Eleições gerais e presidenciais

Islão, democracia e... cebolas. Turquia vai às urnas para as eleições mais disputadas da década

11 mai, 2023 - 16:19 • Joana Azevedo Viana

Este domingo, cerca de 85 milhões de eleitores turcos são chamados a escolher a composição do Parlamento e o próximo chefe de Estado. Recep Tayyip Erdogan e Kemal Kiliçdaroglu disputam a presidência, após uma campanha dominada pelos valores do Islão e a concentração de poderes no Presidente, a inflação e a subida dos preços de cebolas, batatas e pepinos. A grande questão é se, pela primeira vez em quase 10 anos, existe uma real hipótese de Erdogan não ser reeleito.

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Faltava pouco mais de um mês para as eleições deste domingo na Turquia quando Kemal Kiliçdaroglu, o principal opositor do atual Presidente turco, de 74 anos, partilhou um vídeo no Twitter a apelar ao voto no seu Partido Republicano do Povo (CHP), o mais antigo da história moderna do país.

De cebola na mão, sentado à mesa da sua modesta cozinha, Kiliçdaroglu deixou um aviso aos eleitores: se Recep Tayyip Erdogan vencer, o preço de um quilo de cebolas vai subir das atuais 30 liras turcas (1,40€) para 100 (4,67€).

A abordagem atingiu um nervo, não apenas do Presidente mas do país, onde os brutais custos de vida se tornaram o campo de batalha destas eleições.

Numa resposta quase imediata ao vídeo, Erdogan, que no domingo tenta conquistar um terceiro mandato consecutivo na presidência, garantiu que o seu Governo está a dar respostas eficazes à inflação.

"Não há neste país nenhum problema com as cebolas, nenhum problema com as batatas, nenhum problema com os pepinos", assegurou Erdogan.

A maioria dos turcos, contudo, sabe que não é bem assim, depois de a taxa de inflação ter atingido 85,5% em outubro, antes de baixar para uns ainda assim estrondosos 50% em março deste ano, acompanhada de uma grave desvalorização da moeda turca no pós-pandemia.

À sombra do autoritarismo

Se em 2003, quando foi eleito primeiro-ministro pelo Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), Recep Tayyip Erdogan se afigurava como modelo para o mundo islâmico com popularidade q.b. junto do Ocidente, hoje essa realidade parece bem distante.

Antes de ser eleito Presidente pela primeira vez, em 2014, o ex-jogador de futebol -- que em toda a carreira desportiva viu apenas um cartão vermelho -- era tido como o homem certo para encontrar um equilíbrio entre o islamismo e o tradicional secularismo da democracia parlamentar turca, com promessas de reformas alinhadas com a União Europeia (UE) e sem esquecer o papel preponderante da Turquia na NATO.

Mas quase uma década depois, inúmeros críticos do Presidente estão na prisão e os media e o sistema judiciário estão sob o jugo quase total de Erdogan, que hoje vive num monumental complexo presidencial com 1.150 divisões, que ele próprio mandou construir e ao qual os turcos se referem simplesmente como Saray, o palácio.

Os laivos de autoritarismo, aliados às crescentes dificuldades do turco comum no dia a dia, têm alimentado descontentamento no país, que para alguns foi agravado com a decisão de Erdogan em convocar estas eleições para 14 de maio -- um mês antes do que definia o calendário eleitoral -- na tentativa de contornar um artigo da Constituição que define que uma pessoa só pode ser eleita Presidente no máximo duas vezes consecutivas.

A profunda divisão política da Turquia está bem refletida nas sondagens, que ao longo das últimas semanas anteviam uma primeira volta renhida entre Erdogan e Kiliçdaroglu. As contas ficaram ainda mais baralhadas quando, três dias antes das eleições, um dos outros dois candidatos à presidência decidiu abandonar a corrida.

Uma segunda volta incontornável?

Sem Muharrem Ince, que Erdogan derrotou nas presidenciais de 2018 e que acabaria por sair do CHP para fundar o Partido da Pátria em 2021, os analistas antecipam que muitos indecisos poderão pender para Kiliçdaroglu e o CHP, cujo manifesto promete um travão às políticas económicas pouco ortodoxas do atual Presidente e alterações à Constituição para impor um limite de um mandato presidencial.

Para Kiliçdaroglu, o que está em causa nestas eleições é, mais do que tudo, a restauração da democracia turca, que definiu como "o primeiro pilar" da corrida eleitoral. A 23 de abril, dia em que se celebrou a fundação do Parlamento nacional, declarou:

"De uma forma que contradiz a sua própria história, o nosso poder legislativo parlamentar de longa data está nas garras do regime de um só homem."

Como tem sido marca forte da presidência, Erdogan apresenta-se a estas eleições como o candidato da maioria, defensor dos valores da família e do Islão, um homem forte contra um Ocidente "imperialista", progressista e liberal e contra as ameaças "terroristas" em casa, invocando, entre elas, a tentativa de golpe de Estado que, em 2016, levou à detenção de milhares de opositores (e cujos contornos continuam por esclarecer até hoje).

Foi graças a essa alegada tentativa de golpe que, em 2017, o chefe de Estado conseguiu uma vitória à justa (51,4%) num referendo que convocou para alterar o sistema político turco para um regime presidencialista. Seis anos depois, os resultados dessa consulta continuam a ser disputados pela oposição, entre outros motivos porque teve lugar em pleno estado de emergência pós-golpe.

Ao longo da campanha, foram inúmeros os ataques ferozes que Erdogan, de 69 anos, lançou contra todos os que o criticam, a começar e a acabar em Kemal Kiliçdaroglu, que classifica de "alcoólico e infiel". Recentemente, depois de o opositor ter pisado inadvertidamente um tapete de orações durante um evento público, o Presidente aproveitou um comício de campanha para elevar um desses tapetes ao céu enquanto exclamava: "Este tapete de orações não é para ser pisado com sapatos. Se Deus quiser, poderemos rezar em agradecimento sobre este tapete a 15 de maio."

Contra o todo-poderoso Erdogan, o candidato do CHP apresenta-se como o antídoto pluralista de que o país precisa, o único capaz de gerar consensos, ativo nas redes sociais com vídeos onde discute educação, nutrição e os esforços de reconstrução do país após o violento sismo que, em fevereiro deste ano, provocou mais de 45 mil mortos na Turquia e na vizinha Síria, já classificado como "o pior desastre natural num século na Europa".

A demarcar-se ainda mais do rival, Kiliçdaroglu aproveitou a campanha para declarar publicamente, via Twitter, que é um alevi, uma minoria religiosa com um longo historial de discriminação na Turquia. A declaração tornou-se viral e representa uma jogada arriscada num país de maioria sunita, o ramo do Islão que Erdogan também integra.

De acordo com a última sondagem do instituto Konda antes da ida às urnas, ainda sem refletir a saída de cena de Muharrem Ince, 43,7% dos turcos planeia votar em Erdogan no domingo, contra 49,3% para Kiliçdaroglu. A confirmarem-se as intenções eleitorais, ambos ficarão aquém dos 50% de votos necessários para evitar uma segunda volta, já marcada para 28 de maio.

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