Renascença na Ucrânia

“Limpámos os campos de minas e mísseis e já estão semeados”. Como o agronegócio ucraniano resiste à guerra

11 mai, 2022 - 16:20 • José Pedro Frazão , enviado especial da Renascença à Ucrânia

Campos agrícolas minados, restos de mísseis no meio do milho e do trigo, trabalhadores a cultivar no intervalo dos alarmes aéreos. É a guerra vista a partir do sector agro-industrial ucraniano onde pontifica a Astarta. A empresa com sede em Kiev, uma das maiores desta área, viu tanques russos a entrar nalgumas propriedades, mas não regista grandes danos humanos ou materiais. A maior preocupação reside no fecho dos portos que obriga a uma forte pressão no armazenamento de cereais e outros produtos agrícolas nos silos da Ucrânia.

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Foto: Astarta
Foto: Astarta
Ajuda humanitária enviada pela comunidade ucraniana em Portugal Foto: Astarta
Ajuda humanitária enviada pela comunidade ucraniana em Portugal Foto: Astarta

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Victor Ivanchik recebeu a Renascença para um pequeno-almoço no seu escritório em Kiev. Ele é o fundador e presidente executivo da Astarta, uma das maiores companhias agro-industriais da Ucrânia. É o maior produtor nacional de leite e de açúcar, com 220 mil hectares em todo o país, extraindo ainda milho, trigo e soja entre outros produtos.

A holding agrega diversas empresas agrícolas e tecnológicas e fechou 2021 com receitas consolidadas de 491 milhões de euros e um EBIDTA (lucros antes de juros ou impostos) de 201 milhões de euros.

O setor está muito preocupado com o fecho dos portos da Ucrânia nos mares Negro e de Azov. No caso da Astarta, 44% das receitas vieram das exportações no ano passado.

A par disso, faz parte de um projeto interempresarial que junta algumas das principais companhias ucranianas na resposta à crise humanitária causada por uma guerra em que os mísseis vão caindo em campos de cultivo e não muito longe de alguns silos agrícolas.

Esta guerra tem tido um impacto direto na sua empresa e nas suas instalações?

Temos ativos na parte central da Ucrânia, que se estende de Kharkiv às regiões de Ternopil na Ucrânia. As nossas instalações não foram diretamente afetadas pelo bombardeamento, mas os nossos campos, especialmente nas regiões de Poltava e Chernihiv, foram ‘inundados’ com mísseis, restos de mísseis, granadas e minas.

Juntamente com funcionários do Serviço de Emergência do Estado da Ucrânia, recolhemos provavelmente dezenas de toneladas de restos desses mísseis. Esse trabalho operacional, a par da desminagem, permitiu-nos semear todas as terras que hoje estão na gestão operacional da nossa empresa, totalizando 220 mil hectares. Estamos confiantes de que conseguiremos fazer colheitas em todas as terras semeadas.

Temos cerca de quatro mil hectares perto de Chernihiv, numa das nossas empresas agrícolas que estiveram sob ocupação russa por cerca de duas ou três semanas. Recolhemos testemunhos oculares que nos dizem que os russos tiraram todo o equipamento de escritório e tentaram destruir as nossas máquinas agrícolas.

Mas o nosso pessoal trabalhou muito rapidamente e removeu a parte eletrónica do equipamento, o que não permitiu que eles levassem esse equipamento para a Rússia.

E a força de trabalho humana? Os vossos trabalhadores saíram dos campos ou do país? Ajudou as pessoas da sua empresa a sair?

No primeiro dia da guerra em grande escala, 24 de fevereiro, às 12h00, fizemos uma reunião online com todos os nossos diretores de empresas regionais e administradores de topo. São cerca de 50 pessoas. Todos nós decidimos ficar na Ucrânia e continuar a trabalhar.

