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entrevista a Yehuda Shaul

"A resposta militar israelita a este ataque horrendo do Hamas não é uma solução para a violência. A única saída é política e diplomática"

23 out, 2023 - 08:49 • José Pedro Frazão

Yehuda Shaul fundou com outros veteranos israelitas a organização "Breaking The Silence" que desde 2004 recolhe e publica testemunhos de militares israelitas em ação nos territórios ocupados. Assumidamente contra a ocupação da Cisjordânia, esta ONG é geralmente financiada por países ocidentais e pela União Europeia e criticada pelo governo de Telavive. Em entrevista à Renascença, o primeiro diretor-executivo da organização partilha a sua visão sobre o que está a acontecer em Israel e recupera a memória das operações militares em Gaza.

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Foi soldado das Forças de Defesa de Israel (IDF) durante a Segunda Intifada, sobretudo em Hebron, na Cisjordânia. Yehuda Shaul juntou-se depois a 2 outros veteranos das campanhas israelitas nesses territórios para partilhar com o público a experiência e as observações dos soldados. O trabalho da organização "Breaking The Silence" (BTS) foi gradualmente criticado em Israel por governos, partidos e pelo próprio IDF, mas o labor de publicar os testemunhos de soldados em operações israelitas foi sendo sucessivamente financiado por entidades estrangeiras. Entre os doadores da última década encontra-se a União Europeia que, de acordo com o site israelita NGO Monitor, distribui somas anuais em torno dos 300 mil euros à BTS, a juntar a outros financiamentos ocidentais da Alemanha, França, Dinamarca, Noruega ou da Fundação Rockefeller dos Estados Unidos.

Em entrevista à Renascença, Yehuda Shaul, hoje sem qualquer ligação à estrutura que ajudou a fundar, analisa a situação em Israel e deixa críticas a uma solução militar para o conflito com os palestinianos. O antigo militar da IDF sublinha que fala hoje a título pessoal e recorda os relatos dos militares que testemunharam o que viram e até fotografaram nas operações em Gaza, nomeadamente em 2014, data da última invasão terrestre. Se Israel avançar para uma nova incursão por terra sobre Gaza, repete-se o cenário já visto pelo menos por 3 vezes desde que Israel retirou do território em 2005.

Como veterano das Forças de Defesa de Israel, como israelita, como sentiu as ações de 7 de outubro e como classifica a ação do Hamas?

Para ser honesto, este ataque do Hamas deixou-nos a todos em choque. Foi devastador. Deve entender que quase toda a gente aqui em Israel sabe de alguém que ficou ferido ou tem um membro da família que foi assassinado ou sequestrado. Para mim, foi quase paralisante. O que realmente me chocou e paralisou foi o nível de brutalidade e de desumanidade. Massacrar famílias inteiras, exterminando mulheres, crianças, nada pode ser pior do que isso.

Foi o ataque mais devastador contra os territórios israelitas que já testemunhou?

Factualmente, sim. Do ponto de vista humano, o nível de brutalidade que significa ir para os kibutz massacrar e disparar contra famílias inteiras, assassinar mais de 250 jovens na festa, foi paralisante. E não há nada no mundo que possa justificar crimes de guerra nesta escala, massacrando deliberadamente centenas de civis inocentes. E a propósito, tenho um amigo próximo que foi assassinado pelo Hamas. Era membro da equipa de resposta inicial no Kibutz Be'eri. Fomos ativistas políticos juntos por alguns anos e ele foi morto pelo Hamas.

Quando uma sociedade passa por um choque como este, através de um evento horrendo como este, podemos abordá-lo de duas maneiras. Podemos preencher o buraco nos nossos corações ou nos estômagos com raiva e desejo de vingança. Ou podemos preenchê-lo com humanidade e compaixão. Infelizmente, penso que a maioria dos israelitas está a preencher os buracos nos seus corações com raiva e desejando uma vingança.

