Entrevista

Rui Caria, um repórter português na Ucrânia. "O medo é a única coisa que nos salva"

01 jun, 2022 - 16:18 • Teresa Almeida

Várias vezes premiado, Rui Caria foi o único fotógrafo português autor de várias imagens que acabaram no site oficial da Presidência ucraniana. ​“O cheiro, o cheiro é o que é impossível passar nas imagens e nos sons e é o que mais sentimos nesta guerra!”, afirma em entrevista à Renascença.

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De regresso a Portugal, após 40 dias no terreno, o repórter fotográfico Rui Caria conta à Renascença o que viu, ouviu e cheirou. Numa guerra onde temeu normalizar o horror.

O que é que deixou para trás?

Deixei para trás… essa questão é interessante, porque temos a sensação de deixar alguma coisa por fazer, de abandonar as pessoas. E foi isso que me fez voltar a segunda vez à Ucrânia, já tínhamos estado lá em março e abril e voltámos outra vez em maio. Eu e o Daniel Rodrigues, porque havia essa sensação de abandono e deixarmos algo por fazer, de deixarmos o lume aceso, como eu costumo dizer.

E voltar agora outra vez não melhorou muito essa sensação, ou seja, há uma necessidade que não consigo explicar de voltar. Não sei explicar muito bem porque deve ser inerente ao tipo de coisa que fomos ver, de trabalho que fizemos. Há uma necessidade inerente de querer voltar e não sei, não há uma explicação, porque toda a gente que lá esteve e com quem eu falei tinha essa sensação também.

Isso significa que haverá essa possibilidade de voltar ou que, a partir daqui, consegue manter esses laços de que tanto precisa?

Há essa necessidade de voltar! Eu acho que sim. Acho que vou voltar. Eu esperava não ser preciso voltar. Esperava não ter de voltar, mas sim, eu já faço planos para talvez depois do verão. Vamos ver. Oxalá não seja preciso. Oxalá possa ir fazer a vitória. Gostava muito de ir fazer a vitória, naturalmente, da Ucrânia, porque nós tomamos partido automaticamente de um lado, porque estamos só num lado.

No jornalismo que leva à isenção, os conceitos de isenção e do jornalismo tradicional convencional ficam postos de lado. A luta entre ética e utilitarismo vão existir sempre, mas aqui é que a ética é posta um pouco de parte, digamos assim. Mas ela é sempre condicionada a aquilo que está à nossa volta, ao contexto. E esse contexto de desgraça humana, de enfim, de desgraça e de miséria absoluta de um povo está a ser fustigado, que foi invadido e que ninguém gosta, que se entre em nossa casa e nos leve as nossas coisas. Não nos matem em casa. Por isso não tem mal nenhum dizer isto e dizer que se estamos na Ucrânia e não podemos querer ir ao lado dos russos mostrar nada. O jornalismo morreu e não é o princípio do contraditório do jornalismo convencional. Morreu aí quando não podemos mostrar os dois lados.

Nessa fronteira entre a Ucrânia e a Rússia não há nada a fazer, a mostrar, a reportar?

Há guerras, há pequenas guerras. Dentro da guerra, pequenas batalhas e uma delas a é a da informação e da desinformação. É terrível porque temos de lidar com um conjunto de informações que nos chegam. Temos de filtrar, temos de canalizar coisas para um lado e para o outro. Temos de ver várias fontes para ver qual é que, enfim, é mais consistente.

Não é verdadeira porque a verdade não existe há muito tempo. Mas existe a aproximação à representação da verdade dos factos e se existe a medida daquilo que cada um consegue, consegue interpretar e transmitir ao público. E é esse o nosso papel, enquanto também jornalistas, seja de guerra, seja de outra coisa qualquer.

Há sempre esta passagem por nós e é a passagem de nós para o público e à luz dos nossos conhecimentos e daquilo que é, das nossas também ideologias que nunca conseguimos pôr de lado, porque somos sujeitos, nunca conseguimos pôr de parte.

Muito do que o viu no terreno, os portugueses também o conseguiram ver através da televisão e também através das fotografias, mas do que não foi possível mostrar, o que é que mais o marcou na sua presença, neste tempo todo, em que esteve na Ucrânia?

