25 ANOS DO ACORDO DE SEXTA-FEIRA SANTA

Irlanda do Norte. Um acordo de paz com cocktails Molotov

10 abr, 2023 - 06:40 • António Fernandes, correspondente em Londres

Vinte e cinco anos depois, um antigo editor da BBC fala em “motivos para preocupação”. No meio do atual impasse político, Londres aumentou o nível de ameaça terrorista no país para o máximo.

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Vinte e cinco anos depois, a paz na Irlanda do Norte é à prova de "troubles"?
Vinte e cinco anos depois, a paz na Irlanda do Norte é à prova de "troubles"?

Esta história começa muito antes do Acordo de Belfast, conhecido como Acordo de Sexta-feira Santa, assinado a 10 de abril de 1998. Os problemas na Irlanda do Norte começam na sua criação, em 1921, depois da separação que criou a República da Irlanda, que se libertou do domínio britânico.

No norte, num canto da ilha, ficou a Irlanda do Norte, integrada no Reino Unido. As divisões e a violência não acabaram e pioraram a partir de 1968. É nesse ano que começam os "Troubles", como são chamados os anos mais sangrentos dos conflitos na região.

“Cada dia, cada homicídio”, conta-nos Mark Devenport, o antigo editor de política da BBC na Irlanda do Norte e que acompanhou tanto a violência como o acordo que normalizou a vida no país, ainda que a ameaça terrorista seja “motivo para preocupação”. Mas vamos por partes.

O que divide a Irlanda do Norte?

Quando a agora República da Irlanda se procurou soltar das rédeas do poder britânico, nem todos na nova Irlanda do Norte estavam do mesmo lado.

A divisão opõe, em larga escala, dois lados: os nacionalistas e os unionistas. Os nacionalistas, maioritariamente católicos, pretendem a reunião das Irlandas. É deles que parte o grupo mais conhecido desta história, o IRA (Exército Republicano Irlandês), apesar de haver grupos semelhantes no outro lado. Para os unionistas há um laço inquebrável com o Reino Unido.

Os "Troubles", uma página sangrenta

Numa história já de si violenta, a página mais sangrenta começou no final dos anos 1960. Com distúrbios na Irlanda do Norte, as tropas britânicas chegaram para proteger os católicos, na minoria, e que nessa altura protestavam contra a discriminação que sofriam.

O envolvimento ultrapassa em muito essa missão inicial, com os conflitos a tornarem-se mais violentos depois do Domingo Sangrento, em 1972, quando tropas britânicas assassinaram 14 pessoas indefesas numa manifestação.

Esse período, de avanços e recuos, com períodos de cessar-fogo pelo meio, durou até 1998 quando foi assinado o acordo. Até lá, morreram mais de 3.500 pessoas, com a violência a extravasar os limites da Irlanda do Norte: por um lado, os nacionalistas do IRA atacaram também em solo inglês, com 500 ataques ao longo desses 30 anos; por outro, os unionistas da Força Voluntária de Ulster atacaram na República da Irlanda, por via de explosivos, raptos, entre outros.


Um acordo para a paz

Para Mark Devenport, na altura a acompanhar os confrontos e o acordo para a BBC enquanto editor de política no país, este foi um “período extremamente intenso” em que nunca houve certezas sobre se um acordo seria atingido, mesmo depois do cessar-fogo do IRA em 1994 (interrompido com ataques com bombas em Inglaterra). Nesses anos, Mark relembra “desenvolvimentos dramáticos, com bastante violência ainda presente, muitas vezes levada a cabo por grupos que operavam a favor dos grupos paramilitares mais conhecidos”.

Mesmo assim, o caminho para a paz continuou a ser trilhado e “todos, incluindo eu, que estávamos a reportar sobre um possível acordo sabíamos que isto seria histórico, porque nas décadas anteriores pensávamos que os "Troubles" iam continuar, quiçá sem fim. E aqui estava uma possibilidade real de chegar a alguma forma de entendimento”. Afinal, 13 anos antes, em 1985, um acordo muito semelhante e atingido sob o governo de Margaret Thatcher acabou recusado.

Anos e anos de negociações tiveram finalmente bom porto em 1998, quando foi assinado o acordo de Sexta-feira Santa. Do ponto de vista identitário, o acordo - assinado entre os partidos políticos da Irlanda do Norte, República da Irlanda e Governo do Reino Unido - estabeleceu que a Irlanda do Norte era parte do Reino Unido e que os seus cidadãos podem ter passaporte britânico, irlandês ou ambos.