Estávamos confiantes que iríamos vencer, que os russos não iriam tomar as nossas terras. E era importante darmos continuidade às nossas operações, especialmente porque a empresa tem terras para cultivar e fazendas de gado. São cerca de 23 mil cabeças de gado que dão leite todos os dias. Portanto, não parámos a atividade de Astarta nem por uma hora.

A segurança humana é uma prioridade para a Astarta. Trabalhamos de acordo com um plano de evacuação previamente desenvolvido e, se necessário, ajudamos a evacuar nossos funcionários e suas famílias para locais mais seguros para todos os que precisassem. Temos ligação com cada funcionário.

Mas os vossos funcionários trabalharam mesmo com a ameaça de mísseis a cair nos campos? Isso aconteceu?

Claro que quando as pessoas ouvem alarmes aéreos, escondem-se em abrigos antiaéreos. Portanto, felizmente, nenhuma das nossas pessoas ficou ferida durante o trabalho de campo.

Nas vésperas da guerra, desenvolvemos um programa de gestão de crise e preparámos instalações nas nossas fábricas de açúcar, com elevadores e locais onde as pessoas poderiam esconder-se. Mas assim que o alarme aéreo é desativado, eles continuam a fazer o seu trabalho. E os alarmes aéreos podem ser escutados várias vezes ao dia por várias horas.

Como têm lidado com a necessidade de armazenamento das vossas produções de açúcar ou de leite? Isso foi interrompido ou continuaram a fazê-lo? E como abordaram a questão das exportações no vosso negócio?

Exportar produtos cerealíferos é uma parte muito importante do nosso negócio e da Ucrânia. A Ucrânia é um dos maiores exportadores de produção agrícola do mundo, com cerca de 15% a 16% das exportações mundiais de cereais, óleo de girassol e outros alimentos como a pasta de tomate - que é aliás próxima dos agricultores portugueses.

A exportação é muito, muito importante para a Ucrânia. Todos os anos a Ucrânia exporta produtos agrícolas na ordem dos 50-60 mil milhões de dólares. Este ano, com o início da guerra, as exportações praticamente pararam. E isso é um problema para a Ucrânia, porque os portos do Mar Negro estão fechados neste momento, os portos do Mar de Azov foram destruídos e só podemos exportar os nossos produtos através das fronteiras ocidentais da Ucrânia.

E durante quanto tempo pode aguentar este modelo de exportação?

Nós, a empresa e a Ucrânia em geral, podemos exportar uma parte muito pequena da nossa produção agrícola através das fronteiras ocidentais da Ucrânia. Estamos a fazer todos os esforços para desbloquear os portos, mas não depende da nossa empresa.

Espero que a comunidade mundial ajude a Ucrânia a resolver este problema. A presença do secretário-geral da ONU, António Guterres, em Kiev, é um sinal muito importante, porque acredito que a Ucrânia deve direcionar os nossos produtos para o mercado mundial. Deve reduzir a tensão no mercado mundial que existe atualmente e, assim, reduzir os preços e o risco de fome nos países em desenvolvimento na África e na Ásia.

Contamos também com a ajuda de António Guterres, que durante anos foi Alto-Comissário da ONU para os Refugiados e está bem ciente deste problema que agora surgiu na Ucrânia. Os seus esforços são muito importantes para a Ucrânia e para o mundo inteiro. Ele é uma pessoa com autoridade na política mundial, um homem de alto valor, e esperamos sinceramente que esses seus esforços pessoais aqui na Ucrânia possam levar a resultados concretos.

No nosso caso, passa pelo desbloqueio dos portos do Mar Negro, a retirada de Mariupol daqueles que lá sofrem uma brutal agressão russa e espero que as operações humanitárias na Ucrânia sejam ainda mais apoiadas pela comunidade mundial.

Como funciona a ligação entre empresas ucranianas no plano humanitário?

A nossa empresa Astarta-Kyiv e a Fundação de solidariedade "Believe in Yourself" criaram o projeto humanitário “Common Help UA”. Mais de 15 parceiros doadores ucranianos e estrangeiros juntaram-se ao nosso projeto cujo objetivo é ajudar os ucranianos afetados pela agressão militar russa. É um projeto de parceria humanitária e cada parceiro contribui para um problema comum.