Há uma situação que me marcou e que acho que nunca mais vou esquecer. Mas é perfeitamente ridícula, se calhar, comparado com pessoas mortas à beira da estrada é que é enfim, com tudo o que se possa imaginar de mau em termos humanos e de pessoas de gente. Mas foi um gato a arder ao passar por mim, um gato a fugir, a arder que afetou imenso. Não consigo explicar porque que isso me afetou. Por muito que custe, já pensei nisso também. Porque é que havia de afetar um gato quando vi gente morta? Mas o gato é um animal irracional, não faz mísseis.

E eu pensei nisso depois e acalmou-me um pouco, porque os animais não constroem mísseis, não destroem nada. Somos nós, na nossa racionalidade, que vamos dar cabo disto tudo. As alterações climáticas não vão fazer nada antes de nós. Nós vamos destruir eventualmente tudo o que temos.

Ser repórter, num espaço como este, num terreno como este, não é igual nem é de todo parecido com o que habitualmente se faz no dia a dia. Com essas condicionantes todas, não só físicas, mas sobretudo psicológicas, como é que se vive o dia a dia de um repórter na guerra, nesta guerra?

Só posso falar por mim e por alguns contactos que mantinha com alguns colegas. A parte psicológica, pois, nós vamos normalizando a bestialidade e o bizarro, vamos normalizando de alguma maneira. Também para nos podermos defender e isso é perigoso.

Por isso eu acho que ficar muito tempo a olhar para aquilo tudo, ficar muito tempo na guerra, nós ficamos 20 dias de cada vez, são 40 no total, mas ficar muito tempo seguido não é bom. Temos de descansar e afastarmo-nos daquilo. Virmos às nossas raízes, parar um bocadinho e se calhar voltar outra vez.

O quê que conseguiu normalizar no terreno?

Ver, por exemplo, pessoas mortas à nossa volta na estrada e fotografar e mostrarmos aquilo porque também temos de mostrar a morte, não é? As pessoas estavam irreconhecíveis, a maior parte delas, mas a dada altura havia pessoas que já não fotografávamos ou que já não filmávamos. Já não era preciso, já tínhamos! E esse já tínhamos, para um repórter é assumir isto a dada altura é normal, está a acontecer. Enfim, é essa normalização que acho que é perigosa e senti isso.

Talvez possamos ficar mais insensíveis à medida que o tempo passa. E estamos a ver aquilo, por exemplo, as sirenes é também uma marca do que estou a dizer que, ao princípio, ouvir uma sirene, é uma coisa dramática. Nós queremos é fugir para algum lado, mas depois olhamos à volta e ninguém foge. Toda a gente consegue manter o que está a fazer e nem liga á sirene. E nós achamos aquilo estranho. Como é que essas pessoas não se mexem? Não fogem. Mas passado um dia ou dois, também já nós não fugimos. Ou seja, habituamo-nos às coisas que nos estão a ser dadas de tal maneira que começamos a ouvir coisas e as sirenes deixaram de ser importantes e deixaram de ser notícia para nós.

Esteve em vários palcos, passou por várias cidades. Alguma delas o marcou mais pelo que viu e pelo que conseguiu fotografar?

É difícil quantificar essas coisas, mas há uma cidade que nos espantou, que foi Severodonetsk, onde já não há muito para se mostrar, porque já nem se consegue lá ir, eventualmente.

Nós estivemos lá no dia 17 e no dia 18 [de maio] já não se conseguia entrar. Mas nós conseguimos passar o "checkpoint" e o militar, que estava no último ponto antes da cidade, disse-nos: “jornalistas portugueses parecem kamikazes” e nós achamos graça aquilo.

Sorrimos todos e fomos em frente. E ele pediu-nos só para não irmos muito para a zona sul, porque era a mais atacada. Naturalmente, foi por aí que fomos. Estar num sítio em que as coisas estão a acontecer é diferente de ir a um sítio onde as coisas já aconteceram.

E aí, o que é que viram?

Aí vimos e sentimos e ouvimos e cheiramos. São os misseis a passar que depois nós aprendemos a perceber, se estão muito perto, se estão muito longe, é a artilharia a disparar, a que sai da Ucrânia e a que chega da Rússia. E nós conseguimos também depois diferenciar esses sons, que é o som de saída e de chegada – o in e out, como nós dizemos.

Começámos todos a ganhar uma mecânica daquele ambiente, aquele ambiente hostil que passa a ser o ambiente que nos é dado, não há outro. Por isso vivemos em hostilidade, em guerra e aprendemos a lidar com aquilo. Aprendemos a comer o peixe que nos dão na rua, enquanto se foge para cave. Depois eles vêm virar o peixe outra vez e voltam para a cave, porque vem outro míssil.

