Entrevista ao biógrafo Fernando Morais

"Lula fez uma revolução sem dar tiros, tirou 40 milhões da miséria"

29 set, 2022 - 06:33 • Sandra Afonso

Lula da Silva, o "homem do povo", um quase “analfabeto” que chega à Presidência e passa a "vítima" da oposição, do poder judicial, da comunicação social, nas palavras do seu biógrafo. Lula, o Presidente que cumpriu pena de prisão e se recandidatou a um terceiro mandato. A história contada pelo jornalista Fernando Morais, que acompanhou o antigo governante durante uma década. Em entrevista à Renascença, diz que apostou cortar a barba se Lula perder para Bolsonaro.

A+ / A-

VEJA TAMBÉM:


Fernando Morais acompanha Luiz Inácio da Silva desde os anos 70 do século passado, mas foram dez anos a seguir de perto os passos de Lula que prometem ao leitor revelações inéditas sobre uma personagem marcante da história moderna do Brasil. Um novo capítulo pode ser escrito já nas eleições presidenciais do próximo domingo.

Autor de várias biografias, ao escrever “Lula” (Ed. Objectiva) Fernando Morais quebrou a promessa que fez a si próprio de não repetir o género literário, mas não se arrepende, pelo contrário, admite que “é um privilégio”.

Como biógrafo, testemunhou por dentro momentos chave da vida de Lula da Silva, como o cerco de dois dias que antecipou a primeira detenção. São episódios que ganham nova vida neste primeiro volume, que passa ainda pelos movimentos sindicais e as greves históricas do ABC, ou pela fundação do Partido dos Trabalhadores (PT).

Para o segundo volume, que promete publicar no início do próximo ano, estão guardados momentos “mais efervescentes e mais políticos”, como os processos “Lava Jato” e “Mensalão”, abordados com “minúcia”.

Em entrevista à Renascença, descreve um candidato confiante nesta reta final da campanha eleitoral. Fernando Morais acredita na vitória de Lula já na primeira volta contra Jair Bolsonaro, e apostou nisso até a barba de uma vida.

Como é a sua relação com Lula da Silva? Acabou por influenciar este trabalho?

Conheci o Lula há 40 anos, quando ele era um operário anónimo, a iniciar a carreira sindical. Eu era um jovem deputado, com 30 anos, e acompanhei nessa qualidade as greves lideradas por ele, sobretudo a repressão policial às greves. Estávamos no auge da ditadura militar. Aproximámo-nos, testemunhei ao lado dele a invasão do sindicato e depois a primeira prisão dele, em 1980.

Depois o país começa a se redemocratizar, muito vagarosamente, e ele começa a criar o PT [Partido dos Trabalhadores]. Eu divergia dele, achava que um novo partido, ainda que de esquerda, podia atrasar este processo de redemocratização. A história provou que ele tinha razão e eu não.

Não chegámos a nos distanciar um do outro, mas a política acabou por nos levar para partidos diferentes. Continuámos amigos, mas com distância e reserva, sobretudo depois de ter sido eleito Presidente da República.

Quando decidiu escrever a história de Lula de Silva?

Eu sempre quis fazer a história dele, desde o começo, mesmo antes de ter sido preso pela primeira vez. Ele dizia que não.

E recusou mais do que uma vez?

Repetiu o “não” quatro anos depois, quando foi reeleito. Passados alguns meses, depois de passar o governo para Dilma Rousseff, procurou-me, disse que tinha refletido e aceitou.

Era este o livro que tinha imaginado escrever?

Era diferente. Começava com a prisão nos anos 80 e terminava com a passagem da faixa presidencial para a Dilma. Mas ninguém podia prever que o Brasil ia enfrentar um golpe parlamentar, um golpe muito bem desenhado contra a Dilma. E, na verdade, a vítima, o alvo, era o Lula, porque eles temiam que ele voltasse para a presidência da República e avançasse com o que tinha começado nos dois primeiros governos.

Acabou por assistir em primeira mão a tudo o que sucedeu?

