03 abr, 2023 - 06:06 • José Pedro Frazão , enviado da Renascença à Ucrânia
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Tudo estremece em Kherson, na Ucrânia. Espanta mesmo que alguém consiga dormir ou até viver com tranquilidade na cidade bordejada pelo rio Dniepre. A linha da frente é feita de água sobrevoada, minuto sim minuto não, pelos engenhos e as artes de guerrear de russos e ucranianos. Os snipers percorrem as margens, com a mira apontada ao inimigo. E é exatamente a um quilómetro do rio que está a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, principal templo católico romano do centro da cidade.
Fomos desaconselhados a visitar pelo perigo de sermos, como qualquer habitante ou edifício de Kherson, um misto de alvo e dano colateral da guerra pela cidade. Por fim, decidimos avançar com a meta interna de não mais de 20 minutos para fazer perguntas e fotografar o espaço.
"O padre Maxim disse-me que você queria encontrar-se comigo no centro da cidade", diz-nos Serguii, doravante o nosso cicerone na Igreja. Sim, perante o cenário de impossibilidade de deslocação por razões de segurança, ponderámos um local intermédio em Kherson. "Mas na véspera de Natal, o centro da cidade foi fortemente bombardeado. Muitas pessoas foram mortas. Toda a cidade é perigosa. Não há nenhum lugar na cidade que seja mais seguro do que outro", avisa o nosso anfitrião, confiante que o melhor é mesmo não sair muito da Igreja.
Não é bem verdade que assim seja, senão a frase seguinte perderia valor face à verdade. "Eu não tenho muito medo. Há pessoas que têm medo de sair à rua porque nunca se sabe quando é que eles começam a disparar. Bem, eu não tenho medo, na verdade. Pego no meu rosário e vou onde tenho que ir". Enquanto Serguii diz isto, as explosões sucedem-se em fundo, provavelmente, a uns quatro ou cinco quilómetros.
Em Kherson ninguém esquece o Natal, sobretudo o último. No dia 24 de dezembro o centro da cidade foi alvo de um intenso ataque russo que fez uma dezena de mortos. Muitos civis foram atingidos quando se encontravam a fazer compras em mercados locais. A cidade estava já em processo de esvaziamento depois de ter sido reconquistada pelos ucranianos.
"As pessoas começaram a sair ainda mais depois da libertação da cidade. Partiram por causa dos tiroteios e bombardeamentos constantes. Estamos sistematicamente sob fogo", diz Serguii, que acumula funções na paróquia.
Professor de inglês e catequista, ele é também o braço direito do padre Maxim Padlevsky na gestão da Igreja e também no altar, como acólito e ministro da Comunhão.
"Sair daqui seria uma traição ao meu padre, ao meu reitor, que confia em mim para tantas coisas", diz o sacristão, que vive na casa paroquial existente na parte traseira da igreja.
Serguii conta-nos que antes da guerra as missas atraíam mais de duas centenas e meia de fiéis. No início de março, apenas três pessoas compareciam às missas diárias e pouco mais de 10 comungavam ao domingo. Porque partiram, porque ficaram, é uma pergunta em dois sentidos.
"Algumas pessoas não saíram porque é difícil começar tudo. Algumas pessoas não querem ir embora porque não querem deixar os seus pais idosos. E outras pessoas não vão porque simplesmente não querem ir. Por exemplo, eu tenho um lugar para ir, mas não quis sair e fiquei aqui. Se não fosse pela Igreja , já teria saído de Kherson e da Ucrânia".
Logo após o 24 de fevereiro de 2022, Kherson caiu em mãos russas. Em seis dias, a cidade foi tomada e representou uma importante vitória para Moscovo na invasão terrestre na Ucrânia. A batalha final por Kherson travou-se a 2 de março, Quarta-feira de Cinzas.
"Nós vínhamos para a igreja sob tiroteios, bombas e coisas assim. Eu caminhava para a igreja com aqueles aviões russos a sobrevoar-nos. Foi assustador. Nenhum transporte público, nenhum carro era permitido", recorda Serguii.
