Entrevista a Miguel Monjardino

“O futuro não será favorável a Portugal se continuarmos como um país adolescente e do Instagram"

20 fev, 2023 - 06:30 • José Pedro Frazão

Na segunda parte de uma longa entrevista sobre os desafios de um ano de guerra na Ucrânia, o especialista em Relações Internacionais avisa que o mundo está a mudar e defende que Portugal não deve apenas ir à boleia da tendência.

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Miguel Monjardino, professor da Universidade Católica, e que acaba de lançar “ Por Onde vai a História”, argumenta que a estratégia do país deve ser marítima, pede mais reflexão sobre a transição energética e advoga maiores ligações entre as reflexões políticas internacionais e o domínio da ciência e tecnologia.

Preocupado com a fragilidade de Portugal, Monjardino defende que o país deve ser mais bem governado porque é perigoso entrar em decadência em tempos de transições de poder no mundo.

Chama a atenção sobre componentes menos vistas no estudo das relações internacionais e da geoestratégia, nomeadamente a questão da ciência e tecnologia. Inclusivamente articula uma visão um pouco negra em relação a desafios mais globais como o aquecimento global. Escreve mesmo que, com as atuais tecnologias, será muito difícil chegarmos às metas globalmente estabelecidas. A ciência e a tecnologia vão aprofundar ainda mais a rivalidade ou trarão áreas de convergência e de cooperação, por exemplo, na questão climática onde não há fronteiras?

Há uma insatisfação no livro pela forma como nós, em Portugal, olhamos para a política internacional. Fazemo-lo de uma forma muito política, olhamos demasiado tarde para os problemas. Quando chegamos à fase de processo de decisão, passaram já anos em que não prestámos muita atenção a certas coisas como a ciência e tecnologia. Esta tem a ver com o futuro económico e por isso devemos também prestar-lhe bastante atenção.

Há claramente uma competição a nível de algumas áreas nas áreas mais avançadas. Estamos a falar, por exemplo, dos microprocessadores e nos veículos elétricos. Foi uma indústria tradicionalmente dominada pelos países europeus, Estados Unidos e japoneses.

Agora com a transição para os veículos elétricos, suspeito que vamos caminhar para uma geografia industrial um pouco diferente. Tudo aquilo que chamamos de transição energética assenta em metais essenciais como o lítio ou o cobre. Onde é que esses metais estão e em que condições é que esses metais são explorados? Toda a gente é a favor da transição energética, mas ninguém quer os impactos ambientais negativos.

Em Portugal devemos prestar mais atenção a estas questões associadas à ciência e tecnologia que, do meu ponto de vista, são muito importantes. Por exemplo, foi muito importante para Portugal ter a Autoeuropa e temos de estar integrados num ecossistema industrial. Em certo tipo de decisões, por exemplo, em relação a telecomunicações, não é indiferente qual é a tecnologia que um país escolhe.

Sendo que se coloca a possibilidade ou não de poder ter de escolher entre China e Estados Unidos, por exemplo?

Sim, claramente essa é uma decisão política. Nós fizemos uma escolha.

Do ponto de vista da energia, por exemplo, é evidente que estamos mais nas mãos chinesas do que nas americanas.

Portugal tomou uma decisão em circunstâncias absolutamente dramáticas. Não posso criticar a China por ter afirmado os seus interesses, mas talvez deva criticar o nosso país por ter chegado a uma situação como aquela. A vulnerabilidade e a fraqueza de Portugal em certos momentos da sua história mais recente é algo que obviamente me preocupa. Acho que devemos ser mais bem governados. Não estou a dizer que deve ser o partido A em vez do B, não estou a falar sobre isso.

Estamos numa trajetória de decaimento lento em relação aos outros. Isso é claro para mim, vê-se na questão demográfica e também naquilo que me parece ser a falta de confiança que as pessoas manifestam no seu país quando vão embora.

"A vulnerabilidade e a fraqueza de Portugal em certos momentos da sua história mais recente é algo que obviamente me preocupa. Acho que devemos ser mais bem governados."

Se quisermos evitar essa trajetória e aquilo que será a irrelevância do país, em que outros decidirão por nós – e tomarão muito bem conta de nós, de certeza - temos de fazer melhor do que temos feito até agora.