Eu tive o privilégio de testemunhar ao lado dele [Lula da Silva] esta guerra, porque eu estava a acompanhá-lo para todo o lado, inclusive fui duas vezes com ele a Portugal. Isso permitiu acompanhar o golpe contra a Dilma e as loucuras produzidas pelo juiz Moro, a partir de Curitiba, até à prisão dele, que acompanhei.

Acabou por visitar Lula várias vezes quando esteve detido?

Fui à prisão várias vezes e combinei com ele na prisão, e com o editor, que ia fazer o livro em dois volumes. O primeiro ia ser as duas prisões, é uma forma de comparar o Brasil da ditadura militar com o Brasil da “democracia". Retomo agora, já estou a trabalhar no livro, com o desempenho dele como Presidente.

Para vocês, um país desenvolvido, talvez não seja uma surpresa, mas o Lula conseguiu tirar praticamente da miséria, da fome, 40 milhões de pessoas, sem dar um tiro, sem colocar uma pessoa na prisão. É uma revolução que nunca tinha visto, estamos habituados à revolução russa, à revolução cubana. Salvador Allende, no Chile, tentou fazer algo democrático, ser eleito pelo voto, e deu no que deu. Vocês em Portugal são outra exceção, eu estava aí em 1974 e tive a oportunidade de acompanhar [o 25 de Abril].

A biografia é uma viagem, feita com avanços e recuos.

Estou a retomar o livro nesse período, em que viajei com ele, mas levantando coisas do passado. Acompanhei a crise e acabei sendo ouvido pelo Moro. Fui interrogado duas vezes pelo Moro, um provocador.

Pretendo terminar o segundo livro, o período temporal, com a eleição presidencial, de 2 de outubro.


Falou do juiz Sérgio Moro, uma das críticas que é feita a esta primeira parte da biografia é o pouco destaque que dá aos processos judiciais, ao “Lava Jato” e ao “Mensalão”. Podemos esperar mais detalhes no segundo volume?

Sim! Todos esses temas profundamente polémicos, que são as acusações do “Mensalão” e depois o processo conduzido pelo juiz Moro e anulado pela Suprema Corte, tudo isso com detalhes, com minúcias.

Eu ouvi todos os lados. Ouvi gente das grandes empreiteiras, ouvi gente da Polícia Federal, ouvi um número muito grande de pessoas, seja gente que estava na cúpula do Lula, seja adversários e inimigos dele. É um livro jornalístico, e para ser jornalístico tem que contar tudo, senão vira um processo de canonização.

Mas é uma biografia escrita por alguém muito próximo, o que terá alimentado as críticas sobre a falta de imparcialidade. Acha que são justas?

Não! É importante dizer que, apesar da relação com Lula, eu nunca fui filiado no PT e, apesar das nossas relações fraternas, o Lula não leu o livro antes de imprimir. No dia em que a editora distribuiu para o Brasil inteiro, eu pedi a um menino que levasse na escada do avião, ele estava a embarcar para a Alemanha e leu o livro no avião, já impresso. Vai acontecer o mesmo com o segundo.

Tudo aquilo a que eu tive acesso, tudo... Eu sou um repórter com 60 anos de experiência, aprendi que tudo o que conseguir confirmar, que é verdadeiro, tem que publicar. Não há nada, não há um só parágrafo, uma frase, uma sílaba, uma vírgula que eu tenha apurado que tenha decidido deixar de fora, porque podia ficar ruim para a imagem do Lula.


Mas o Lula é a vítima nesta história?

Eu apanho dois períodos em que ele é vítima, o período das greves e agora a prisão por 580 dias, que se comprovou ilegal. Nesses dois blocos está o retrato de uma vítima de dois regimes diferentes. A foto do Lula enfrentando a ditadura militar e depois a foto do Lula enfrentando outro tipo de golpe, que se deu inclusive na América Latina inteira, derrubaram o presidente nas Honduras, no Uruguai.

São golpes muito peculiares porque não prendem as pessoas nas ruas, não prendem "arbitrariamente". Para um estrangeiro fica difícil explicar que houve um golpe aqui, sem que o Presidente tivesse sido derrubado a poder de carabina, a poder de bacamarte.

Eu vou ter oportunidade de fazer um retrato fiel do que foram os dois governos de Lula, a detenção e as razões que moveram, tanto o juiz Moro como o Ministério Público, porque eles próprios reconheceram no fim que só queriam tirar Lula da disputa e colocar o Bolsonaro.

