Bibi Netanyahu é a 'vingança' do seu pai. É uma clássica história de vingança.
Benzion Netanyahu é também a figura de cartaz da relação entre o povo judeu e a América. Quão importante foi a sua missão nesta caminhada?
Acho que esta é uma das partes mais engraçadas da verdadeira história por detrás da história deste livro. Quando Benzion Netanyahu morreu - e ele tinha mais de 100 anos - John Boehner, presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, fez um elogio no Congresso e chamou-lhe 'o pai das relações da América com Israel' . E esta é inteiramente uma visão propagada por Bibi Netanyahu. A tese de que o seu pai inventou essa ideia das relações americano-israelitas, que sabia que Israel não poderia sobreviver sem o apoio dos Estados Unidos e que na política do tempo da Guerra Fria, de forma a contrabalançar a esfera soviética, os judeus americanos seriam o garante da sobrevivência de Israel, nada disso é verdade.
Benzion Netanyahu não foi o 'pai' das relações América-Israel. Era um professor secundário numa boa universidade no oeste de Nova Iorque, com 20 estudantes de pós-graduação que escreveram os seus longos livros que ninguém leu. E foi isso. Mas é claro que precisamos de fazer histórias, essas mitologias.
Mitologias?
Completas mitologias. Completamente, completamente.
É interessante estar em Portugal a falar sobre os judeus na península Ibérica. Sabe se Benzion Netanyahu esteve algures por aqui ou foi apenas um trabalho académico sem trabalho de campo na Península Ibérica?
Ele esteve aqui. Ele esteve em Espanha e em Portugal, no final dos anos 60 e início dos anos 70. E acredito que esteve mais uma vez nos anos 80 na pesquisa para o seu livro de 1.000 páginas chamado ' Origens da Inquisição do século XV'. E sim, ele esteve o tempo todo em arquivos. Ele discutia constantemente com o académico Américo Castro [ historiador hispano brasileiro] e era uma criatura dos arquivos. Sei que era fluente em espanhol, não sei nada sobre o português dele.
Estava a contar-nos que a experiência dos judeus na Península Ibérica foi definidora dessa relação entre religião e raça. Foi assim tão diferente de outras experiências judaicas ou de outras partes do mundo?
Era diferente, na perspectiva de Benzion Netanyahu. A razão pela qual era diferente era que as inquisições ibéricas não eram lideradas pelo Papa, mas inquisições políticas lideradas pela nobreza e pela monarquia. E, de certa forma, sofreram oposição do papado. Se um judeu se converte ao catolicismo, qual é a resposta da Igreja? 'Ótimo! Bem vindo!', é um sucesso.
Do ponto de vista da monarquia -e foi este o seu argumento durante as inquisições ibéricas do século XV - não bastava converterem-se porque isso não quebrava a classe dos judeus ligados ao comércio, ao empréstimo de dinheiro e cobradores de impostos. Essas pessoas ainda existiam, ainda tinham os seus contatos comerciais, as suas comunidades. A diferença era que já não iam à sinagoga e em vez disso iam à igreja. A ideia era que não importava aquilo em que se acreditava, queriam acabar com a sua existência. Esta foi a interpretação de Benzion Netanyahu das Inquisições políticas da Península Ibérica.
Era um elemento social?
Certo. Lá porque mudavam de religião não significa que mudavam com quem se relacionavam ou com quem faziam negócios ou quem era as suas ligações.
Regressando aos Estados Unidos, o poder judaico na América é também um mito?
Acha que é absolutamente mitológico. É uma população tão pequena e a ideia de... Quer dizer, é só olhar para os movimentos de protesto nas ruas ou na academia. A ideia do poder judaico é... Sabe, se ao menos fosse verdade (risos)
Recebeu algum contacto de Benjamin Netanyahu sobre o livro?
