04 set, 2023 - 12:00 • Sandra Afonso
“Portugal está do lado certo da história” e o sistema que o Presidente russo, Vladimir Putin, construiu nas últimas décadas "está a desintegrar-se", afirma Sergiy Kyslytsya, representante permanente da Ucrânia nas Nações Unidas, em entrevista à Renascença.
Como foi percecionada pelos ucranianos a recente visita do Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, ao país?
Portugal é bastante conhecido na Ucrânia. Mesmo antes da guerra já havia um bom número de portugueses ucranianos aqui em Portugal e Portugal costumava ser um destino para os turistas ucranianos. Eu próprio vim a Portugal muitas vezes, antes da guerra, como turista.
Portugal também é agora reconhecido como um país que está do lado certo da história. Portugal demonstrou em muitas ocasiões que não está apenas do lado certo da história, mas também está a tomar medidas para apoiar a Ucrânia, seja ao nível do governo ou ao nível das comunidades e municípios ou mesmo ao nível dos cidadãos individuais.
Portanto, penso que devem ter a certeza de que, até agora, temos uma imagem bastante positiva tanto da posição portuguesa como enquanto nação.
Já demonstrou deceção com as ações das Nações Unidas em relação à invasão da Ucrânia. O que deveria ter sido feito?
Tenho que deixar claro que, como disse o meu Presidente em 2021, as Nações Unidas são agora o edifício, é agora o arranha-céus e a Primeira Avenida, embora o secretário-geral esteja lá, as Nações Unidas são a assembleia dos governos e as decisões são tomadas pelos governos.
Se não estivermos satisfeitos com algumas das decisões, esses são os problemas dos governos que podem não tomar as decisões adequadas.
Por outro lado, as Nações Unidas não são apenas o Conselho de Segurança e a maior parte da frustração é dirigida ao Conselho de Segurança, onde a Federação Russa está autorizada a exercer o direito de veto soviético porque a Federação Russa ocupa literalmente o assento da União Soviética no Conselho de Segurança.
A Federação Russa pode desfrutar dos direitos soviéticos no Conselho de Segurança, o que imobiliza o processo de tomada de decisão do Conselho de Segurança e o Conselho de Segurança não é capaz de cumprir o seu mandato principal, que é prevenir e parar as guerras.
Se o Conselho de Segurança, hipoteticamente, decidisse que a Rússia teria de se retirar, seria o fim desta guerra?
Imaginemos que a Federação Russa está privada dos direitos soviéticos de vetar decisões no Conselho de Segurança. Imagine que submetemos a votação um projeto que diz, literalmente, que a Federação Russa deve parar a guerra, que a Federação Russa deve retirar as suas tropas da Ucrânia, e essa decisão é tomada pelo Conselho de Segurança, porque a Rússia não tem direito de veto.
O que acontece? Seus ouvintes acreditam que Putin liga ao Ministro da Defesa e ordena a retirada imediata das tropas? Não, infelizmente, estamos todos a lidar com um regime que cresceu para além de todas as normas e responsabilidades internacionais.
Penso que estamos a lidar com o regime e com um ditador que não se importa com o que as organizações internacionais estabelecidas decidem ou acreditam.
Essa é a tragédia desta situação e a culpa é nossa, por termos permitido nos últimos mais de 20 anos esse regime evoluísse para algo que está além do nosso controle coletivo e individual.
Já terá pensado muito sobre isto. Para si, qual poderá ser a solução?
O fim desta guerra está literalmente nas mãos de Putin. Se ele decidir parar esta guerra, ela termina numa questão de horas. Como ele não quer parar esta guerra, apesar da incrível perda de vidas, tanto dos próprios ucranianos como dos soldados russos, falamos agora de mais de um quarto de milhão de russos mortos, temos de continuar a exercer o nosso direito de legítima defesa e defesa colectiva, em linha com o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas.
Alguns teriam o dever de proteger não só a Ucrânia, mas também a Europa e a comunidade transatlântica, porque se a Ucrânia falhasse, Putin não iria parar. Se há pessoas no Ocidente que acreditam que ele iria parar, estão erradas, deveriam ver o que aconteceu depois da Geórgia, depois da Crimeia. Deveriam ver como Putin e o seu vassalo Lukashenko se comportam agora nas fronteiras da Polónia e dos Estados Bálticos.
Entrevista Renascença
Sergiy Kyslytsya não poupa críticas ao regime de P(...)
Esta guerra já se prolonga há mais de um ano e meio. Pode terminar com o desgaste das partes e sem um desfecho definido?
Não há desgaste. Eu tenho ouvido essa pergunta. Não. Quanto mais destruições enfrentamos na Ucrânia, quanto mais famílias de ucranianos são afetadas diretamente por esta guerra, mais eles estão decididos a lutar até que a justiça, a soberania e a integridade territorial da Ucrânia sejam restauradas.