Mas quando olhamos para Sines como plataforma de entrada em Portugal e na Europa, nomeadamente no plano da energia com o gás liquefeito norte-americano, quando olhamos para as rotas marítimas a que eventualmente devíamos estar mais atentos, não serão esses os locais simbólicos desse pensamento novo que Portugal tem de ter?

Portugal precisa de decidir se quer ou não ter uma estratégia nacional que seja sobretudo marítima. Penso que, em função da nossa geografia, dos nossos interesses e também da nossa história, a orientação dominante da estratégia nacional deve ser marítima.

"(...) em função da nossa geografia, dos nossos interesses e também da nossa história, a orientação dominante da estratégia nacional deve ser marítima."

Mas isso é um assunto que tem de ser discutido a nível nacional e depois tem de haver uma decisão política que pode ou não ser continuada por futuros governos. E eu acho que nós temos pensado pouco sobre isso.

Escreve que somos um país adolescente.

Sim, somos um país muito emocional e que vive sobretudo para o momento. Somos um país “instagramer”. Isso é o momento, o que interessa é a última estatística. Nunca prestamos muita atenção, porque é politicamente difícil, à nossa trajetória. O que interessa é a trajetória de um país, falar de 20 ou 30 anos, comparado com os nossos parceiros, neste caso, sobretudo os países europeus.

A estratégia foi a integração europeia, por exemplo.

E muito bem. Acho muito bem que nos tenhamos integrado na União Europeia. Pertenço a uma geração em que nós “não éramos Europa”. A Europa começava ali em França, estávamos ali num limbo. Portanto, a opção de integração naquilo que é hoje a União Europa foi a opção correta.

"(...)somos um país muito emocional e que vive sobretudo para o momento. Somos um país “instagramer”. Isso é o momento, o que interessa é a última estatística. Nunca prestamos muita atenção, porque é politicamente difícil, à nossa trajetória."

Agora, em função da nossa geografia e dos nossos interesses, temos de arranjar um espaço onde nos possamos afirmar como um país viável. Acho que essa orientação deve ser mais marítima do que tem sido até agora.

Desse ponto de vista, a guerra na Ucrânia é uma coisa muito longe para Portugal.

De um certo ponto de vista, é. Mas sob um outro ponto de vista, não é, vemos isso na ambiguidade da posição portuguesa em relação à adesão ou não da Ucrânia na União Europeia, que os franceses e alguns países do sul da Europa também partilham.

Mas então, qual é o papel da Ucrânia na Europa? Por outro lado, se o sistema internacional evoluir de uma certa forma, nós poderemos ter alterações muito significativas na forma como a globalização funciona ou tem funcionado. Ora, para um país como o nosso, que tem uma economia que assenta cada vez mais – e bem - em exportações, isso é algo a que nós devemos prestar muita atenção.

"(...)a opção de integração naquilo que é hoje a União Europa foi a opção correta. Agora, em função da nossa geografia e dos nossos interesses, temos de arranjar um espaço onde nos possamos afirmar como um país viável".

Nesta transição, mais tarde ou mais cedo, uma nova configuração do sistema ajudará a criar uma ordem. Qual é o nosso papel na criação desta ordem? Nós podemos só ser meramente passageiros - acho que é assim que nos sentimos melhor - ou podemos ser mais agentes nesta transição.

Penso que, com os recursos que temos, devemos ser mais agentes na geração de fontes de ordem internacional, a nível institucional, em termos de interesse, em termos de valores. Acho que devemos fazer isto. Mas para o fazermos temos de ter uma melhor economia.

Uma das questões do livro é também o papel para os Estados e das comunidades políticas nessa nova ordem. Estamos resguardados numa comunidade política europeia cuja legislação incorporámos e estamos dependentes verdadeiramente da ideia da solidariedade, da coesão, devido à nossa natureza periférica. Apesar de tudo, pode não conter a resposta para nos dar esse lado proativo que acha que poderíamos eventualmente também ter.

Sim, mas se continuarmos a ser assim, de facto não estamos a contribuir de forma significativa para a criação de ordem no sistema internacional. Estamos a ser passageiros, vamos apenas à boleia. Acho que o futuro não será favorável aos países “adolescentes”, para usar a expressão do livro, ou ao país Instagram que goza o momento. O futuro pertencerá mais aos países que se organizarem internamente. O problema é sempre um desafio interno e nós temos coisas muito boas a nosso favor. Somos um país estável, com fronteiras muito antigas, das mais antigas do mundo. Somos um país coeso, mas tal nos não nos tem impedido de a trajetória ser de decaimento. Ora, uma trajetória de decaimento num sistema em transição parece ser uma combinação perigosa para um país como o nosso.