Não. Meu Deus, não! Ele é demasiado inteligente para isso. Ele não quer que eu venda assim tantos exemplares! Ouvi falar de alguns ex-primeiros-ministros que leram o livro e gostaram dele, incluindo Ehud Olmert que o apresentou num processo judicial enquanto estava a ser processado por Netanyahu. Leu partes do livro em voz alta para Netanyahu no seu depoimento. Foi uma espécie de manobra, uma forma de transformar o tribunal num circo naquele dia.
Gostaria de perguntar alguma coisa a Benjamin Netanyahu sobre a biografia do pai?
Sinto que se pudesse fazer uma pergunta a Bibi, não a desperdiçaria com o meu próprio livro.
Que pergunta lhe faria?
Pedir-lhe-ia que escrevesse um livro sobre o meu pai. Isso seria interessante... (risos) Que pergunta lhe faria? Acho que lhe perguntaria se é este o mundo que ele queria.
Fale-nos da sua relação com Harold Bloom. É uma personalidade certamente fascinante que conhecemos do "Cânone Ocidental" onde entendemos esse imenso conhecimento sobre quase tudo na literatura. Parece que esteve a 'beber da fonte' sobre literatura.
Harold era uma personagem muito estranha. Era filho de imigrantes de Odessa [na Ucrânia], trabalhadores do setor da confeção no Bronx. Yiddish foi a sua primeira língua, cresceu e tornou-se um especialista em Shakespeare e em poesia romântica. Não poderia escrever sobre ele diretamente no livro, porque se escrevesse sobre ele, ninguém acreditaria. Seriam as partes mais inacreditáveis do livro. Tinha uma memória eidética, fotográfica, o que significa que podia recitar de memória qualquer página que lesse. Tinha uma panóplia de referências e um reservatório profundo de conhecimento sobre praticamente qualquer literatura mundial que lhe pudesse apresentar. E, dessa forma, ele era assustador. A forma como se destacava dos seus próprios dons e era capaz de ver - odeio dizer isto - como eram bizarros, era completamente aterradora. Ficava igualmente surpreendido com a sua memória como qualquer outra pessoa.
Mas ele dava-lhe uma palestra sobre este ou aquele tipo de literatura?
Ele fazia principalmente listas elaboradas de alimentos para comprar que o médico disse que não tinha autorização para ter.
Não era 'food for thought' [pistas de reflexão]?
Não, não, não. Ele adorava bolachas, brownies, cupcakes e bagels, todas aquelas coisas com muito açúcar e sal que o médico disse que não era para comer. Tive de as comprar em segredo e depois entregar-lhe debaixo da mesa. Ele depois comia secretamente, quando a sua mulher estava fora da sala. E dizia-me que eu precisava de me casar. Entre essas conversas todas, falávamos sobre literatura.
O humor é algo muito interessante não só na sua escrita, mas também para o povo judeu. Acha que o humor é um fator no modo de vida judaica e que se pode descrever como parte da identidade moderna da comunidade judaica?
Acho que foi. Resta saber se isso continuará a ser assim. O humor é uma expressão de poder dos impotentes. Quando se goza com algo, está-se a praticar, de alguma forma, o único poder que se tem. Quando se lida com traumas com provações e tribulações através do humor, está-se a dizer essencialmente que não se tem o poder e a autoridade para mudar a condição. Pode apenas satirizá-lo, parodiá-lo. Durante séculos, o humor foi a principal expressão de poder judaico por aqueles que não tinham nenhum poder.
É por isso que o humor yiddish é superior ao humor israelita ou ao humor hebraico. É por isso que as partes mais agudas do humor israelita vêm diretamente da tradição yiddish.
Mesmo em tempos dramáticos?
Especialmente em tempos dramáticos. Já há piadas sobre o 7 de outubro. A minha preferida é esta: toda a gente está a comparar o Hamas com os nazis. Mas diga o que quiser sobre os nazis, eles nunca sequestraram sobreviventes do Holocausto. É uma boa piada. Consegue perceber?
