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Emilly Channell-Justice: “A Ucrânia tudo fez para merecer a União Europeia”

21 mai, 2022 - 16:39 • José Bastos

“Os ucranianos protegeram a Europa da maior ameaça em décadas e o seu pedido tem de ser levado a sério”, defende Emilly Channell-Justice, da Universidade de Harvard, em entrevista à Renascença.

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Emilly Channell-Justice: “A Ucrânia já fez tudo fez para merecer a União Europeia”
A entrevista a Emilly Channell-Justice

“Os aliados europeus da Ucrânia devem a Kiev levar muito a sério o pedido de adesão à União Europeia. A Ucrânia protegeu a Europa da ameaça mais significativa em muitas décadas. Não há mais nada que os ucranianos possa fazer provando merecer fazer parte da UE”, defende Emilly Channell-Justice que dirige o programa de Estudos Contemporâneos da Ucrânia na Universidade de Harvard.

A catedrática Emilly Channell-Justice é antropóloga social e leva já uma década a investigar a realidade política e social ucraniana. Sustenta que a Rússia não tem sido um interlocutor confiável nas negociações de paz e que a guerra vai deixar marcas profundas na identidade ucraniana com a rejeição ao Kremlin a marcar os próximos anos.

Em entrevista a partir de Boston, a professora Emilly Channell-Justice defende que o Ocidente tem o dever de reconstruir um país devastado e de Zelensky diz ter um lugar de destaque nos livros de história: “O David que enfrentou Golias”.

A enorme resistência dos soldados que lutaram no complexo Azovstal marcou uma diferença significativa no evoluir da guerra

Acabou a resistência no último bastião de Mariuopol. Azovstal durante mais de 80 dias serviu como uma espécie de isco para as forças russas impedindo uma maior dispersão das forças do Kremlin. Nesse sentido a queda da Azovstal é uma vitória táctica da Rússia depois de uma vitória estratégica da Ucrânia?

Bem, certamente é uma perda significativa para Kiev finalmente ter de desistir de Mariupol. Mas de forma alguma eu diria que é o fim da intenção dos ucranianos em manterem a soberania na cidade e na região. A Ucrânia certamente vai pretender recuperar Mariupol.

Mas, francamente, a resistência foi um marco estratégico importante para impedir o maior avanço do Kremlin na região do Donbas. Foi a resistência em Mariupol a contribuir para impedir o cerco de Kharkiv, evitando ainda o cerco do leste da Ucrânia e das tropas ucranianas que lá se encontravam.

Nesse sentido, a enorme resistência dos soldados que lutaram no complexo Azovstal marcou uma diferença significativa, até ao momento, no balanço do desenrolar desta guerra.

Espero agora ver uma troca de prisioneiros em que os soldados ucranianos que combateram na Azovstal sejam devolvidos à Ucrânia, porque agora, é claro, estão a ser mantidos em cativeiro quando as negociações de paz estão paralisadas.

Mas, justamente, se a questão da retirada dos soldados feridos parecia ser uma espécie de progresso na frente diplomática, as palavras do presidente da Duma de que os elementos do batalhão Azov não serão trocados como prisioneiros de guerra, mas sim levados a julgamento, relembra quão complexo vai ser este processo…

Seguramente será um processo negocial muito complexo. A experiência de tudo o que vimos até agora nas negociações diz-nos que realmente não se pode confiar no lado russo. Os russos fazem todo o tipo de promessas que depois não cumprem.

Nesse sentido acho importante que o lado ucraniano se mantenha com uma forte posição negocial e que os aliados europeus de Kiev apoiem a posição ucraniana, seja ela qual for. Uma posição de Kiev que será, acredito, a que defenderá uma troca de prisioneiros envolvendo os soldados que resistiram em Mariupol durante quase três meses.

Ainda assim, sabemos que o lado russo e as redes sociais russas têm pedido todo o tipo de condenações hediondas para os soldados ucranianos que resistiram na Azovstal.

Mas, sejamos claros, esta é uma agressão russa. Esta é uma agressão russa sem precedentes. Então, é evidente, que esses soldados ucranianos devem ser tratados com absoluta dignidade e respeito, da mesma forma que o lado ucraniano está a tratar os soldados russos prisioneiros de guerra.