Do ponto de vista dos confrontos, os grupos armados concordaram em abdicar do armamento que tinham, pessoas que estavam na prisão como consequência de atos violentos foram libertadas e o governo de Londres, liderado por Tony Blair, aliviou a presença militar na região.

Estabelecido o acordo entre as partes envolvidas, faltava o sim popular. A campanha motivou empenho político e até de celebridades, como Bono, o vocalista dos U2, de nacionalidade irlandesa e que subiu ao palco com John Hume and David Trimble, dois nomes centrais do processo de paz. Bono cantou pelo “Sim”, e em dois referendos simultâneos, tanto a Irlanda do Norte como a República da Irlanda aceitaram o acordo. Hume e Trimble receberam o Prémio Nobel da Paz, com Trimble a tornar-se Primeiro-Ministro no novo Parlamento norte-irlandês.

25 anos depois

Como parte do Acordo, mais de 400 prisioneiros que resultaram do conflito foram libertados. Mark considera que esse foi um ponto “essencial para que não fosse apenas um acordo político, mas uma paz que incluísse as milícias”, ainda que tenha sido muito difícil “para as vítimas dos Troubles ver na rua, a andarem livres, pessoas que que tinham cometido crimes graves”.

Para além das tensões que criou, houve uma outra falha na implementação do acordo: os prisioneiros foram libertados num período de dois anos, mas as armas ilegais das milícias demoraram mais tempo a sair de circulação, sete anos no caso do IRA. “Isso deu argumentos aos críticos do Acordo e foi a razão da queda de David Trimble”.

Independentemente disso, Mark Devenport não tem dúvidas: o Acordo mudou completamente a forma de vida na Irlanda do Norte. “Antes havia uma litania diária de mortes, cada dia, cada homicídio. Durante aquele período mais de 3.500 foram mortas”, recorda.

Desde aí “não tivemos uma paz perfeita”, mas os números baixaram bastante, serão “165 mortes desde o acordo”, diz Mark. O Acordo em si não foi um botão para reiniciar. Foi um trabalho progressivo, e na altura a violência não desapareceu do dia para a noite. Mark destaca por exemplo o bombardeamento por parte do IRA que em agosto desse ano vitimou 29 pessoas, mas conclui “que as coisas estão muito melhores do que estavam antes”.

Ainda assim, a redução nas fatalidades, diz, mostra que o Acordo “foi um grande sucesso”. Prova disso é que Mark constituiu família e os “meus filhos cresceram numa Irlanda do Norte pacífica, e isso é uma grande mudança se compararmos com a forma como a mãe deles cresceu durante os Troubles”. Falando nos filhos, Mark diz que as suas preocupações são as mesmas dos outros jovens. Corrige-se: “bem, os jovens também eram só jovens durante os Troubles. Mas se vivessem em Londonderry ou Belfast, estavam habituados a disrupção, como o autocarro da escola ter de ir dar uma volta maior para evitar uma área de conflito”. Isso já não acontece, “mas ainda há divisões”, diz.

Essas divisões acontecem, por exemplo, com católicos e protestantes a viverem em zonas diferentes. É o caso em bairros sociais, que são “efetivamente divididos entre protestantes e católicos” e que, por isso, se alguém precisar de habitação social “tem de dizer a que comunidade pertences”. A situação alastra-se ao ensino escolar, que se divide entre o sistema estatal e o sistema católico, com um terceiro sistema a entrar na corrida - o integrado. Nessa terceira via, professores e alunos dos dois lados misturam-se. Esta divisão não é feita a régua e esquadro. Mark conta que se formos ao centro de Belfast, a capital, “as pessoas estão a misturar-se, é uma cidade normal”. Isso acontece também porque os jovens que são filhos do Acordo “crescem com amigos do outro lado da divisão comum” e que simplesmente “querem fazer a sua vida, como qualquer outra pessoa da Europa Ocidental e ter uma vida próspera”.

Um país desgovernado

O Acordo devolveu à Irlanda do Norte capacidade de governação, mas o funcionamento de Stormont, o parlamento, tem sido intermitente. O Governo rege-se pelo princípio da partilha de poder, o que significa que qualquer Governo tem de ter representantes dos dois lados - unionistas e nacionalistas, de forma a que as duas comunidades tenham interesse em fazer o sistema funcionar. Da mesma forma há um primeiro-ministro e um vice primeiro-ministro, um de cada lado. Os dois ministros partilham o poder de igual forma e um não pode exercer se o outro se demitir.