Eu e outras pessoas ao meu redor, estamos a tentar levar isto para o outro lado, para a outra opção. E sei que a minha posição hoje é marginal na minha sociedade. Mas simplesmente acho que não existe outra forma.A vingança não é um plano de trabalho. Não vai trazer segurança, paz e estabilidade. Já estivemos na violência, tivemos várias rondas de violência em escaladas com Gaza. Os nossos líderes prometeram-nos sempre que "desta vez é que ia funcionar, que agora o Hamas seria travado, se formos um pouco mais agressivos, isto vai funcionar". E vemos que não, simplesmente não funciona.

Esta retaliação também não vai resultar?

Deixe-me ser claro. Israel não tem meramente o direito, mas a obrigação de se defender a si mesmo e aos seus cidadãos. Não sou pacifista. Mas a resposta militar deve respeitar o direito internacional. Sim, eu sei que o sangue está a ferver. Mas é exatamente para estas situações que o direito internacional humanitário foi criado, para regular a forma como combatemos. A ação militar tem que ser proporcional e deve distinguir entre civis, alvos hostis, alvos militares e alvos legítimos. E os civis não devem ser alvos legítimos. E a punição coletiva deve ser inaceitável, não apenas ao abrigo do direito internacional, mas mesmo devido à lei bíblica judaica.

E o que observa neste momento é essa punição coletiva?

É inaceitável ouvir declarações dos nossos líderes a falar de cerco, de "selar" completamente Gaza, sem deixar entrar nada. Graças a Deus, estamos agora a ter notícias de ajuda humanitária a entrar pela passagem de Rafah, mas a ajuda humanitária deve ser permitida e os civis devem ser protegidos.

Outra coisa é o objetivo final. É muito, muito claro que o que vimos no Sul de Israel e o que vemos em Gaza, é o resultado direto de uma década e meia de política do primeiro-ministro Netanyahu, de dividir a população palestiniana entre Gaza e a Cisjordânia, entre o Hamas e a Autoridade Palestiniana, para enfraquecer os palestinianos e evitar um processo político-diplomático.

Ele não quer trocar terras pela paz. Isso é muito, muito claro. Ele diz isso de forma oficial e alguns dos seus ministros de hoje vêm dizendo publicamente ao longo dos anos que o Hamas é um "ativo" e que a Autoridade Palestina é uma "garantia". Porque sustentam que com o Hamas não precisam de negociar um processo político por causa do seu extremismo. E se quiserem estar unidos e representados pela Autoridade Palestiniana, então há que recorrer a um processo diplomático e terão que devolver terras.

Considera que a estratégia política de Netanyahu e deste governo forneceu, de alguma forma, um contexto político ou militar que tornou inevitáveis os termos em que nos encontramos e a própria ação do Hamas?

Não para a ação do Hamas mas para a de Netanyahu. A política de Netanyahu está a explodir à frente dos nossos olhos. Esse nível de força para com o Hamas é um resultado direto dessa política. Basear a segurança nacional apenas na força, sem tratar as causas profundas da violência através de um processo diplomático, vai levar a uma explosão. Enquanto as raízes profundas - a ocupação em curso e o cerco a Gaza - estiverem presentes, aí estarão também as razões para a violência. E não há uma solução militar para isso. Há uma resposta militar a este ataque horrendo pelo Hamas. Mas isso não é uma solução.

Qual é a solução?

A única saída é uma solução política e diplomática, que aborde as causas profundas desta violência, que são 56 anos de ocupação - e ainda mais de conflito - a juntar a 16 ou 17 anos de cerco em Gaza. A única maneira de isto acabar de forma sustentável é uma realidade onde ambos os lados saem de uma sala com direitos e dignidade. E é isso que devemos perseguir.

Sustenta que Israel tem a obrigação de retaliar. Mas como pode fazê-lo sem causar impacto nas vidas dos civis em Gaza quando sabemos que o terreno é particularmente exigente e desafiador? Ao longo dos anos a "Breaking The Silence" recolheu vários testemunhos de soldados que falavam em "escudos humanos".