Descreve Lula da Silva como um fenómeno, um analfabeto que chega à Presidência, mas é com a prisão de Lula que inicia o livro e é ela que acaba por marcar toda a história?

Senti-me quase que obrigado, como profissional, a utilizar, neste volume, sobretudo os detalhes da detenção. O momento em que a polícia chegou para o levar arrastou-se para dois dias de discussão, sobre se deveria resistir, entregar-se ou pedir asilo a Portugal, à Argentina, a um país amigo. Eu estava lá dentro, a assistir a essa discussão, e achei que tinha obrigação de contar esses detalhes ao leitor, que só acompanhou por uma imprensa absolutamente controlada por cinco famílias.

No final do livro há um apêndice, com a barbaridade que os meios de comunicação fizeram contra ele. Nunca tinha visto nada assim, um cerco, um assédio, um acosso de toda a grande imprensa sem exceção, eu fui repórter a vida inteira. No canal da TV Globo, o maior do Brasil, o telejornal da Globo das 8 da noite chega a atingir 100 milhões de pessoas, e os outros 100 milhões são distribuídos por mais quatro famílias. É um negócio tão escandaloso que decidi que não podia simplesmente fazer isso pela minha boca ou pela boca do Lula, que vai ser sempre suspeito.

Contratámos uma instituição académica independente, do Rio de Janeiro, que não tem nada a ver com partidos políticos, mas que acompanha os meios de comunicação em geral. Pedimos uma radiografia de como o Lula foi tratado no período em que começa a “Lava Jato” até ao dia em que um “hacker” desenterra tudo isso, que é o momento em que desaba o castelo que vinha sendo montado. Para quê? Para impedir, de novo, a eleição de Lula.

Uma das curiosidades das biografias é este olhar privilegiado do autor e a proximidade ao sujeito e objeto da escrita, que permite surpreender o leitor. Acha que conseguiu isso?

Sim! Claro que pode parecer uma coisa cabotina, falar isso do meu próprio livro, mas há não só revelações novas a respeito dele, como há revelações do período da ditadura militar.

Por exemplo, descobri uma coisa que me deixou espantado. Que o serviço secreto da Marinha estava interceptando as cartas pessoais do cardeal Paulo Arns, copiava e mandava para o destino, sobretudo quando ele estava apoiando as greves. Consegui descobrir que, numa determinada madrugada, o Presidente da República, via general Golbery, chefe da Casa Civil, manda um misterioso senhor à prisão às 3h00 da manhã para ouvir o Lula e o Lula achou que era tortura, fica apavorado! Não. O sujeito queria saber quais eram os planos políticos do Lula.

São passagens para, sobretudo os brasileiros mais jovens, conhecerem o que é o que foi exatamente o Brasil da ditadura militar e o que era para um sujeito que não era um criminoso, era um trabalhador que queria uma vida melhor.

A campanha tem sido rodeada de incidentes, alguns violentos e até mortes, e muita polémica. Acompanha de perto o candidato Lula da Silva, como está a assistir a este processo eleitoral?

Muito preocupado, claro. Mas vou ficando mais otimista com as últimas sondagens, que já asseguram a vitória de Lula no primeiro turno [volta]. Tenho um feeling, a convicção, de que ele ganha no primeiro turno, apostei inclusive a minha barba, com o meu barbeiro!

Há quantos anos é que tem barba?

Desde que começou a nascer! Só tirei uma vez, para sair de Cuba, clandestinamente, e não fui fazer curso de guerrilha, fui fazer reportagem! Tirei a barba para mudar o passaporte. Mas essa barba, que já tem 60 anos, não vai ser cortada!

Fala com Lula, ele acredita numa vitória rápida?

A última vez que falei com o Lula ele estava muito animado, os comícios dele têm sido uma coisa que tinha desaparecido um pouco da política brasileira, os atos públicos. Era tudo internet, tudo digital, as “fake news”, Twitter, Facebook, isso e aquilo. Agora as pessoas estão na rua de novo! São centenas de milhares em Belo Horizonte, Belém do Pará, Manaus, Rio de Janeiro, São Paulo.