Essa partilha do poder tem levado a várias interrupções no governo, a mais longa entre 2002 e 2007. Nessa ausência de poder, o governo funciona em piloto automático durante um período e perante a ausência de resolução fica sob governação direta de Londres. Neste momento há de novo um impasse e o país está sem governo, depois dos Unionistas se recusarem a formar governo enquanto não virem o Protocolo da Irlanda do Norte, resultado do Brexit, resolvido.

A longa mão do Brexit

Entre os anos de campanha para o referendo à saída da União Europeia, as negociações para a saída e a discussão sobre as consequências, nenhum assunto dominou mais o Reino Unido na última década que o Brexit. A Irlanda do Norte não é exceção - com o Acordo de Dexta-feira Santa à mistura.

Como parte do Acordo de 1998, foram removidos os dispositivos de segurança em que militares revistavam quem quisesse passar de uma Irlanda para a outra. Com a saída do Reino Unido da União Europeia, a Irlanda do Norte tornou-se a única fronteira com a União Europeia mas para evitar uma fronteira física por terra criou-se o Protocolo que estabeleceu um sistema de controlo no mar da Irlanda. Esse tema, o principal motivo de atraso nas negociações do Brexit, não está resolvido - os Unionistas defendem que prejudica a relação com o restante Reino Unido ao criar regras diferentes para a Irlanda do Norte e recusam-se a integrar Governo enquanto esse assunto não for resolvido.

Rishi Sunak tornou essa a sua prioridade em Downing Street, e chegou a um acordo com a União Europeia para estabelecer um sistema de tráfego com uma via para os produtos que vão da Grã-Bretanha para a Irlanda do Norte e outra para os que devem seguir para a União Europeia. Esse sistema iria aliviar a carga burocrática para o comércio, com muitos negócios a queixarem-se que o Protocolo tinha tornado as vendas para o restante Reino Unido muito difíceis. Para os Unionistas isso ainda não é suficiente.

Mark Devenport diz que é “desanimador que um dos desfechos do Brexit tenha sido a queda da coligação em Stormont”. O Acordo de Windsor atingido por Sunak “melhorou a situação ao facilitar de certa forma o comércio”. Ainda assim, será preciso “mais tempo, porque o núcleo duro dos Unionistas continua preocupado que isso afete a identidade dos norte-irlandeses como britânicos”.

Até lá, os Unionistas recusam-se a formar Governo e Mark entende “que é difícil separar o Acordo de Windsor do regresso a Stormont”.

Alerta máximo para ameaça terrorista

No meio da impasse político, Londres aumentou o nível de ameaça terrorista no país para o máximo. No nível severo, o risco de um ataque é considerado altamente provável. Em causa está a atividade dos dissidentes republicanos, conhecidos como o novo IRA e que nunca aceitaram o acordo feito há 25 anos.

Durante o período de paz, os incidentes não acabaram por completo, como Mark Devenport já indicou. Recentemente, voltaram a subir de tom. Em 2021 houve mais de uma semana de tumultos em várias cidades, sem ser claro se teriam sido organizados. O caos desses dias recordou os piores momentos dos "Troubles", com dezenas de polícias feridos, com cocktails molotov a serem lançados na sua direção. Em causa estariam tensões nos unionistas relacionadas com a insatisfação face ao Protocolo da Irlanda do Norte, que consideram enfraquecer a relação com o restante Reino Unido. Na Páscoa de 2022, novos confrontos depois de uma marcha. Em Novembro de 2022 um carro de polícia sofreu um ataque com bomba, e em Fevereiro deste ano um polícia foi atacado a tiro quando estava a dar um treino de futebol a jovens.

A escalada de acontecimentos mostra que “há motivos para preocupação”, diz Mark, que considera que há uma “fação pequena mas perigosa fação que nunca aceitou o acordo”. São eles os responsáveis pela tentativa de homicídio desse polícia, que Mark descreve como um “ataque brutal, feito enquanto ele estava a dar um treino de futebol a menores. E fizeram-no à frente desses jovens”.