Escolhe a pergunta “por onde irá a história” em vez de “para onde irá a história”. Qual é a diferença?

Há muitas diferenças. Em Portugal pensamos de uma forma muito linear sobre as coisas, ou seja, quando estamos interessados em algum tema, esse tema nunca tem ligação com o outro ao lado. Os temas não interagem entre si, ou seja, nós pensamos normalmente em tendências. A tendência leva-nos a fazer a pergunta “para onde vai”.

"Estamos a ser passageiros, vamos apenas à boleia. Acho que o futuro não será favorável aos países “adolescentes”

Não é assim que eu olho para o mundo. É a minha proposta, haverá outras, certamente, mas quis explicitar exatamente, por causa do momento que nós vivemos, como é que eu penso e porque é que chego a determinadas conclusões. É evidente que essas conclusões são sempre provisórias, mas é uma contribuição para o debate.

Como acho que nós devemos pensar sobre o mundo de uma forma que incorpora o conceito da complexidade, associando áreas diferentes e partindo do pressuposto de que essas áreas interagem entre si, o resultado é muito mais difícil de saber. Portanto, a pergunta correta parece-me ser “por onde vai?” porque eu de facto não sei. Acho que não é possível responder.

"Somos um país coeso, mas tal nos não nos tem impedido de a trajetória ser de decaimento. Ora, uma trajetória de decaimento num sistema em transição parece ser uma combinação perigosa para um país como o nosso."

A história não tem uma direção. Não sou nada adepto das teorias partidárias da ideia de que nós sabemos para onde vai a história. Não sabemos para onde vai a história, mas isso não nos leva a uma conclusão pessimista. Acho que somos agentes da história e temos uma contribuição a dar para responder à pergunta “por onde irá a história?”

Então a vertente marítima do pensamento que estava a explicar está mais no “por onde”? Não deveremos ir “para o mar”?

É indiferente. O mar será sempre importante. O problema é uma predisposição intelectual. Como é que nós olhamos para um problema? Como é que nós gerimos e ficamos confortáveis com a incerteza que é natural? Diz-se atualmente que vivemos numa época muito incerta, mas as épocas foram sempre muito incertas.

Estamos a sofrer da doença do presentismo, deixámos de ler história, olhamos só para o momento e só interpretamos a política internacional à luz de um acontecimento.

E é por isso que os decisores políticos em Portugal, mas também no estrangeiro, dizem que todos os problemas que nós temos hoje são por causa da guerra na Ucrânia. Mas também disseram o mesmo durante a pandemia. Acho que temos de ter mais recursos teóricos. O nosso ângulo de visão tem de ser bastante mais longo do que tem sido para percebermos as “ondas da história” e no fim de contas, podemos interpretar melhor o momento que vivemos.

Em toda a sua reflexão cita sempre clássicos. Eles ensinam-nos a perceber por onde o mundo há de caminhar, mesmo que não nos diga para onde?

Os textos clássicos são fundacionais e devem fazer parte da educação de qualquer pessoa. É importante continuar a ler Heródoto, Tucídides, Homero, Políbio, Tácito, Plutarco.

"(....)os decisores políticos em Portugal, mas também no estrangeiro, dizem que todos os problemas que nós temos hoje são por causa da guerra na Ucrânia. Mas também disseram o mesmo durante a pandemia. Acho que temos de ter mais recursos teóricos."

Por exemplo, quando assistimos a períodos de grande dissensão interna, vale a pena ver ler por exemplo as linhas de Tucídides sobre o colapso da democracia ateniense. Vale a pena ler Políbio exatamente pelas mesmas razões por que ele estudou o sistema constitucional romano.

Temos também Tácito porque houve momentos muito difíceis na história romana que são, do meu ponto de vista, particularmente atuais. Ter esse recuo histórico para mim é importante e acho que quem escreve sobre o mundo deve ter uma educação literária. Mas, como eu tento mostrar no livro, também deve falar com cientistas e pessoas de áreas completamente diferentes, que têm coisas muito interessantes para dizer e conceitos muito interessantes de física e matemática.

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