Eu não posso nem pensar na vitória de Bolsonaro [bate na madeira], se por acaso vier a ganhar vou para Portugal, vou procurar emprego aí!

Continua sem saber a opinião de Lula sobre a biografia?

Sim. Ele não deu opinião. Ele não abriu o bico. E tem quase um ano que o livro foi lançado.

Mas perguntou?

Eu perguntei. Assim como perguntei sempre que dizia coisas que pareciam muito fortes. Lembrava que estava ali para escrever um livro. Já viu o que acabou de falar, Presidente? Algumas passaram.

Por exemplo, no voo para Havana, para o funeral do Presidente Fidel Castro, muitos meses antes de ser detido, perguntei-lhe se aceitaria uma prisão domiciliária com pulseira eletrónica. Ele reagiu de forma tão violenta que temi que fosse ter um enfarte. Disse que podia escrever no livro, mas não dava para reproduzir o palavrão: " O Sr. Sérgio Moro vai colocar a pulseira na mãe dele, na minha canela não põe. Se puser, eu arranco. Só saio dessa prisão pela porta da frente". Não disse assim, foi mais feio.

Quando sai a última parte da biografia?

Eu continuo acompanhando, sobretudo para fazer "flashbacks”. Há várias peças do quebra-cabeça que não se encaixam. Pretendo continuar a acompanhá-lo até à eleição, talvez mais algumas semanas depois de eleito - você vê a segurança com que estou a falar, e não sou do PT!

Na verdade, hoje já quase teria condições de terminar o segundo volume, mas prefiro esperar um pouco mais.

Não posso terminar sem lhe perguntar, a propósito do resultado eleitoral. Já defendeu que não basta uma vitória a Lula, "precisa de uma maioria, porque o Congresso Nacional é uma bolsa de valores". Sem essa maioria confortável, será muito difícil para Lula governar?

Vai ser difícil, mas talvez seja menos difícil do que foi, por exemplo, com a Dilma, por formação. A Dilma é uma pessoa mais dura, mais seca. O Lula é quase como um brasileiro típico. Ele gosta de conversar com você, pegando na sua mão, de fazer agrado. Ele é afável com todo mundo.


Ele é do povo...

Não só do povo. O Ciro Gomes insulta agora todos os dias o Lula, em vez de insultar o genocída [Bolsonaro], porque o Lula responde: "Tem três pessoas no Brasil que podem dizer o que quiserem de mim que eu vou continuar amigo deles, um é o Ciro Gomes”.

O Lula não é um revolucionário, ele fez uma revolução sem dar tiros, sem expropriar. Antes o pobre era um problema, com ele passou a ser parte do orçamento. A bolsa família, é um cartão de crédito com um valor por criança, se tiver assistido a todas as aulas e tiver todas as vacinas obrigatórias, a mãe no fim do mês só tem de levantar o dinheiro com o cartão de crédito num banco público. Isso é uma revolução!

São estas medidas que alimentam a popularidade de Lula.

Há peculiaridades curiosas na trajetória do Lula. Por exemplo, a vigília que foi montada em frente à prisão dele. Durante 580 dias, havia lá permanentemente cerca de 100 a 200 pessoas, que não saíram de lá. Eu não vi isso com nenhum outro líder político do mundo.

Essa gente ficava na porta da cadeia três vezes por dia, às 7h00 da manhã, ao meio dia, e às 7h00 da noite, eles gritavam em coro, porque ele não via mas ouvia.

São coisas que comovem, como ser humano. Como a morte do neto, que não queriam deixar que ele participasse no funeral, ou a morte do irmão, que queriam que visse o corpo num quartel. Mesmo antes da prisão, a morte da primeira mulher, a dona Marisa, que entrevistei longamente e ainda vai aparecer, foi sem dúvida resultado da longa perseguição que lhe foi feita, a ela e aos filhos.

Antes desta biografia chegou a dizer que não escrevia mais nenhuma. Arrependeu-se?

Não. Era uma tentação. A primeira vez que fiz o pedido, o Lula tinha acabado de ser eleito, o assessor de imprensa respondeu-me que era o 158.º jornalista a pedir para escrever a biografia de Lula. É um privilégio!

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+