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Marina, a inquieta peregrina que rezou junto ao Tejo para proteger a mãe no Donbass

15 ago, 2023 - 08:00 • José Pedro Frazão

Esta é a história de uma peregrinação singular a Lisboa de uma estudante ucraniana de 18 anos com quem a Renascença se encontrou três vezes, desde o momento em que decidiu participar na Jornada Mundial da Juventude até ao balanço que fez no momento da sua partida de regresso à Ucrânia.

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Na noite amena de sábado, 6 de agosto, Marina ergueu o telemóvel na secção A22 do Parque Tejo e começou a gravar o que se passava à sua volta. Prestou atenção aos écrans gigantes, registou o que se passava na Vigília da Jornada Mundial da Juventude. Nessa mesma noite, captou de modo especial as palavras do Papa Francisco e, através de uma rede social, carregou os vídeos e enviando-os numa mensagem com destino ao Leste da Ucrânia.

Como tantas outras vezes, Marina ligou digitalmente a sua fé à da sua mãe, enfermeira voluntária na frente de batalha do Donbass. "Ela diz que esta é a minha frente espiritual, que estou a fazer o que está certo. Escrevi-lhe que estava a rezar por ela e pelo meu primo que está também na frente. E pela nossa vitória mais rápida sobre o mal".

Nessa noite, o Papa lembrou a importância de caminhar e de levantar em caso de queda. Marina confessou por escrito à mãe que foi "muito difícil" chegar a Lisboa, mas ali estava, como peregrina, "feliz por ter chegado" à Jornada Mundial da Juventude.

Em mais de 500 dias, mãe e filha só se encontraram três vezes na Ucrânia, no Natal, na Páscoa e no início do Verão deste ano, sempre em Zaporizhzhia, com a presença da irmã e da tia. A mãe de Marina saiu de casa a 24 de fevereiro de 2022 e não mais voltou a Lviv, onde ambas viviam.

Sentiu que algo a chamava entre os estrondos da invasão russa de larga escala e seguiu para o Donbass como enfermeira voluntária. No início, Marina achava que a mãe "não tinha que ir para aquela zona" tão próxima da Rússia. Depois percebeu que "ela sentiu que tinha que ir, em nome do povo da Ucrânia".

A filha mudou a sua perspetiva com o passar dos meses. "Sinto-me orgulhosa da minha mãe. É a única mulher naquele batalhão". Antes da guerra, costumavam fazer peregrinações juntas, dentro da Ucrânia. Ambas são crentes católicas, de rito bizantino, unidas pela fé, agora separadas fisicamente. No último ano e meio, conversaram quase todos os dias, no mínimo através de mensagens, por vezes em videochamada.


"Acho que ela sente e sabe o poder que foi estar aqui em Lisboa. Vou falar-lhe sobre o poder da fé. Lembrar-lhe que, apesar de tudo, não se desiste, porque se sabe que Deus está connosco e nos ampara. É como se estivéssemos a carregar uma cruz com uma leveza que às vezes não se sente essa mesma cruz. E às vezes é tão difícil, existem tantas tentações, mas a fé é maior e mais forte. E sentimos ainda mais que chegará o momento em que a luz prevalecerá sobre as trevas", confessa esta jovem estudante de jornalismo da Universidade Ivan Franko, a mais antiga na Ucrânia, situada em Lviv.

Uma decisão demorada

Nunca Marina tinha saído da Ucrânia para tão longe. Logo após 24 de fevereiro de 2022, a mãe de Marina preocupou-se em colocá-la a salvo fora do país. A jovem católica de Lviv foi viver para um centro dos focolares na Suíça onde esteve apenas 4 meses. " Amo a Ucrânia, é aqui que quero estar", contou-nos em março deste ano numa manhã chuvosa em Lviv.

A mãe, a partir do Donbass, mostrou preocupação, mas deu o braço a torcer. Lviv é uma cidade longe da frente de batalha, do mais seguro que se pode encontrar nas grandes cidades ucranianas em guerra, mesmo para uma jovem de 18 anos.