Sim, de forma bastante vívida.
É uma piada muito yiddish.
Consegue brincar com este tipo de questões?
Acabei de o fazer.
Quão importante é isto?
Temos que o fazer, temos que o fazer. Porque se não o fizermos, então isto não é apenas sobre a morte de pessoas, é também a sua alma que foi morta. Ser sério é ver a nossa liberdade negada.
Não é demasiado trágico fazer piadas sobre os palestinianos, sobre o conflito e assim por diante?
Não rir é que é demasiado trágico. Quer dizer, o que é que suposto fazer? Sabe, estive em muitos funerais nos últimos seis meses e já vi demasiadas crianças estraçalhadas. Tive demasiados amigos que morreram em Israel e vi a destruição que Israel causou em Gaza. O que é que posso fazer?
Posicionar-se pela paz faz parte da sua preocupação no dia a dia ou o humor é também uma forma de o expressar?
Acho que defendo a paz na minha vida de cidadão. Mas na minha vida de romancista, diga lá, apetece-lhe mesmo ler um livro que pede paz durante 200 páginas? Ninguém vai ler isso.
E como cidadão, acredita nessa paz?
Absolutamente. É a única coisa em que se pode acreditar e sem o fazer não acho que uma pessoa se possa chamar cidadão, na plenitude do termo.
Finalmente, como se sente quando lhe chamam 'provavelmente o maior escritor vivo na América', para citar o Washington Post?
E isso é um grande elogio? Ainda temos escritores tão bons na América? Não sei. Penso que é provavelmente uma publicidade eficaz.
Quais são os seus escritores favoritos do momento na América? Que livros lê?
Esqueço-me sempre de quem está vivo e de quem está morto hoje em dia, percebe? De quem é que eu gosto?
A última surpresa literária que teve, por exemplo.
Tenho de dizer - e isto é apenas um pormenor - que, especialmente para alguém da minha geração, penso que tomámos como garantida, em muitos aspetos, a escrita de Paul Auster. Acho que ele era alguém de uma 'geração ponte'. Ele não tinha a especificidade insana de sexualidade de Philip Roth. Não tinha a frieza e o desapego político de Don Delillo. Era alguém que negligenciei de forma tola e de quem me esqueci depois de o ter lido pela primeira vez quando era adolescente. Mas depois de ter falecido recentemente e de ter revisitado os seus livros, surpreendeu-me o quanto ele era um verdadeiro mestre.
Ganhou um prémio para escritores judeus. É um escritor judeu, um escritor americano ou apenas um escritor?
É engraçado. Sabe, na América, sou um escritor judeu. Em algumas partes da Europa, sou um escritor americano. Noutras partes da Europa, sou um escritor israelita. Em Israel, sou metade-metade. Mas nunca dirão 'escritor judeu' em Israel, claro que não, dirão 'americano'.
Sente-se confortável com isso?
Não sei o que dizer.
Quando o rotulam dessa forma.
Eu não rotulo o meu trabalho. Eu não escrevi aquilo, foram eles. É engraçado porque você é jornalista e eu ouço sempre estas coisas quando se faz uma referência ou nomeia alguém num artigo. Lembro-me que quando era um jovem jornalista, estava a escrever algo em que me referia a T.S.Eliot desta forma :' como Eliott disse, blábláblá' e o meu editor voltava atrás e dizia 'como T.S. Eliot, o poeta britânico...' Eu dizia: ' vá lá, as pessoas sabem quem o Elliot é'.
Podíamos também mudar para 'T.S. Eliot, o poeta britânico nascido nos Estados Unidos' ou para 'T.S. Eliot, poeta britânico nascido nos Estados Unidos, amante de gatos, ex-bancário e antissemita'. Sabe, assim que se começa a rotular, não há fim.
Mas não se sente desconfortável.
Sinto-me desconfortável com tudo. Mas ainda menos com os rótulos.