Direito à reparação

Jean-Pierre Schweitzer: "Desde que começamos a criar coisas, começamos também a reparar coisas"

23 mai, 2022 - 21:50 • Fábio Monteiro

É do interesse das empresas adaptarem os seus modelos de negócios, dado que os recursos não são infinitos, defende Jean-Pierre Schweitzer, coordenador do Gabinete Europeu do Ambiente, em entrevista à Renascença. No terceiro trimestre de 2022, será discutido em Bruxelas o pacote legislativo do “Direito à Reparação”.

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No terceiro trimestre de 2022, será discutido em Bruxelas o pacote legislativo do “Direito à Reparação” de bens eletrónicos. Para Jean-Pierre Schweitzer, coordenador do Gabinete Europeu do Ambiente, “existe uma certa necessidade de uma mudança de cultura nas empresas”. “Precisam de mudar o modelo de negócio, adotando uma forma de fornecer um produto que dure muito tempo, mas que potencialmente tenha serviços associados à sua volta”, diz em entrevista à Renascença.

A única forma de alcançar uma mudança será com uma série de regras.Precisamos de regras sobre a conceção dos produtos. Precisamos de regras para assegurar que é possível editar o software destes bens. Precisamos também de regras de concorrência para que as pequenas e grandes empresas tenham condições de competir. Precisamos de regras sobre propriedade intelectual para que as empresas não impeçam uma pessoa de reparar os seus dispositivos”, aponta.

Gostava de começar a nossa conversa com uma pergunta pessoal, se não se importa. Tem memória da última vez que reparou algo?

Estou constantemente a reparar a minha bicicleta. Já se falarmos de um aparelho eletrónico, tentei reparar há pouco tempo a minha máquina de café, uma máquina Delongui muito antiga. Na verdade, não consegui encontrar a peça que precisava. Falta-me o botão de ligar, mas a empresa não o vende. Para a continuar a utilizar, sempre que quero tirar um café, uso um alicate para a ligar. Não tem muito estilo, mas pelo menos posso tomar um café pela manhã.

De momento, há mais incentivos no mercado para comprar um novo eletrodoméstico do que o reparar. No caso de uma máquina de café, porventura é bem mais barato.

Sim. Hoje em dia, as empresas de café estão focadas na venda de cápsulas, não nas máquinas. Em muitos casos, as máquinas são quase um bónus. E as pessoas são realmente tentadas por este tipo de negócios. Mas não tenho a certeza se no final conseguem ou não um café melhor [risos].

No próximo trimestre, o pacote legislativo relativo ao "Direito à Reparação", preparado para Comissão Europeia, vai a debate. Das medidas em causa – a extensão das garantias, a obrigatoriedade de fornecimento de peças e manuais de reparação, o fim da obsolescência programada - consegue destacar a que terá maior impacto?

Penso que não devemos ter ilusões. Ainda estamos muito longe de ter um verdadeiro direito de reparação na Europa. Neste momento, as únicas regras que realmente temos são pequenas exigências impostas aos fabricantes de grandes eletrodomésticos, coisas como máquinas de lavar e frigoríficos.

Mas não diria que qualquer iniciativa individual é mais importante do que outra. Na verdade, penso que precisamos de todo o tipo de leis. O direito à reparação não é como a lei dos direitos humanos. Não bastará um único ato legislativo, precisamos de diferentes tipos de regras. Precisamos de regras sobre a conceção dos produtos. Precisamos de regras para assegurar que é possível editar o software destes bens. Precisamos também de regras de concorrência para que as pequenas e grandes empresas tenham condições de competir. Precisamos de regras sobre propriedade intelectual para que as empresas não impeçam uma pessoa de reparar os seus dispositivos.

Pensa que a guerra na Ucrânia e a pandemia mudaram, de alguma forma, o contexto do “Direito à Reparação”?

Perguntas como funcionam as cadeias de abastecimento, como podemos ser mais resilientes, mais autossuficientes, tornaram-se mais importantes. Estamos a pensar mais frequentemente sobre estes temas e eles têm mais relevância política. E, obviamente, o argumento ambiental para reparar é muito forte.

Mas no centro desta mudança, há também uma mudança cultural.

Bem, eu diria que não há realmente uma mudança cultural porque nós temos uma história de reparar coisas. Não é que seja algo radicalmente novo. Desde que começámos a criar coisas, começámos também a reparar coisas.

Mas estamos, pois, numa posição de dependência dos nossos dispositivos digitais. Se uma pessoa usar o seu smartphone todos os dias, terá de o substituir de ano a ano ou a cada dois anos. Não se consegue repará-lo facilmente. Ou então é caro. Isto obriga o consumidor a questionar o modelo de negócio e o mundo em que vivemos.