Como descreveria o atual momento do conflito? É um daqueles impasses em que não há interesse na paz, mas sim em alavancar no terreno posições negociais para futuras negociações?

É difícil dizer. Tudo nesta guerra tem sido bastante imprevisível. Certamente há muitas possibilidades. A posição das forças ucranianas irá permanecer, essencialmente, defensiva. Tem sido essa a tendência.

As prioridades ucranianas têm permanecido inalteradas, as mesmas, não admitindo negociar a desistência de Kiev de qualquer território, o que, de resto, não têm de fazer para desistir de quaisquer territórios.

Mas, claro, a Rússia não tem sido um interlocutor confiável nas negociações de paz e nesse sentido é necessário Kiev agir com extrema cautela nesse domínio.

Ainda receio que a Rússia esteja num vasto processo de reorganização das suas forças para recuperar algum folego militar

Sabemos que as suas forças continuam a bombardear largas faixas da Ucrânia e também os territórios que os próprios russos maioritariamente controlam no Leste.

Nesse sentido várias opções estão ainda em aberto. Sei que a cidade de Odessa começa a estar próxima do limite, enfrentando um crescente número de ataques nos últimos tempos.

E nós sabemos que uma das possibilidades que Vladimir Putin pode querer levar à prática é a de tentar criar um corredor terrestre para as forças russas em todo o sul da Ucrânia.

Esta possibilidade está certamente ainda em cima na mesa no Kremlin, mas, é verdade que a falta de sucesso das ações militares russas noutras partes da geografia ucraniana pode impedir Putin de tentar algo de muito dramático por agora.

Na Ucrânia falar russo não faz dessa pessoa russa, uma apoiante do Kremlin, uma pró-russa. Não faz nada dessa pessoa. Esse foi um grave erro de perceção de Putin

Enquanto antropóloga social como vê os efeitos que a guerra está a ter no complexo mosaico social ucraniano com milhões de ucranianos de origem étnica russa e onde as duas línguas são faladas. Por exemplo, a proximidade sentida com a Rússia irá mudar nas gerações vindouras?

Penso que sim. A rejeição na sociedade ucraniana contra a Rússia, a reação de ódio, nunca foi tão grande como agora, até porque realmente não eram muitas as pessoas a achar e tratar a Rússia como um inimigo. Mas agora toda a Ucrânia mudou de opinião e vê a Rússia como sendo a sua maior ameaça existencial.

Os ucranianos não querem nenhum tipo de ligação com a Rússia, vêem-se a si mesmos como pessoas totalmente diferentes.

Isto dá a exata medida do erro de cálculo de Putin ao decidir a invasão e a guerra. Putin deve ter pensando que com tantos ucranianos a falar russo, os seus soldados seriam vitoriados e muito bem acolhidos. Mas seguramente não foi isso que aconteceu.

A razão para isso é, entre outras, a de que falar russo na Ucrânia não faz dessa pessoa uma russa, não torna essa pessoa numa apoiante do Kremlin, uma pró-russa, não faz nada dessa pessoa. Esse foi um grave erro de perceção por parte de Putin.

Tenho a certeza de que no futuro as pessoas na Ucrânia continuarão a falar russo, porque é também a sua língua. Mas muitas outras pessoas também passaram a falar ucraniano.

Esses cidadãos sentem-se agora mais ucranianos do que nunca, e sentem que a Ucrânia é muito diferente da Rússia em práticas e conceitos com que jamais haviam sido confrontados antes da invasão. Essas serão certamente tonalidades decisivas a colorir a identidade ucraniana nos anos vindouros.

Como vai ser o retrato económico e político da Ucrânia no dia a seguir ao fim da guerra?

Certamente será um quadro com grandes danos nas infraestruturas, danos nos recursos naturais, danos no parque habitacional, danos nas escolas do país. Todo esse universo de infraestruturas básicas terá de ver a reconstrução ser financiada.

O tecido económico economia foi muito destruído. O setor agrícola está a sofrer muito com esta guerra. Portanto, terá que haver um grande investimento da comunidade internacional na Ucrânia para reconstruir o país, logo que a vitória esteja garantida.