O perigo não chega só do Novo IRA, há também milícias paramilitares chamadas leais, por defenderem a união ao Reino Unido. Para Mark, muitos desses estão “interessados em encher os próprios bolsos através de crime organizado e continuam a controlar algumas áreas”. Por tudo isto, a situação é “longe de ser perfeita” mas ainda assim acredita que é “difícil de imaginar que qualquer um dos lados repita o nível de violência atingida nos Troubles”.

Biden vs Clinton

Perante a subida na ameaça terrorista e a ausência de Governo, a visita de Joe Biden, Presidente dos EUA, para assinalar os 25 anos do Acordo de Sexta-feira Santa chega num momento de tensão. Também por isso faz lembrar a visita do antigo Presidente norte-americano Bill Clinton que visitou a Irlanda do Norte em Novembro de 1995 para incentivar um acordo de paz.

Clinton visitou vários pontos no país, ficando particularmente conhecido o discurso em Londonderry. A cidade tinha sido palco de alguns episódios particularmente violentos envolvendo as milícias, e a chegada de Clinton trouxe uma nova dose de esperança, perante uma praça cheia de pessoas agarradas a bandeiras americanas. “A certo ponto na sua vida, toda a gente tem de decidir que tipo de pessoa é. Defines-te por aquilo a que te opões, ou por aquilo que apoias?”, perguntou Clinton, dizendo que era tempo de ser dada aos agentes da paz a hipótese de “terem sucesso” e que, para isso, as pessoas tinham de “se manter firmes contra o terrorismo”.

O acordo estava ainda a três anos de distância, mas a visita de Clinton é vista como um ponto central do processo de paz. Pode a visita de Joe Biden, que tem ligação familiar à Irlanda, fazer a diferença? Mark Devenport diz que a chegada de um presidente americano tem sempre impacto e “tenho a certeza que, quando chegar, Biden vai pressionar os partidos políticos da Irlanda do Norte para chegarem a um compromisso e honrarem o espírito do acordo”. Para Mark, os Unionistas estão mais preocupados com o que os seus apoiantes dizem do que o que diz a Casa Branca, mas “suponho que toda a ajuda é pouca”.

Olhando para a visita de Clinton em 1995, Mark considera a ocasião “extraordinária, porque ainda éramos uma zona de guerra” apesar do cessar-fogo em vigor na altura. Serviu acima de tudo “para levantar a moral das pessoas comuns e inspirar as pessoas”. Ainda assim, relembra que é preciso pôr as coisas em perspectiva. Num dos seus discursos, Clinton defendeu que “o cessar-fogo virou a página em 25 anos de violência e que não se pode deixar que se volte atrás”. Poucas semanas depois o IRA quebrou as tréguas e bombardeou a Inglaterra, “por isso não espero que assim que a comitiva Biden deixe a cidade se vejam as diferenças”.

Em entrevista à televisão irlandesa RTE por ocasião do aniversário do Acordo, Bill Clinton disse que “é um milagre que o acordo tenha sobrevivido ao Brexit, que atacava o coração do Acordo.”

Duas Irlandas ou uma só?

No final de contas, voltamos ao centro da discussão que marcou os últimos 100 anos: “temos de ter em mente que o debate sobre se a Irlanda do Norte deve ser Britânica ou Irlandesa ainda continua”.

O Acordo de Sexta-feira Santa previa a possibilidade de referendos à união nas duas Irlandas, e Mark diz que a esperança é que quando esse dia chegar “o processo vai ser conduzido pacificamente” e que esse é um assunto que “preocupa a maior parte das pessoas, o potencial para violência que uma decisão dessas pode ter.


No entanto, Mark destaca que no seu passado de repórter a cobrir o conflito “nunca poderia ter imaginado que a Irlanda do Norte teria por exemplo uma industria do cinema, e seria a casa da Guerra dos tronos ou a paisagem do novo filme Dungeons and Dragons, ou uma indústria farmacêutica. Mas continuamos a ter uma questão de identidade para resolver.”

Uma questão que estará “pelo menos a mais de uma década de distância e neste momento as sondagens indicam que apenas 40% querem uma Irlanda unida”. O Acordo estabelece que para haver referendo, tem de ser muito claro que a maioria quer a união e “a maioria das administrações em Londres serão relutantes em fazê-lo”.

Até lá, a Irlanda do Norte continuará a tentar proteger o acordo de paz, gerindo a ameaça da violência e as dificuldades em governar um país dividido.

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