Prémio Sakharov

Francisco de Roux: "Foram assassinadas 24 pessoas do meu grupo. Sempre quis conhecer os responsáveis"

30 dez, 2022 - 06:30 • Fábio Monteiro

Há cerca de seis meses, a Comissão da Verdade da Colômbia apresentou um relatório para tentar estancar e dar luz ao conflito que assola o país há seis décadas. À Renascença, Francisco de Roux, padre jesuíta e presidente da organização, conta como o documento já está a produzir mudanças na Colômbia. E como é importante reconhecer a verdade - para quem almeja ter paz.

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A Colômbia vive assombrada por uma guerra civil há mais de 60 anos, um conflito – alimentado pelo narcotráfico e guerrilhas - que já provocou mais de meio milhão de vítimas e dezenas de milhares de desaparecidos. Para tentar sanar feridas e encontrar a paz, a Comissão da Verdade da Colômbia trabalhou durante quatro anos, de modo a tentar encontrar explicações para as atrocidades vividas no país e também procurar soluções para o futuro. O fruto desse trabalho, um relatório, foi apresentado em junho deste ano.

A Comissão da Verdade Colômbia foi uma das entidades finalistas do Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento. Em entrevista à Renascença, Francisco de Roux, padre jesuíta e presidente da Comissão da Verdade da Colômbia, diz estar confiante que o documento venha a produzir mudanças no país. Garante que não nenhum partido político é dono do relatório. E conta como foi perder mais de duas dezenas de pessoas, de amigos, no conflito.

A Colômbia vive, há mais de seis décadas, uma guerra civil gerada, em grande parte, pelo narcotráfico. Há cerca de seis meses, a Comissão da Verdade da Colômbia apresentou um relatório feito com o propósito de tentar sanar o conflito e também explicá-lo. Neste momento, já há frutos visíveis desse trabalho?

Sim. Assim que tomou posse, o novo Presidente da Colômbia [Gustavo Petro, eleito em agosto] admitiu as conclusões a que a comissão chegou e disse, perante os colombianos, que ia implementar, o mais seriamente possível, a maioria das medidas propostas. O ministro da Educação, por exemplo, decidiu logo fazer materiais pedagógicos para as crianças da Colômbia, de modo que passem a conhecer a história desta tragédia nacional.

O Presidente nomeou como ministro da Defesa [Iván Velásquez] um grande defensor dos Direitos Humanos, que trabalhou com a Comissão, durante a elaboração do relatório, e está a fazer reformas profundas no Exército. Nomeou também como diretora da Unidade de Reparação das Vítimas do conflito uma das comissárias responsáveis pelo relatório.

Nós [Comissão] pedimos que se construa uma 'grande paz', uma paz com todos os grupos armados, mas também uma paz no país, de reconciliação com os colombianos, uma paz política e uma paz social.

Publicamente, o Presidente pôs enfase numa paz total, ao entrar em conversações com todos os grupos armados e, inclusive, convidar para a mesa de discussão os narcotraficantes - não para negociações, mas para se submeterem à justiça. Ele está a trabalhar muito e a avançar no sentido de conseguir chegar à paz com a guerrilha mais importante depois das FARC, o Exército de Libertação Nacional.

Durante a elaboração do relatório, em algum momento teve receio de que este, no futuro, viesse a ser utilizado para fins políticos?

Sim. Uma das coisas que nós [membros da Comissão] temos de fazer é mostrar que não temos nenhum interesse político. Nenhum dos membros da comissão pertence a um partido político. O nosso interesse é a verdade humana, a verdade sobre esta tragédia. Não estamos interessados em dar projeção a algum partido, nenhum interesse particular.

Eu era a única pessoa ligada à Igreja Católica, mas não estava na comissão para defender a Igreja Católica. Estava para defender a verdade. Uma verdade difícil para a Igreja Católica. Nenhum de nós estava ali para defender partidos, militares, guerrilhas, mas procurar a verdade.

Não acreditamos que seja a verdade de todos os colombianos. Muito menos pensamos que chegámos à verdade total. Estamos numa busca. Fizemos uma contribuição e convidamos todos os interessados em aprofundá-la.

Para elaborar o relatório foram feitas mais de 14 mil entrevistas - com familiares das vítimas, mas também com muitos membros das guerrilhas. Li numa entrevista que perdeu uma amiga, Alma Rosa, neste conflito e que, anos mais tarde, chegou a entrevistar o mandatário do seu assassinato.

A história da Alma Rosa começa antes da Comissão da Verdade. Eu estava no meio do conflito em [localidade de] Magdalena Medio e tínhamos um programa de desenvolvimento e paz. A Alma Rosa veio trabalhar connosco [nessa localidade], era uma advogada. Primeiro, ela foi sequestrada por membros do Exército de Libertação Nacional, mas conseguimos com que fosse libertada. Mas depois foi sequestrada por paramilitares.

Nós procurámo-la. Quando a encontramos, tinham-lhe cortados os braços, as pernas e a cabeça. Foi extremamente doloroso. Eu partilho a história da Alma Rosa como exemplo das coisas que se passaram na Colômbia: um assassinato por paramilitares. A Rosa era advogada e estava a enfrentar os paramilitares que haviam tomado conta de uma pequena localidade, corrompido o presidente e dominavam o hospital local.

Anos mais tarde, entrevistou o comandante que deu a ordem para o que aconteceu. Como é que se sentiu?

Um encontro humano o mais profundo possível. Muitas vezes quando tenho que de falar com os perpetradores [dos crimes], tento sempre perceber quem é aquela pessoa. E, claro, é muito duro. Tens consciência: foi este o homem que matou a minha amiga.

Eu perdi 24 pessoas em Magdalena Medio, 24 pessoas do meu grupo de trabalho foram assassinadas por paramilitares e por guerrilheiros. Sempre quis conhecer os responsáveis pelos crimes.

Recordo-me, perfeitamente, da minha conversa com esse chefe militar. Ele disse-me: ‘Ela fez uma denuncia, para começar um processo judicial contra os paramilitares. Quando ela fez isso, tornou-se num objetivo militar para nós e por isso dei ordem para a matarem. Mas o homem que a matou, não a tinha de lhe cortar a cabeça. Ele cortou a cabeça e eu castiguei-o.'

Possivelmente, matou-o.

Mais de meio de milhão de pessoas morreram neste conflito. O objetivo da comissão foi sempre conseguir uma verdade possível. Mas como é que se transforma essa verdade em paz?

Se tu não reconheces a tua própria história é impossível que chegues à paz. Isto não se aplica só a título coletivo, mas a nível pessoal. Se queres chegar à paz, tens de aceitar a tua própria história, o que és, as coisas boas e más. O conhecimento da verdade deve fazer-se sempre com o propósito de conseguir a paz.

Podes fazer uma Comissão com o propósito de gerar ódios, vinganças, para gerar polarização. Uma Comissão da Verdade é uma comissão para que nos possamos compreender. O que é que aconteceu nesta nação? Como foi possível chegarmos a este ponto?

É padre jesuíta. A sua experiência religiosa ajudou-o de alguma forma neste processo?

Sim, claro que sim. Ajudou-me a compreender muito melhor a missão que tenho como jesuíta na reconciliação da Colômbia e no que quero continuar ar fazer.

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