Já assistimos à garantia de empréstimos e ajuda por parte de muitos parceiros europeus da Ucrânia. Alguns desses países já enviaram mesmo dinheiro para esses esforços de reconstrução. Nesse sentido, faço votos de que o mundo continue a apoiar a Ucrânia depois do fim da guerra.

Do ponto de vista político acho que a Ucrânia vai viver uma situação interessante.

Antes do início da invasão russa, a Ucrânia apresentava um elevado grau de pluralismo político, incluindo uma presença bastante forte de partidos políticos pró-russos. Esses partidos políticos já foram banidos e, tenho certeza, pelo menos, seguramente não na próxima década, não poderão concorrer a nenhuma eleição, pelo menos no futuro imediato.

E será muito curioso ver se atores e instituições chave do sistema democrático e se, no geral, o ecossistema político ucraniano vai surgir mais unido do que antes e também, por exemplo, se haverá, ou não, menor diversidade, multiplicidade e pluralismo dentro de diferentes partidos políticos por causa da guerra.

Zelensky será recordado nos livros de história como o David que enfrentou Golias

Já uma Ucrânia totalmente integrada na União Europeia a curto prazo? Ou, apesar de todo o otimismo da Comissão Europeia em Bruxelas, esse dia ainda vai demorar?

Os aliados europeus da Ucrânia devem a Kiev e aos ucranianos levar muito a sério seu pedido de adesão à União Europeia A Ucrânia protegeu a Europa da ameaça mais significativa que todo o continente experimentou nos últimos 50 anos. Nesse sentido, não tenho dúvidas de que a Ucrânia deve ser levada a sério como um parceiro confiável na Europa.

Certamente a economia da Ucrânia terá que ser reconstruída, o país terá de ser reconstruído, mas a Ucrânia mostrou querer fazer parte da Europa. Não há mais nada que os ucranianos possam fazer provando merecer fazer parte da comunidade europeia.

Claro que a Ucrânia deve ser aceite na União Europeia, quaisquer que sejam os requisitos que precisam ser atingíveis. Admito que alguns desses requisitos não sejam cumpridos no imediato, mas o gesto simbólico da europeização oficial da Ucrânia é muito significativo e a sua transcendência extravasa em muito a espuma destes dias.

E Zelensky? Ele é ‘o Churchill ucraniano’ ou é ‘o herói moderno’ que marcará as próximas décadas da política ucraniana?

Tenho a certeza de que o presidente Zelensky já fez muito mais do que esperava ter de fazer. As circunstâncias empurraram Zelensky para desempenhar um papel para o qual seguramente não foi inscrito. O presidente tem feito um trabalho admirável. Zelensky que havia enfrentado uma vaga de críticas no final de 2021. Acredito que uma das razões pelas quais Putin decidiu invadir a Ucrânia foi a perceção errada do Kremlin de que Zelensky era, na altura, um líder impopular, o que, seguramente, não era.

Mas é admirável a maneira como o presidente ucraniano enfrentou tudo, a forma como ele defendeu tão fortemente o seu país e o modo como representou a Ucrânia tão bem no palco mundial. Os seus conselheiros também fizeram um trabalho muito bom. A equipa de que ele se fez rodear realmente fez um trabalho fantástico. Nesse sentido, Zelensky está a influenciar a natureza e a face da política ucraniana, deixando uma marca impressiva.

Ele tem sido o líder que o mundo realmente precisa ver agora em Kiev. Acho que será recordado nos livros de história como ‘o David que enfrentou Golias’. E se Zelensky não tem enfrentado a agressão russa da forma como enfrentou, as coisas poderiam ser agora muito diferentes na Ucrânia.

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  • Desabafo Assim
    22 mai, 2022 porto 16:41
    Não merece! O povo primeiro e só depois, muito depois o resto.
  • André Ruas
    22 mai, 2022 Sardoal 00:12
    Haja simpatia pela Ucrânia, mas não deem o braço pela mão. Este é um dos países mais pobres da Europa, com muita corrupção, logo tem muito que trabalhar antes de merecer ser um candidato.

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