Não estou agora na sala de controlo e nas células de ataque, a ver exatamente o que está a ser feito. Só mais tarde saberemos o que está a acontecer exatamente agora. Não tenho provas diante de mim para dizer se as práticas e as táticas que estão a ser usadas são conformes ao direito internacional. Mas conheço os princípios. A pedra angular do direito internacional é muito clara: proporcionalidade e distinção. Não temos permissão para atingir alvos civis, apenas alvos militares. E quando os visamos, entendemos também internacionalmente que há danos colaterais. Mas estes precisam de ser proporcionais às conquistas militares e operacionais que se pretendem em cada ataque. Percebemos que podem existir erros e danos colaterais, mas a questão é se esses princípios são ou não seguidos.

Se olharmos para o histórico das operações em Gaza [ "Margem Protectora" em 2014, "Pilar de Defesa" em 2012, "Chumbo Fundido" em 2008] é muito, muito claro que o regime militar de regras de combate não seguiu o Direito Internacional. E foi isto que contestámos, como ativistas dos direitos humanos. Não sei ainda o que está a acontecer agora. Se se quiser ser um especialista e uma pessoa séria, não podemos falar sobre coisas que não sabemos.

Mas pode falar dos testemunhos das operações passadas recolhidos pela "Breaking The Silence". E o que vos disseram sobre as cadeias de comando nestas operações? No caso da ordem de um comandante, o que aconteceu realmente no campo de batalha? As ordens foram 100% atendidas pelos soldados?

Para ser honesto, nas operações anteriores de 2009, 2012 e 2014, o problema não foi o comportamento de soldados individuais. O verdadeiro problema estava nas ordens, que eram inaceitáveis. As regras de empenhamento não eram aceitáveis, incluindo nas invasões terrestre de 2009 e de 2014, com as Forças de Defesa de Israel (IDF) a lançarem panfletos em cidades de Gaza, como Beit Hanoun, Beit Lahiya ou Bani Suheila, que têm dezenas de milhares de pessoas, onde davam prazos para os civis saírem. E uma vez iniciada a invasão terrestre, todas essas áreas foram tratadas como um campo de batalha convencional da "velha escola", onde não havia "pessoas inocentes". E as ordens eram para disparar sobre pessoas, mesmo que não estivessem armadas, desde que não fossem crianças ou mulheres idosas, pessoas claramente inocentes. Um homem em idade militar nessas cidades durante a invasão terrestre tornou-se um alvo legítimo ao abrigo de ordens inaceitáveis aos meus olhos.

Agora, o que realmente escutámos é que, por vezes, oficiais e soldados de baixa patente entendiam que as ordens eram tão loucas que eles próprios violavam as ordens e não disparavam. Portanto, o problema eram as ordens, não o comportamento das pessoas no terreno. Sim, às vezes eles violavam as ordens, porque entendiam que não correspondiam à realidade.

Os soldados preocupavam-se mais com os alvos do que os seus comandantes?

Não creio que essa seja a conclusão. Não é sobre quem se importa mais ou menos. É mais complexo. O problema nas operações anteriores em Gaza estava mais nas ordens, na estrutura, da ideia de como se planearam e executaram as operações. E depois, sobre a forma como os soldados de baixa patente operavam no terreno.

A "Breaking The Silence" publicou o livro " Foi assim que lutamos em Gaza. Depoimentos e fotografias de soldados da Operação Margem Protetora" de 2014. Eles estão em linha com a operação anterior? Há um padrão em termos deste tipo de operações?

Muitos dos problemas que vimos em 2014 estão alinhados com os que vimos em 2009, onde o uso da força pela IDF foi desproporcionado, muito mais agressivo do que eu consideraria moralmente aceitável. Mas isso diz respeito a operações anteriores, ainda não temos evidências do que está a acontecer agora.

Sendo co-fundador da "Breaking The Silence", está certamente ao corrente das críticas de alguns quadrantes da sociedade israelita ao vosso trabalho. Uma delas diz respeito ao tratamento deste tipo de informações que recebem de testemunhos que, dizem muitos desses críticos, eram de "ouvir dizer", sem grandes factos concretos. Como responde a isso?

Deixe-me sublinhar que não represento neste momento a "Breaking The Silence". Mas deixe-me também dizer muito claramente que só publicámos testemunhos oculares. Este é um dos princípios basilares da publicação de informações da "Breaking The Silence". O "ouvir dizer" não está no nosso trabalho.