E ver isto no terreno, ver essas, essas coisas acontecerem é diferente de ver o rescaldo dessas coisas. Até então tínhamos feito muito e os jornalistas fazem muito isso em guerra, vão de manhã ver os bombardeamentos que aconteceram durante a noite. Vão ver o rescaldo daquilo que aconteceu. Vão ver os bombeiros ainda a trabalhar ou fazer alguma limpeza.

E nós naquele dia, naqueles três, quatro dias que fomos para a zona do Donbass, Kramatorsk e ali nós vimos as coisas enquanto elas aconteciam. Isso não dá para explicar muito bem sem ser mostrando com imagens e com sons e com as atitudes das pessoas. E foi muito rico em termos pessoais, para mim, foi de uma riqueza fantástica poder ir à guerra, mas sentir aquilo que as pessoas sentem, é a única maneira que eu tenho de transmitir alguma coisa e sentir com eles.

Obviamente que eu sabia que me podia vir embora a seguir, apesar de ser perigoso e até termos considerado ficar lá nessa noite, porque estava a ser difícil sair de lá, não nos íamos enfiar num carro e fazer aquela cidade toda para vir embora com os bombardeamentos a acontecer. Mas depois apanhámos um “baixa mar” de bombardeamentos e conseguimos sair.

E ainda bem, porque senão não sabemos como é que seria, porque no outro dia já era muito mais complicado estar lá. Mas estar lá e viver com as pessoas aquilo foi um pedacinho de horror, daquele horror que elas têm diariamente, no caso de Severodonetsk, desde 2014, há oito anos.

Foi desse sítio algumas das fotografias que foram publicadas pelo site oficial do Presidente ucraniano…

Foram de vários sítios. Eu acho que ali a equipa de comunicação do Presidente ucraniano deve encontrar ali meia dúzia de fotógrafos, no Instagram e vai explorando as imagens, porque apareceram minhas oito imagens ou nove, não sei quantas, foram em vários dias e de vários sítios.

Eu acho que eles fazem uma mistura de imagens consoante a mensagem que querem passar, de construção, de destruição, de alegria, tristeza. Eles vão a vários fotógrafos e vão buscar imagens. Vão buscar retalhos que ilustrem aqueles textos que eles querem fazer naqueles dias.

Como é que soube no terreno que a sua fotografia ou as suas fotografias foram usadas no site oficial da presidência ucraniana?

Essa parte é fácil, porque toda a gente, pois mandavam mensagens a dizer que apareceste. Mas outra coisa que eu achei muito interessante foi as mensagens que recebi de pessoas que não conheço, preocupadas com a nossa, com a nossa saúde, com a nossa integridade. E isso é muito curioso para quem está no terreno e para quem está fora e porque está num ambiente hostil.

É bom receber mensagens de quem se conhece, naturalmente que sim, da família e dos amigos, mas de quem não se conhece, é ainda mais interessante, diria eu, com todo o respeito, enfim, pelos meus amigos e pela família. Mas quem não nos conhece? Mandar mensagens muito interessantes de força e de acharem que somos heróis, que não somos nada heróis, somos só pessoas a trabalhar.

Heróis vi lá muitos, mas não eram jornalistas. Mas de qualquer forma, isso aproxima-nos de cá, deixa-nos com um pezinho cá. É confortável de alguma maneira. E é muito, muito interessante e muito curioso.

De alguma maneira, o seu trabalho tornou se mais visível depois dessas publicações?

Pois, eu não sei definir isso. Não sei se tornou mais visível ou não. Ganhei nas redes sociais mais seguidores. Estas métricas valem, valem o que valem, enfim. Isso não quer dizer nada em termos práticos, mas eu acho que os holofotes viraram- se mais para mim. Naturalmente que sim, por isso eu estou aqui a falar para a Renascença.

Porque as pessoas querem entender ao máximo e o máximo possível conseguir sugar a informação, diria até emocional de quem lá esteve e de quem participou numa coisa daquelas que é a guerra, que é uma coisa que não acontece, felizmente, em todo o lado, em todos os dias. E eu reconheço que isso é importante. E essa curiosidade das pessoas faz com que os holofotes se virem mais para nós, naturalmente.