A Astarta, sendo cofundadora e parceira chave do projeto, fornece integralmente as atividades operacionais do projeto (armazéns, oito pólos regionais, suporte financeiro, jurídico e de tecnologias de informação, e a sua equipa com quase 1000 funcionários), doando os seus próprios produtos agrícolas e recursos materiais, somando mais de 2 milhões de dólares.

A nossa administração e altos funcionários doam parte ou todo o seu salário. Eu prescindi do meu salário para efeitos de doação até ao fim da guerra. E também estamos a direcionar esses fundos para um projeto humanitário.

Os nossos parceiros são a organização voluntária portuguesa de refugiados ucranianos UAPT, Carlsberg Ucrânia, Vodafone, Banco Raiffeisen , Centro Anne de Kyiv, etc. Também eles estão a investir os seus recursos neste projeto para ajudar o povo ucraniano.

E graças a essas contribuições conjuntas, quase 7.000 toneladas de ajuda humanitária (alimentos, remédios, produtos de higiene pessoal, roupas) foram entregues a 503 mil destinatários. São deslocados e vítimas ucranianas do conflito, bem como mais de 130 instituições sociais e médicas da Ucrânia, que atendem mais de um milhão de pessoas. Em termos totais, já foram canalizados 8,3 milhões de dólares através do “Common Help UA”.

E que ligação é essa a Portugal? Pode explicar melhor?

Sim. A organização voluntária portuguesa refugiados ucranianos UAPT foi o primeiro grande parceiro deste projeto. É uma organização portuguesa fundada pelo empresário ucraniano residente em Portugal Roman Kurtish.

Este é apenas um grande exemplo de patriotismo ucraniano em Portugal, onde os ucranianos que vivem lá fazem negócios em Portugal e ajudam a Ucrânia. Já entregaram na Ucrânia mais de 500 toneladas de diversos produtos humanitários, incluindo medicamentos, alimentos, produtos de higiene, roupas etc…

Tornámo-nos parceiros há mais de um mês e já recebemos mais de 100 toneladas de remédios, alimentos e roupas desta organização voluntária. Eles enviaram três aviões para a Polônia e nós transportamos essa carga da Polónia para a Ucrânia. Atualmente, a ajuda humanitária é fornecida por via rodoviária e ferroviária.

Continuamos a desenvolver esta cooperação muito estreita com os nossos parceiros portugueses, pois assenta num valor partilhado - ajudar os refugiados ucranianos e os afetados pela guerra.

Também estamos a trabalhar em todas as possibilidades para aumentar a nossa contribuição. Quando o Programa Alimentar Mundial [PAM] da ONU abriu um concurso à procura de parceiros para fornecer ajuda humanitária à Ucrânia, oferecemos os nossos recursos internos para entrega em todo o país. A Astarta presta agora serviços de transporte terrestre da Polônia para vários destinos na Ucrânia e dentro do território da Ucrânia diretamente para os seus destinatários. A Astarta já entregou 3.000 toneladas de ajuda humanitária do PAM.

Temos também uma cooperação com a Embaixada da Suíça na Ucrânia, baseada numa colaboração de longa data no âmbito de projetos sociais conjuntos para o desenvolvimento sustentável das comunidades territoriais ucranianas. Desde o início da guerra, começámos a cooperar no âmbito da missão humanitária suíça na Ucrânia. A Astarta fornece e entrega comida ucraniana aos necessitados e o lado suíço fornece financiamento. Portanto, fornece assistência aos ucranianos afetados pela guerra ao mesmo tempo que presta apoio aos produtores ucranianos e à economia. No total, 5100 toneladas de produtos alimentares foram fornecidas e entregues a Odessa, Vinnytsia, Dnipro, Mykolaiv, Sumy e Kharkiv no âmbito desta cooperação.

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