Foi uma Quaresma sob ocupação, um cenário que se prolongou pelo período Pascal e tornou-se tempo comum para os católicos de Kherson.
Serguii ocupou-se com traduções online para ganhar dinheiro como intérprete ao longo desse tempo. "Não trabalhei para os russos nem um único dia. Fui convidado para trabalhar em escolas russas aqui, mas recusei", faz questão de dizer.
A ocupação deixou marca no comércio e nas empresas de Kherson, como que paralisando a economia num contexto de guerra, explica-nos Serguii.
"Eu estava muito bem financeiramente, mas psicologicamente era difícil porque poderíamos ser presos por qualquer coisa que eles não gostassem, até mesmo a cor das roupas ou algo assim", confessa o professor, que ainda hoje mantém três estudantes a cargo no contexto de grande perigo devido aos bombardeamentos. A catequese é dada com manuais em língua inglesa e ucraniana, a pensar num futuro pós-guerra fora de Kherson.
O controlo de Kherson pelos russos ficou marcado por diversas manifestações contra a ocupação. Os habitantes trocaram os cartões dos telemóveis, protegendo os contactos ucranianos e mantendo acesso à Internet. As pessoas que filmavam e publicavam essas ações nas redes sociais eram rastreadas e depois detidas, assegura Serguii, que revela que os russos foram à Igreja falar com o padre, mas nunca encetaram uma perseguição à Igreja Católica romana de Kherson.
O mesmo não terá acontecido com os católicos de rito grego, sobretudo nas áreas ocupadas na margem esquerda do rio, onde ainda há celebrações diárias, embora com dificuldades crescentes de mobilidade e de acesso a documentação.
Os católicos de rito romano nunca interromperam a missa devido aos bombardeamentos, apesar da queda de dois engenhos na Igreja. A Páscoa foi vivida em ocupação, mas a hora da vigília foi recuada para as 15h00.
O contexto atual deve restringir as celebrações apenas ao interior da Igreja, mas o espírito da ressurreição adapta-se também a uma cidade que mantém a esperança em dias melhores, já tendo visto dias e noites bem negras.
Quando perguntamos a Serguii pelo dia da libertação, o homem que diz não ter medo não contém a emoção. Levanta-se, vai beber um copo de água à cozinha e regressa com um discurso de rajada.
"Foi maravilhoso. Esperámos nove meses pelo nosso exército. Lutámos como pudemos enquanto a propaganda russa dizia em grandes cartazes que a "Rússia estava aqui para sempre". Os nossos militares entraram de uma forma bem tranquila. Nem me apercebi logo da sua presença. Acenaram a partir de veículos militares e só olhando para as fardas entendemos que tinham uniformes ucranianos", recorda o nosso anfitrião.
Seguiram-se duas semanas de festejos, com pessoas nas ruas vestindo as cores da Ucrânia, enchendo as ruas de bandeiras ucranianas e bloqueando a passagem dos militares de Kiev, a quem davam bolos e flores. Ao fim de duas semanas a festa acabou.
"As coisas mudaram porque os russos começaram a disparar muito fortemente. Durante um mês e meio não tivemos luz, água, aquecimento, nada. Mas ainda estávamos felizes". A Igreja serviu de ponto de ajuda humanitária face ao fecho do comércio, distribuindo mantimentos enviados do estrangeiro e do resto da Ucrânia.
Do outro lado do rio, na zona ainda ocupada pelos russos, sabe-se pouco ou pelo menos com frequência mais espaçada.
Em Oleshky, a 20 quilómetros de Kherson, celebram-se missas todos os dias, tal como em Tavrisk, ao pé de Kakhovka, numa zona também de linha da frente.
Em tudo isto há uma ligação portuguesa. A Igreja de Oleshky é consagrada a Santo António e no silêncio da Igreja vazia do Sagrado Coração em Kherson, entrecortada pelos rebentamentos ali próximos, há também um altar onde o hábito castanho do Santo de Lisboa ganha expressão num altar procurado pelas católicas mais idosas de Kherson.