Insisto que todos os serviços de inteligência ocidentais, em particular os serviços de inteligência americanos e britânicos, não foram capazes de prever o carácter iminente da invasão. Falharam totalmente ao levar em conta o nível de maturidade da nação ucraniana, a psicologia social dos ucranianos, e informaram os governos que os ucranianos se renderiam ou que a Ucrânia seria invadida, se não dentro de três dias, em algumas semanas. E penso que esse também foi um dos maiores erros de cálculo do próprio Putin, porque não percebeu que os ucranianos são muito resolutos.
Se olharmos para as sondagens de opinião pública nas vésperas do último Dia da Independência, que foi no dia 24 de agosto, veremos que mais de 80% dos ucranianos, apesar de todas as dificuldades e perdas de vidas humanas, estão radicalmente contra concessões territoriais.
Espera mudanças no terreno com a morte do líder do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin?
Pode haver algumas mudanças, mas serão pequenas e, sobretudo, ao nível tático. Mesmo quando ele estava vivo e quando ainda estava na Ucrânia, eles estavam à beira da exaustão. Não creio que grandes mudanças decisivas ocorrerão em resultado do assassinato de Prigozhin e a dissolução de alguns dos sindicatos e movimentos entre a Rússia e África.
Lula da Silva defende uma revolução nas Nações Unidas. Concorda com as alterações defendidas pelo Presidente brasileiro?
Felizmente não sou responsável pelo Brasil ou pelo nosso relacionamento com o Brasil.
O Brasil é um "player" regional muito importante, é óbvio. O Brasil é membro do Conselho de Segurança até o final do ano. Portanto, o Brasil tem muitas oportunidades de estar firmemente do lado certo da história. E quero dizer, nós ouvimos o Brasil, conversamos com o Brasil.
Como sabe, Lula da Silva enviou o seu conselheiro de política externa à Ucrânia, sentámo-nos com ele. Estamos prontos para falar com cada pessoa que esteja genuinamente a favor de uma paz sustentável na Ucrânia, baseada nos princípios da Carta das Nações Unidas e na resolução da assembleia geral de 23 de fevereiro, que basicamente abordou a maior parte dos pontos defendidos por Zelensky, no plano de paz apresentados no ano passado.
Os BRICS têm agora mais países e querem crescer ainda mais. Isto é uma ameaça para a Europa?
Muitos pensarão que sou louco, mas continuo a defender que exageramos na importância da política dos BRICS e do futuro alargamento do grupo.
Isso não significa que não seja um desenvolvimento importante, é um desenvolvimento importante. Mas então temos de voltar a chamar a atenção do público para os fundamentos dos BRICS. Não surgiram para estar na NATO ou nas Nações Unidas. Os BRICS foram criados para lidar com os investimentos corporativos. Criaram o banco de investimento do BRICS, que se recusou a investir na Rússia, uma vez que a Rússia é um Estado agressor.
Veremos o que acontece, mas os países têm o direito de formar alianças ou sindicatos regionais, ou outros. É nisso que insistimos quando dizemos que temos o direito e que ninguém nos pode tirar isso de aderir à União Europeia ou à NATO.
Putin suspendeu o acordo de exportação de cereais do Mar Negro. Pode ser desbloqueado ou será necessária uma nova solução?
Putin age de forma irresponsável, já é um hábito, porque Putin cancelou os acordos que tinha com a ONU e com a Turquia.
Houve dois conjuntos de acordos assinados em Istambul. Nós nunca assinamos nenhum acordo com a Rússia em Istambul. Houve um acordo assinado pela Ucrânia, Nações Unidas e Turquia, e houve outro assinado pela Rússia, com as Nações Unidas e a Turquia. E também houve um memorando entre as Nações Unidas e a Rússia.
Basicamente, a Rússia cancelou todos os acordos. A Rússia foi contra as Nações Unidas e a Turquia, além de ir contra os interesses de todos os países que tanto dependem da segurança alimentar e da estabilidade da cadeia de abastecimento.
Putin estava tão louco que, quando os líderes africanos vieram para a cimeira, em São Petersburgo, ele nem sequer entendeu como estava a humilhar o líderes africanos quando lhes ofereceu algumas dezenas de toneladas, milhares de toneladas de cereais, como se com isso pudessem eliminar a ameaça iminente de fome em muitos países.
Mesmo os países que estavam a lucrar diretamente com o Acordo de cereais no Mar Negro agora têm de pagar preços mais elevados para comprar alimentos e cereais a outros fornecedores.
Putin e Erdogan reúnem-se esta segunda feira, espera algo positivo deste encontro?
Erdogan é um político muito experiente e um político muito forte. Putin não é ninguém comparado com Erdogan. Acredito que Erdogan tem muitas coisas para dizer a Putin e muitas formas de explicar a Putin que deveria tentar pelo menos fingir que ainda controla a situação, porque a Rússia é cada vez mais um Estado fracassado.
Vemos como o sistema que Putin tem construído tão meticulosamente durante décadas está a desintegrar-se e como ele está a perder o controlo de muitos setores da vida pública. O caso de Prigozhin também mostra que o regime russo perdeu o monopólio da violência.
Acho que todos devemos esperar que aquele louco possa tentar ouvir o que Erdogan tem para lhe dizer.