Vive sozinha na maior cidade da Ucrânia Ocidental, longe das raízes familiares de Bila Tserkva, cidade situada 85 quilómetros a sul de Kiev. Filha de pais separados, tem uma irmã mais velha, já casada. Os focolares acabaram por ser o movimento que acolheu Marina na Suíça e que enquadrou a sua peregrina ucraniana em Lisboa.

Uma focolarina eslovaca que vive em Kiev acompanhou-a a Bratislava onde se integrou num grupo local de jovens que iria seguir para Lisboa. Ao longo da JMJ, Marina foi saltando entre os grupos da Ucrânia e da Eslováquia, num percurso particular, a par de outra peregrina ucraniana inscrita nos focolares eslovacos.

As hesitações e as incertezas fizeram parte deste percurso. Em março, Marina inclinava-se para ir a Lisboa, mas nada era certo. "Pensava constantemente que isto não era para mim. Disseram-me que ia ter que andar muito a pé e estaria fora durante 12 dias", recordava-nos mais tarde em julho. A mãe, sempre ligada à distância a partir do Donbass, incentivou-a a ir, pela oportunidade de conhecer outros jovens e de encontrar o Papa em Lisboa.

"A princípio concentrei-me nos aspetos negativos desta viagem. A estrada não acabava, passávamos as noites numa escola, conseguir comida era sempre um desafio e as condições gerais não pareciam adequadas a uma viagem de férias. No entanto, todos os membros da peregrinação foram avisados sobre isso com antecedência. Eu sabia que seria importante para mim experimentar esta peregrinação nalgum momento da minha vida. E sabia que este era o momento certo para mim, tanto mental como fisicamente", confessou à Renascença no final da JMJ.

Encontrar a tranquilidade em Lisboa

O poder da oração em tempo de guerra atraía Marina para a Jornada de Lisboa. " Havendo guerra na Ucrânia, com a minha mãe no Leste em lugares perigosos, as minhas preces vão ajudá-la, tenho a certeza. Quando rezo, sinto que Deus a protege e aos outros militares. Isto é tão verdade que duas pessoas do batalhão dela já morreram e desde então senti que a oração era necessária para a proteger", explicava-nos em Lviv pouco antes de se fazer à estrada para Portugal.

A necessidade de respirar 'ar fresco', não contaminado diretamente pela guerra, levou também Marina a aceitar a peregrinação a Lisboa. Descrevia-a em março como "uma oportunidade para recuperar em termos espirituais", confessando cansaço " como toda a gente " devido à guerra.

Marina conclui agora que a peregrinação para a Jornada de Lisboa foi uma experiência única, onde travou contacto com muitas pessoas diferentes nas suas personalidades e origens culturais, mas unidos em algo decisivo.

"A fé deles era tão forte que me fez sentir inspirada. Também ouvi estrangeiros expressarem o seu apoio à Ucrânia, o que também foi um incentivo. Senti-me mais tranquila na JMJ, porque toda a gente era amável, prestável, sempre a pergunta de onde se é. Em Lisboa senti unidade, que também existe na Ucrânia, mas em condições terríveis. Não esquecerei esta viagem e guardarei esta paz de espírito e a bênção do Papa. Vou tentar passar isto para outros ucranianos, porque isto faz-nos tanta falta", promete a jovem ucraniana no regresso a casa, uma semana depois do Papa ter aterrado de novo em Roma.

A jovem ucraniana procura ainda uma vocação para a vida, mas o impacto da Jornada de Lisboa não está ainda circunscrito. "Eu queria ir para um mosteiro, ser freira, mas nunca arrisquei porque achava que não era a minha praia", confessa à partida de Portugal. Quanto ao jornalismo, diz ainda acreditar que é uma missão de grande responsabilidade "onde se tem que correr riscos, como se estivesse na sua própria frente de batalha".

A Jornada serviu para ganhar forças para esse caminho incerto. " Sei também que não sou fraca, mas forte. A minha família é tão corajosa... Ainda não sei dizer exatamente quem gostaria de ser e onde me poderei encontrar. Mas posso dizer com certeza que só vou em frente, sentindo o apoio de Deus".

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