Até os nossos pares, os nossos colegas, telefonam e mandam mensagens. Os holofotes, viram se para nós, naturalmente. Agora, em termos práticos, de também quando se ganha um concurso de fotografias, já me aconteceu algumas vezes, os holofotes viram se durante um período e efémero, naturalmente. Ainda bem, mas, depois as coisas vão-se normalizando e cada um vai à sua vida. E está tudo normal.

Alguma vez sentiu medo no terreno?

Claro que sim e ainda bem, temos de sentir sempre senão morremos. O medo é a única coisa que nos salva ali. Se nós não tivermos medo morremos, vamos expor-nos de mais a dada altura ou fazer uma parvoíce qualquer e morremos.

E o medo, é talvez o instinto mais importante ali, o medo e o egoísmo, eventualmente, de fugirmos quando é preciso fugir. Estar atento. Eu gosto da expressão um olho em cada cabelo e assim vemos a 360 graus, por todo o lado. É muito importante e acho que as pessoas devem ter medo.

E as pessoas com quem conversou lá neste nesta última vez que lá foi, o que é que elas lhe diziam?

Essencialmente, as pessoas dizem que querem que isto pare, só, queremos que isto pare, não importa quando, queremos que isto não importa as negociações, não importa se já morreu muita gente. Só queremos que isto pare queremos voltar a construir as nossas coisas, voltar a ter as nossas coisas.

Os ucranianos têm sangue quente, não são como nós, diria. Nós somos mais lamechas. Mas se calhar tenho que dizer mais românticos. Agora os ucranianos são mais práticos e são de sangue quente, ajudam, dão o que não têm. Contactar com aquela gente e com aquelas pessoas que nos veem também como uma tábua de salvação a dada altura, porque, independentemente se sermos ou não alguma coisa dessas, nos veem como uma ajuda e querem ajudar-nos também.

Por isso, são pessoas muito gratas e muito práticas e olham para um prédio completamente destruído e nós estaríamos ali a chorar no chão. Eles não, eles estão a olhar para aquilo e a pensar como é que vão reconstruir.

E foi isso que também nos espantou, essa resiliência, essa capacidade de se levantar das cinzas como uma fénix. Eles são isso, são essa capacidade toda. E isso é uma lição também, não só para nós. Eu acho que para o mundo é uma lição aquilo que os ucranianos estão a fazer, da forma como estão a resistir.

O que é para si a Ucrânia, hoje?

A Ucrânia que eu conheço será a Ucrânia que eu gostava de ter conhecido antes da guerra e não conheci. Eu quero que seja a Ucrânia antes da guerra, apesar de não a ter conhecido. Eu gostava que a Ucrânia fosse aquilo que eu não conhecia antes da guerra, porque eu vi em Kiev e em Kharkiv, vi e imaginei que era uma cidade muito bonita.

São cidades muito bonitas, muito exuberantes, com obras de arquitetura fantásticas e que não mereciam ser destruídas por nada, nem por ninguém, nem por ninguém. E a Ucrânia de hoje é a guerra. É verdade. Nós pensamos em Ucrânia e pensamos em guerra e em destruição e em gente morta. E isso é triste.

Mas este foi o trabalho que mais o marcou, até agora? De todos os que já fez e eu acredito, tenham sido muitos.

Sim foi, de alguma maneira de forma diferente. Já estive também no Mediterrâneo Central, 34 dias num navio a recolher pessoas, recolher pessoas que estavam no mar à deriva e também marcou naturalmente toda aquela tristeza humana. Mas essas marcas, nós vamos tapando com uns pensos rápidos e outras marcas se sobrepõem a essas.

Somos feitos de camadas de coisas aqueles "layers" como no Photoshop, somos feitos de camadas e as camadas vão se sobrepondo e as de baixo vão ficando mais calcadas, mais escondidas e a dada altura, são só sedimentos daquilo que nós já fizemos e já nem nos lembramos muito delas.

Porém, destes trabalhos e desta guerra, eu acho que lembrar me sempre não é uma doença, daquelas que nos fazem esquecer coisas. Eu acho que lembrar me sempre de algumas coisas, do cheiro, sobretudo do cheiro, é uma coisa impressionante que é impossível de passar nas imagens e nos sons.

Que pena é! Mas os cheiros estão lá e estarão sempre presentes. Os sons das sirenes - ontem ouvi uma sirene a tocar dos bombeiros, aqui na ilha, onde moro e ativou a memória naturalmente. E é curioso. Não foi bom nem foi mal. Foi só uma ativação da memória… e eu espero que não surja mais nenhuma camada que se sobreponha a esta!

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