Muitas pessoas já se viram em situações, como eu com a máquina de café, onde simplesmente não faz sentido não tentar reparar. Porque substituir todo o dispositivo e não tentar repará-lo? Por um lado, pode-se dizer que é uma mudança de cultura, mas por outro lado, pode-se dizer que é senso comum.

Há dias, conversei com uma eurodeputada portuguesa que está a seguir o pacote do “Direito à Reparação”. Ela referiu que pode vir a ser necessário um pacote de incentivos para as empresas mudarem. Isto faz sentido ou devia ser uma obrigação?

Ora, penso que já existe um grande incentivo para as empresas tornarem a reparação dos seus produtos mais acessível. Em última análise, também têm de pagar pelos recursos despendidos na construção de novos dispositivos. Portanto, penso que é aqui que existe uma certa necessidade de uma mudança de cultura nas empresas. Precisam de mudar o modelo de negócio, afastando-se de um modelo que consiste em vender o máximo de bens possível e mudando para mais uma forma de fornecer um produto que dure muito tempo, mas que potencialmente tenha serviços associados à sua volta.

A verdade, em todo o caso, é que a coisa mais fácil para uma empresa fazer é produzir algo, vender esse produto e não se preocupar com o que lhe acontece quando se parte.

Talvez precisemos de algumas medidas para apoiar as empresas que estão a fazer coisas diferentes e que são mais favoráveis à reparação. Nos últimos meses, muitas grandes empresas de tecnologia - a Microsoft, Samsung, Apple - começarem a mudar as suas práticas.

No passado, estas empresas eram completamente contra a reparação dos seus aparelhos pelos consumidores, e agora estão a mudar o seu modelo de negócio. Portanto, penso que o potencial comercial existe porque, caso contrário, estas grandes empresas não o fariam.

Ainda bem que referiu a Apple. Vamos falar um pouco sobre telemóveis. De acordo com um estudo do EBB, divulgado no final do ano passado, as emissões de CO2 devido ao fabrico de novos telemóveis poderiam diminuir 30% até 2023, caso as baterias passassem a ser removíveis. A minha questão é: na última década, já houve alguns projetos de telemóveis modulares. E todos falharam. Existe realmente procura?

Nesse estudo, não tomámos perspetiva sobre o que as pessoas estavam à procura. Seguimos outro caminho, um ângulo ambiental, depois de nos termos apercebido que mais de 90% dos smartphones, portáteis, auscultadores, smartwatches, etc... incluem baterias coladas e/ou inacessíveis para reparação.

Perguntamos aos reparadores se isto era ou não problemático. E eles explicaram que sim. Que muitas vezes não havia baterias sobresselentes. E que a cola utilizada na fixação das baterias, em muitos casos, tornava muito difícil tentar removê-las sem danificar o telemóvel.

Aliás, esta situação frustra também as empresas de reciclagem. Não podem aceder às baterias quando chegam ao fim da sua vida útil, o que reduz a reciclagem de materiais como lítio e cobalto.

Caso o “Direito à Reparação” entre em vigor, talvez ainda venhamos a assistir ao nascimento de um nicho de empresas mais concentradas na reparação que em fabricar novos aparelhos.

No estudo que fizemos no ano passado, contactamos cerca de 200 empresas de reparação independentes. Quase todos disseram que a tendência, com as medidas legislativas, seria para haver mais produtos a reparar. Mas quanto às baterias, deixaram duas ressalvas. Primeira: dado que muitas estão coladas, o trabalho é sensível e moroso. Quando falamos de empresas unipessoais, pode não compensar o tempo despendido a reparar. Segunda: há um crescente uso [dos fabricantes] de software para impedir que os reparadores independentes substituam as baterias; para serem compatíveis, em muitos casos, as baterias têm de vir com o software da marca.

Antes de uma medida que volte a tornar as baterias removíveis, teremos primeiro o carregador universal.

Para mim, o carregador universal USB-C é um "no brainer". É uma ideia europeia há muito tempo, mas tem havido uma lacuna que que tem permitido à Apple e a alguns fabricantes evitar as regras e ir na sua própria direção. É uma medida necessária.

As provas estão na quantidade de resíduos que a existência de diferentes tipos de carregadores cria. Todos temos experiência de ter dez carregadores diferentes para os nossos dispositivos em casa. É preciso lembrar que o cobre é um recurso finito, que está a esgotar-se. Por isso, não é algo que devamos estar a produzir sem fim.

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