No passado, quando era responsável por este trabalho, entregaram este tipo de testemunhos à IDF para esta fazer os seus próprios relatórios sobre estas informações?

Não se trata de reportar, mas tudo o que a "Breaking The Silence" publica é alvo de uma pré-triagem de censura dos militares israelitas, para garantir que não prejudicamos a segurança nacional e que não revelamos segredos de Estado. A "Breaking The Silence" não visa prejudicar a segurança nacional. Trata-se de ter uma "conversa séria" sobre o preço moral do controlo dos palestinianos por Israel.

Não representa a organização, mas ainda é militante? Qual é a natureza da sua relação atual com a organização?

Como co-fundador, é uma organização que está próxima do meu coração. Sou voluntário aqui e ali, ajudando nalgumas coisas, mas não falo em nome da organização.

Isso significa que se afastou da estratégia atual da "Breaking The Silence"?

Não, não, absolutamente não. Não estou longe da estratégia actual. A "Breaking The Silence" está a fazer um grande trabalho, um trabalho muito importante.

Desde o início da organização, sente que estão cada vez mais acompanhados ou mais isolados na sociedade israelita?

Não creio que haja uma resposta simples para isso. Por um lado, não há dúvida de que a política israelita movimentou-se muito para a direção errada. Saí do serviço militar em 2004. Começámos a "Breaking The Silence" a 1 de junho de 2004, com uma exposição de fotos e vídeos sobre o nosso tempo na cidade de Hebron, na Cisjordânia. Naquele tempo, fomos convidados a apresentar a nossa exposição de fotos e vídeos no Parlamento israelita, nos corredores da Comissão de Educação.

Em 2018, o Parlamento israelita aprovou uma lei que foi apelidada de " Lei Breaking The Silence" para dar ao Ministro da Educação o direito de criar uma lista negra de indivíduos e organizações proibidos de participar de atividades educativas e nas instalações das escolas. Desde a realização da nossa exposição no Parlamento até à aprovação de uma lei que se traduzia no nosso nome para tentar evitar a entrada de "vozes subversivas" nas escolas, isso diz muito sobre para onde a política se moveu infelizmente nos últimos 20 anos.

Mas o outro lado disso é que, se me dissesse em 2004, quando começámos a "Breaking The Silence", que hoje seria um movimento de mais de 1400 ex-soldados que falaram e quebraram o silêncio, eu provavelmente iria rir-me na sua cara. E se me dissesse que a "Breaking The Silence" iria tornar-se a mais ativa organização anti-ocupação em Israel, que se reúne anualmente com milhares de israelitas, que dá palestras em painéis de discussão, conferências, em visitas guiadas e viagens de campo à Cisjordânia para mostrar às pessoas a realidade da ocupação, não acreditaria em si.

Estive consigo em Hebron em 2019, numa visita da "Breaking The Silence" que mostrava o esvaziamento das ruas onde estavam palestinianos. Desde então a situação estagnou, melhorou ou deteriorou-se?

Estive em Hebron na última sexta-feira e não passava lá há muito tempo. Não me lembro de ter visto Hebron tão tenso desde os tempos em que servi lá, no auge da Segunda Intifada, entre 2001 e 2003. As coisas estão muito, muito más. Os palestinianos em Hebron estão agora sob recolher obrigatório. No centro de Hebron, os palestinianos não podem sair de casa. A violência dos colonos em toda a Cisjordânia está num pico, em alta como não víamos há anos. Há transferências forçadas de comunidades palestinianas. Muitas, muitas famílias e comunidades palestinianas estão a ser expulsas das suas terras, devido à violência dos colonos e ao facto de as autoridades israelitas e as suas forças de segurança nada fazerem para exigirem o cumprimento da lei.

Portanto, a Cisjordânia é hoje um lugar muito, muito tenso e escuro. Infelizmente, o que vemos é que os colonos estão a aproveitar-se do facto de toda a atenção estar agora em Gaza para criarem fatos no terreno, expulsando os palestinianos das suas terras e das suas aldeias em diferentes locais na Área C da Cisjordânia.

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