Entrevista a Bruno Reynaud de Sousa

​A NATO reforça o ‘Flanco Sul’ da Europa

30 jun, 2022 - 23:59 • José Bastos

“A principal parceria - e interessa muito a Portugal - é com a União Europeia, mas também importa recuperar parcerias existentes”, defende Bruno Reynaud de Sousa, investigador universitário na área da ‘guerra híbrida’.

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Bruno Reynaud de Sousa

A NATO comprometeu-se, na cimeira de Madrid, a proteger a área conhecida como flanco sul da Aliança (norte de África, Sahel e Médio Oriente). Esta quinta-feira, o secretário geral Jens Stoltenberg indicava que, para isso, ‘os países aliados vão partilhar informações de inteligência militar’, entre outras medidas não especificadas.

“A segurança do flanco sul tem um impacto na segurança de todos os aliados”, disse o antigo primeiro-ministro norueguês. “O nosso novo conceito estratégico identifica o terrorismo como a ameaça principal da nossa segurança no Flanco Sul. A nossa posição foi revista e vamos combater o terrorismo com determinação e solidariedade em todas as suas formas”.

No Sahel (região do leste da Tunísia) em geral e no Mali em particular luta-se contra grupos terroristas como o Estado Islâmico no grande Sahara, ligado à Al Qaeda. A junta militar que governa o Mali, depois de dois golpes de estado, é apoiada por mercenários russos. Na República Centro-Africana, onde a missão portuguesa é composta por 243 militares, também há notícias de ‘soldados da fortuna’ apoiados por Moscovo.

Os países aliados do Sul insistem, há muito, junto dos seus sócios sobre a necessidade de proteger o flanco sul. Nos meses que precederam a cimeira de Madrid multiplicaram-se os esforços para incluir a região no ‘conceito estratégico’, o ‘catecismo’ da organização para a próxima década. Não apenas contra o terrorismo, mas também contra as “ameaças híbridas”, entre as quais se incluem o uso como armas políticas da imigração ou do gás natural.

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, apoia a tese de que a NATO deve priorizar os desafios do Flanco Sul. Foi um erro do Ocidente, defende Johnson, não saber reconhecer que a maioria das crises migratórias têm origem em África.

Um dos possíveis pólos de desestabilização no continente é a ameaça da crise alimentar. De acordo com Jens Stoltenberg, os aliados vão coordenar-se para tentar a saída de mais cereais da Ucrânia. Neste momento, tal não é possível porque os portos estão bloqueados pela armada russa. Stoltenberg indicou que a Turquia e Grécia ofereceram barcos e a Lituânia e Roménia propuseram ampliar a capacidade de transporte de cereais por comboio.

Nesse sentido, a NATO defendeu em Madrid o envio de uma mensagem importante às lideranças africanas para contrariar “a desinformação de Putin e da China”, de que a crise alimentar é fruto das sanções ocidentais e não da agressão russa. “A única forma de acabar com a crise alimentar é Putin terminar a guerra”.

Neste pano de fundo, o especialista em Direito Internacional, professor da Universidade do Porto, e investigador Bruno Reynaud de Sousa analisa, a partir de Madrid, vários ângulos do novo ‘conceito estratégico’ da NATO, que define a Rússia como “ameaça direta” e cita a China porque implica “desafios sistémicos” para a Aliança.

Aí em Madrid está aprovada a mais profunda revisão do ‘conceito estratégico’ da NATO, substituindo o de Lisboa 2010. O guião que identifica os riscos e enquadra a ação da organização para a próxima década, define a Rússia como a ameaça mais direta para os aliados e, pela primeira vez, identifica a China pelo desafio que implica para a segurança, interesses e valores dos países membros. É uma viragem de quase 180 graus face ao documento que 12 anos, tudo 'cortesia' de Putin, quando nunca antes a NATO havia reunido os seus líderes com uma guerra ativa em solo europeu provocada pela Rússia…

A cimeira de Madrid fica para a história por diversas razões, mas a principal é mesmo a adoção do novo conceito estratégico que contrasta com o conceito aprovado em Lisboa, em 2010, que não fazia qualquer referência à China e, curiosamente, dava uma da Federação Russa como potencial parceiro.

Aqui em Madrid registou-se uma mudança radical do que é a visão dos aliados quando à sua segurança. Não esquecer que se trata de um documento aprovado por consenso, marcando um ponto de viragem na aliança que vai permitir a todos os países, e em parceria mais aprofundada com todos os parceiros - o principal dos quais a União Europeia - a aplicação prática das decisões, e são decisões de largo alcance - tomadas aqui em Madrid.

O documento define a Rússia como a ameaça mais direta aos aliados, mas aponta o dedo à China pelo desafio que representa para a "segurança, interesses e valores dos membros NATO". Esta decisão é o reconhecimento de que a ascensão da China não deve preocupar só os Estados Unidos e que a ambiguidade chinesa na guerra da Ucrânia, prova que no futuro já não vai ser possível separar tanto negócios e segurança como até aqui os europeus haviam feito?

