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Reino Unido e a política do caos

20 out, 2022 - 16:19 • António Fernandes, correspondente em Londres

Liz Truss não sobrevive como primeira-ministra.

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Liz Truss demite-se do cargo de primeira-ministra do Reino Unido
Liz Truss demite-se do cargo de primeira-ministra do Reino Unido

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“Sou uma lutadora, não uma desistente”, disse Liz Truss na quarta-feira, no debate parlamentar. 25 horas depois apresentou a demissão ao Rei Carlos III, apenas 45 dias depois de ter tomado posse. É o mandato mais curto da história do Reino Unido.

Nesse tempo, Truss teve pouco tempo de paz. Foi o tempo que durou o luto pela Rainha Isabel II, que faleceu dois dias depois de a tornar primeira-ministra.

Depois disso, desde 23 de setembro quando foi apresentado o seu mini-orçamento, Truss tem estado no meio do furacão. Era para ser um plano económico que geraria crescimento, assente na redução de impostos. Em vez disso, os mercados financeiros reagiram mal e o Banco de Inglaterra teve de intervir para evitar o abismo.

Esse plano económico já praticamente não existe, depois da maioria das medidas ter sido revertida pelo novo ministro da Finanças, Jeremy Hunt.

O dano causado, financeiramente e na reputação dos conservadores, foi demasiado para Liz Truss ganhar direito a uma segunda vida como primeira-ministra.

Quando Hunt reverteu as medidas, os mercados deram-lhe as boas vindas. Muitos deputados conservadores, também. Hunt não tinha apoiado Truss e, por isso, era uma forma da primeira-ministra abrir os braços a outra secção do partido.

Nesse dia da grande marcha-atrás, muitos deputados defendiam nos bastidores que se devia dar tempo a Hunt para trabalhar. Truss, acreditava-se, estava a prazo. Seria apenas uma questão de tempo, de encontrar forma de forçar a sua saída ou de encontrar um novo líder.

A situação parecia insustentável, mas segurava Truss o receio de que a imagem do partido saísse ainda mais ferida por uma nova mudança na liderança, e também que os mercados reagissem mal, numa altura em que se preparam medidas de corte na despesa e que serão apresentadas por Hunt a 31 de outubro.

Um dia de loucos ontem escalou a situação. Truss não se conseguiu impôr no Parlamento e quando chegou a hora de votar a moção contra o Governo que apresentou o Partido Trabalhista, gerou-se o caos no lobby da Câmara dos Comuns. Gritos, ameaças, deputados a serem fisicamente forçados a irem votar. Esse cenário foi a gota de água. “Nunca vi nada assim”, essa frase estava na boca de um e mais um, e mais outro, especialistas políticos.

Quando Truss reuniu com Graham Brady, líder do Comité 1922 que regula o partido, a conclusão foi inevitável. Para sair desta confusão, não há marcha-atrás que funcione.

Como sair do furacão?

Desde 2016, ano em que se votou o referendo que levou ao Brexit, Westminster, a casa da democracia britânica, tem estado em sobressalto permanente.

Primeiro foi o debate sobre a saída da União Europeia, que dividiu a nação. Depois os dias longos no Parlamento com cada acordo para o Brexit apresentado por Theresa May a ser chumbado.

Derrota após derrota, surgiu a insurreição dos conservadores. May apresentou a demissão em 2019. Seguiu-se Boris Johnson. Prometeu concretizar o Brexit “sem ses ou mas”. O Reino Unido saiu da União Europeia a 31 de Janeiro de 2020, mas os problemas não desapareceram.

Com a pandemia e a corrida à vacinação, o Governo de Boris Johnson ganhou alguma credibilidade. Mas desde dezembro de 2021 o país tem estado ingovernável. Depois do escândalo do “Partygate”, as festas em Downing Street durante o confinamento que envolveram o próprio Johnson e muitos outros ministros, a política do caos instalou-se completamente.

Johnson foi somando polémica atrás de polémica e acabou por apresentar a demissão a 7 de julho, contra a sua vontade, mas forçado a isso depois de quase todo o seu Governo se ter demitido. Nesses dias, em que cartas de demissão de ministros não paravam de chegar, o momento era apelidado de “sem precedentes".

Três meses e meio depois, essa expressão volta à ponta da língua. No tempo entre a demissão de Johnson e a eleição de Truss, pouco ou nada aconteceu e os urgentes problemas da inflação e da crise energética ficaram na prateleira.

Depois de Truss tomar posse, o plano que representou as suas três prioridades - “Crescimento, crescimento, crescimento” - levou ao seu isolamento, fraturou ainda mais o partido Conservador e agudizou os problemas que já existiam. Desde que o plano foi apresentado, a confusão instalou-se de tal forma, nas finanças e no Parlamento, que o reverter do seu plano se tornou obrigatório.

Quando foi concretizado, a sua saída passou a ser uma questão de tempo. Uns ficaram furiosos por Truss não ir para a frente com a redução de impostos, outros queriam a sua saída por ser uma primeira-ministra que ficou sem plano (mesmo que não concordassem com ele).

Quem resiste mais tempo: a primeira-ministra Liz Truss ou uma alface?
Quem resiste mais tempo: a primeira-ministra Liz Truss ou uma alface?

Daqui a uma semana, o Reino Unido terá um novo primeiro-ministro, segundo o Comité 1922. Com a sua imagem feita em cacos, o Partido Conservador sabe que o próximo passo é vital para o seu sucesso nas próximas eleições (até janeiro de 2025) e que tem de ser dado rápido, conscientes da incredulidade gerada pelo curto mandato de Truss.

É que o partido da estabilidade já vai para o terceiro líder do ano, o quinto em seis anos. Para sair do fundo do poço, precisam primeiro de eleger um novo líder e só essa tarefa já é difícil de cumprir.

A única forma de evitar que a eleição chegue aos membros do partido - e que se arraste - é conseguir um só candidato que gere consenso entre os deputados.

Nas eleições deste verão, Rishi Sunak foi o favorito dos deputados, mas Truss ganhou o apoio dos membros. Até isso mostra como as duas partes estão desligadas. As divisões têm sido de tal ordem que só o instinto de sobrevivência pode levar à união do partido. Neste momento os Trabalhistas, na oposição, levam 36 pontos de vantagem nas sondagens. É preciso equilibrar o barco até às eleições.

Quem for eleito terá exatamente os mesmos problemas que Truss para resolver. Inflação, crise energética, aumento de impostos, a guerra na Ucrânia. Em cima disso, ouvirá os pedidos de eleições antecipadas. Nicola Sturgeon, primeira-ministra escocesa, diz que a situação é “para lá de uma paródia” e diz que legislativas são “um imperativo democrático”. Mark Drakeford, primeiro-ministro galês, diz que só as eleições podem “acabar com a paralisia”.

Os conservadores dirão que é seu direito constitucional, tendo ganho as legislativas, escolher um novo líder. Os eleitores, a seu tempo, dirão qual a penalização pela contínua novela que tem impactos diretos, e por vezes dramáticos, na sua vida.

Os já 12 anos de governação ininterrupta dos conservadores nunca estiveram tão ameaçados. Os buracos nessa estrada têm sido tão grandes que quase nos esquecemos que governam com uma maioria - talvez porque se tenha governado tão pouco nos últimos anos.

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