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Crónica

"Uma bandeira de Timor-Leste numa barraca é um país e pronto". Xanana Gusmão, 16.02.1999

19 mai, 2022 - 22:30 • Pedro Mesquita (texto e fotos)

Quando, em fevereiro de 1999, visitei Kayrala Xanana Gusmão - o líder histórico da resistência timorense - na casa-prisão de Salemba, em Jacarta, já cheirava a liberdade. Não se sabia quando, mas adivinhava-se que estava para acontecer.

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A Renascença acompanhou a caminhada de Timor-Leste rumo à independência
A Renascença acompanhou a caminhada de Timor-Leste rumo à independência. Na foto, o jornalista Pedro Mesquita com Xanana Gusmão, ainda preso em Jakarta. Foto: DR

Tal como hoje Volodymyr Zelenskiy recebe uma longa fila de líderes ocidentais, na Ucrânia atacada pelas tropas do Kremlin, há mais de 20 anos também Xanana Gusmão recebeu uma extensa lista de personalidades, na Indonésia, quando ainda estava em prisão-domiciliária, incluindo a secretária de Estado norte-americana Madeleine Albright.

Esperei vários dias - com outros jornalistas - por uma autorização de entrada na casa mais famosa da rua Percetakan Negara, VII, em Jacarta. Da conferência de imprensa, transformada numa animada conversa com Xanana Gusmão, guardo para sempre duas frases: "Uma bandeira de Timor-Leste numa barraca é um país e pronto" é a primeira e foi registada pelo microfone da Renascença. A segunda foi escrita no verso de uma fotografia que me foi oferecida por ele. Tenho-a agora na minha mão e leio: "O grito da vitória que você tem o dever de transmitir ao mundo".


Era já evidente o otimismo do líder máximo da resistência timorense, ainda preso. Confesso que parti para Timor, dias depois, sem tantas certezas. Ainda para mais quando, à chegada a Díli, vi um militar indonésio retirar-me o passaporte da mão e desaparecer com ele. Acabaria por mo devolver pouco depois mas, daquele intervalo de tempo marcado por alguma apreensão, recordo também um momento de esperança: um idoso aproximou-se de mim, em pleno aeroporto, e discretamente mostrou-me uma cigarreira antiga que tinha na mão. Estava impressa a bandeira de Portugal. Contou-me depois, em português, que esteve enterrada no seu jardim durante os longos anos da ocupação indonésia. Deu-me um abraço e disse estar convicto de que a resistência ia vencer.

Desde aí cruzam-se na minha memória inúmeros acontecimentos e rostos: Vi centenas de timorenses a rezar o terço, em português, no terraço da casa de Manuel Carrascalão. Lembro-me da coragem dos bispos D. Ximenes Belo e D. Basílio do Nascimento, mas também do padre jesuíta português João Felgueiras (hoje com mais de 100 anos) que abraçou os timorenses que sofriam, ao longo dos 24 anos de ocupação indonésia de Timor-Leste.


Recordo-me de ir a Balibó para assistir à formação de milícias integracionistas (pró-Indonésia) que, ainda antes do referendo, mas sobretudo nos dias que lhe seguiram, arrasaram Timor-Leste. Uma das vítimas foi Manelito - filho de Manuel Carrascalão - barbaramente assassinado pelos grupos paramilitares ao serviço da Indonésia. Deste jovem recordo o rosto, e o sorriso, e a "boleia" que me deu em 1999 (durante a ocupação indonésia) entre o velhinho hotel turismo e a casa do seu pai. Lembro-me que vestia uma camisola da seleção da Argentina...e penso também na sua irmã, Cris Carrascalão, uma sobrevivente, e amiga, que hoje vive em Portugal.

Os momentos mais dramáticos daquele povo foram relatados na Renascença, a partir de Timor, pela jornalista Anabela Gois...que "rádio-aproximou" Portugal daquele povo em sofrimento. Recordo os quatro dias e noites sem dormir de emissão contínua da Renascença em Lisboa e Porto...a par com Timor, onde regressei vezes sem conta, enquanto renascia das cinzas.

Nesta longa lista de memórias de Timor, não posso esquecer a firmeza diplomática de José Ramos Horta, que volta a tomar posse como Presidente da República. Foi intenso o seu trabalho de bastidores junto das grandes potências para garantir que, em setembro de 1999, o Conselho de Segurança das Nações Unidas carimbasse - já de madrugada - o envio para Timor de uma força multinacional de manutenção da paz, a INTERFET. Recordo-me de encontrar Ali Alatas, na manhã seguinte. Com ar profundamente abatido, o chefe da diplomacia de Jacarta comia uma sanduiche num pequeno bar na sede da ONU.

E depois, claro, fica a memória das intermináveis filas para votar e do sorridente Sérgio Vieira de Mello. Coube-lhe a gigante tarefa de unir o povo, ajudar a reconstruir o país, e preparar o futuro politico, em diálogo permanente com os principais líderes: Xanana Gusmão, José Ramos Horta, Mari Alkatiri e Mário Carrascalão, por exemplo.

A última memória deste texto leva-me a Tasi Tolu. Foi lá que assisti, a 20 de maio de 2002, por entre muitos milhares de timorenses em festa, à independência de Timor.

Passam hoje duas décadas. Juntamente com a jornalista Anabela Gois, "transmiti ao mundo", pela Renascença, "o grito da vitória" dos timorenses.

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