Na última cimeira da NATO já era um objetivo de política externa da administração Biden de incluir na declaração final alguma linguagem mais dura face à China. Na altura esse objetivo não foi logrado e o que temos agora é parte da concretização dessa intenção no 'conceito estratégico' que se separa claramente do espaço das declarações formais das cimeiras, mas entrar noutro plano mais superveniente.

Lembre-se que o último 'conceito estratégico' vigorou 12 anos e, normalmente, os conceitos são revistos a cada década e este de Madrid vai conferir uma visão para o futuro. Quando pensamos na iminente adesão da Suécia e da Finlândia à NATO, são estados que já vão entrar neste enquadramento e entendimento.

Num evento paralelo em que participei assisti a declarações da primeira-ministra sueca mostrando reticências quanto á dureza da linguagem adotada face à China. Qual é então o desafio? A China é concorrente em certas matérias, mas em questões urgentes para a Humanidade como as alterações climáticas, a cooperação com Pequim é absolutamente essencial.

Mas com a NATO assente em democracias e em valores democráticos e no primado dos estados de direito temos de confrontar a China em alguns temas. A China é uma autocracia que suscita maiores dificuldades e complexidades. Mas não significa que se passe para uma lógica de confrontação de blocos, sendo apenas a consciencialização de que no dossier segurança a China adotou recentemente políticas expansionistas que contrariam a ordem internacional.

Sobre os riscos da vizinhança do Flanco Sul da Europa - a interessar a Portugal - o documento identifica desafios de segurança ligados a questões demográficas, económicas e políticas no norte de África, no Sahel, no Médio Oriente, alertando para o potencial agravado de conflitos. No novo 'conceito estratégico' referem-se as mudanças climáticas, mas também a fragilidade provocada pela segurança alimentar... e o risco do terrorismo...

Até aqui a visão e o pensamento estratégico tinha a tendência de colocar os desafios de segurança em silos e agora temos de libertar os silos. É isso o que o novo 'conceito estratégico' está a fazer. De Madrid, temos a NATO a sair mais unida e focada e que vai ter mais recursos para lidar não só com a Rússia, mas também com a China e com as ameaças transnacionais.

No caso do Flanco Sul como é que olha para as ameaças? A NATO adotou um conceito de segurança 360 graus e no conjunto de ameaças a principal continua a ser a do terrorismo que não despareceu, um ponto sublinhado no 'conceito estratégico'. E, claro, aqui no Flanco Sul temos a questão migratória, tenhamos presente o incidente recente em Melilla e este tipo de problemas tem a tendência de aumentar.

Mas qual é o valor acrescentado da NATO no norte de África? É aqui que entram as parcerias, uma aposta decisiva para o flanco sul. A principal parceria - e interessa muito a Portugal - é com a União Europeia, mas também recuperar parcerias como a parceria para o Mediterrâneo.

Vamos ter um reforço das parcerias existentes e um revigorar de parcerias já estabelecidas, mas que o novo contexto determina recuperar e aí Portugal pode ter um papel muito interessante a desempenhar, dado o valor acrescentado que tem em iniciativas como o diálogo 5+5 na defesa, os cinco países europeus do Mediterrâneo e cinco do norte de África. A estabilidade dos nossos vizinhos é a estabilidade do espaço euroatlântico.

No caso da guerra híbrida - um dos alvos da sua investigação académica - o conceito fica definido no documento que sai de Madrid como uma outra forma de ataque armado. É a primeira vez que se eleva de tal forma o conceito de "guerra híbrida" que permite aos aliados pedirem ajuda dos demais se tiverem sido alvo de um ataque invisível nas suas redes informáticas, nas campanhas eleitorais e nas suas atividades económicas. O documento constata que os chamados 'atores secundários', alusão tácita á Rússia e China, entre outras potências, procuram explorar a abertura, interconexões e digitalização das nossas nações. Este é um avanço de grande significado?

Sim. As ameaças híbridas são algo a que a NATO, e a União Europeia, estão a dedicar grande atenção há já alguns anos e que foram colocadas em evidência nos acontecimentos de 2014 na Ucrânia. E desde então a Rússia e a China têm vindo a adotar a desinformação como a principal ferramenta no canivete suíço das armas híbridas.

A NATO assenta nas democracias, o valor do estado de direito democrático é um dos pilares da aliança e portanto vamos ter fundos destinados a incrementar a resiliência societária e a proteção da democracia, mas como ponto decisivo a sair desta cimeira é a consciencialização de que só se consegue combater eficazmente as 'ameaças híbridas' com uma atuação triangular: envolver o setor público, estados, forças e serviços de segurança, noutro vértice a sociedade civil e no terceiro vértice o setor privado.

Aqui, em Madrid, ficou claro que no setor privado, refiro-me a empresas de software, e não apenas das redes sociais, mas também gigantes do mundo digital - tive a oportunidade de num evento paralelo seguir um diretor da Microsoft reconhecer isso mesmo - reconhecer a vontade do setor em contribuir para a resiliência societária e o fortalecimento das democracias.

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