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Exclusivo Renascença

Representante de Zelenskiy para a Crimeia diz que a guerra só acaba com devolução dos territórios ocupados pelos russos

09 mai, 2022 - 16:30 • José Pedro Frazão, enviado especial à Ucrânia

A posição do Governo de Volodymyr Zelenskiy é reafirmada em entrevista à Renascença pela representante do Presidente da Ucrânia para a Crimeia. Tamila Tasheva relata as formas de resistência dos tártaros da Crimeia, explica que é possível dar autorização de residência a russos que tenham constituído família na península e comenta o papel mediador da Turquia no conflito.

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Tamila Tasheva pertence a uma família de tártaros da Crimeia, o povo indígena daquela península deportado por Estaline, em 1944, e que só voltou depois da “Perestroika”. Em 2014, Vladimir Putin ocupou militarmente a Crimeia e anexou de facto o território que pretende agora ligar por terra à Federação Russa, bastando neste momento a conquista de Mariupol. Para a descendente de deportados da Crimeia, ela própria deslocada no seu próprio país, a guerra começou verdadeiramente em 2014 e só termina com a devolução dos territórios ocupados do Donbass e da Crimeia.

Nasceu fora da Crimeia, depois voltou e agora voltou a sair. No fundo, assemelha-se à história recente do povo da Crimeia, sempre a sair e a regressar?

Sim, assim é. Nasci no Uzbequistão na cidade de Samarcanda. Todos os tártaros da Crimeia foram deportados em 1944 por Estaline para a Ásia Central. Assim aconteceu com o meu pai e a minha mãe, que são de Sebastopol, na Crimeia, e foram deportados da Crimeia para o Uzbequistão.

Mas antes dessa deportação, a minha família tinha sido deportada da Crimeia para campos nazis na Áustria e só depois foi para a Ásia Central. Eu nasci no Uzbequistão em 1985 e depois regressei com a minha família em 1991. Vivi na Crimeia durante muitos anos até 2007, quando me mudei para Kiev.

Então estava na Crimeia durante a Revolução Laranja?

Sim, na Crimeia e em Kiev, porque comecei o meu ativismo pelos direitos civis em 2003. E depois fui ativista na Revolução Laranja. Fizemos uma viagem muito grande da comunidade de jovens da Crimeia para Maidan.

Na sua perspetiva, o que aconteceu em 2014?

Foi uma ocupação. Na verdade, foi uma tentativa de anexação, porque não reconhecemos a anexação. De acordo com a nossa legislação ucraniana, falamos numa ocupação da Federação Russa, porque as forças militares da Federação Russa chegaram às nossas terras, terras ucranianas, com soldados russos.

Eles tomaram as nossas terras e, na verdade, fizeram o seu trabalho sempre de acordo com o mesmo método. Vieram com os seus soldados, depois perseguiram ativistas ou jornalistas, depois mataram pessoas. A Crimeia é um território de medo. Então eles fizeram um alegado “referendo”, mas nós não reconhecemos esse referendo, é claro. E na verdade nesta operação militar a Crimeia está de facto ocupada.

O que é que aconteceu com a resistência na Crimeia a essa ocupação?

Claro que temos resistentes. A última grande manifestação na Crimeia ocorreu em Simferopol, perto dos edifícios governamentais e estatais, no dia 26 de fevereiro. Considerámos que era um ‘dia de resistência’ porque os russos dizem que não temos nenhuma resistência ou oposição, mas não é verdade. Tivemos milhares de pessoas que vieram a esta praça, em Simferopol, perto do parlamento da Crimeia.

Claro que uma parte da população é pró-russa, mas a maioria das pessoas era pró-ucraniana, com bandeiras ucranianas, com bandeiras tártaras da Crimeia. Depois disso eles prenderam alguns ativistas e jornalistas ou até mataram, por exemplo, aquela que foi a primeira vítima da nossa guerra na Ucrânia, porque a guerra não começou em 24 de fevereiro de 2022. A primeira vítima foi Reshat Ametov, um ativista tártaro da Crimeia, que estava a fazer uma manifestação de protesto solitária perto dos edifícios governamentais na Crimeia. Ele desapareceu e, no espaço de uma semana ou 10 dias, foi encontrado morto. Mataram-no de maneira muito agressiva, como aconteceu a algumas pessoas na área de Bucha.


Não ouvimos no Ocidente muitas notícias sobre a Crimeia desde a ocupação e anexação. Como é a vida normal hoje na Crimeia?

Na verdade, Putin diz que quer tudo à imagem da Crimeia, a terra mais rica com todos os bens necessários. Mas na Crimeia eles sofrem as sanções internacionais. Não temos Visa ou MasterCard na Crimeia e só há dinheiro russo. Cerca de 300 bancos operavam na Crimeia, mas após as sanções dos nossos parceiros ocidentais, eles saíram da Crimeia onde agora trabalham apenas três bancos. Eles têm, contudo, algum sistema interno, mas não o sistema internacional Visa ou MasterCard. As pessoas não têm possibilidade de pedir créditos para apartamentos.

Então, o que mudou na vida da Crimeia durante a ocupação?

A Crimeia vive um medo territorial. Talvez seja essa a principal mudança, porque os ucranianos e naturais da Crimeia viviam em liberdade. Se precisasse de fazer alguma manifestação, de dizer algo sobre a administração, sobre o presidente, sobre o parlamento, poderia fazê-lo quando a Crimeia estava no nosso controlo mas, depois disso, não é possível. Essas podem ser as principais mudanças na Crimeia. Algumas pessoas podem ter mais dinheiro na Crimeia depois de 2014, outras não.

Mas as autoridades de ocupação russas continuam a perseguir o que chamam de criminosos. Por exemplo, levantaram 125 casos criminais, politicamente motivados contra a Crimeia. Todos eles e cada um, de acordo com a lei criminal russa, são sobre extremismo ou terrorismo.

Ora, durante toda a nossa independência na Crimeia, não tivemos sequer um caso terrorista na Ucrânia. Mas eles consideram que os ativistas são terroristas.

Eu tenho alguns amigos agora na prisão. Por exemplo, um deles é um jornalista de direitos civis, Server Mustafayev, preso em 2018 e condenado a 14 anos de prisão em regime severo de detenção. Ele tem quatro filhos e uma boa educação e não fez nada.

A resistência na Crimeia não inclui atos de terrorismo?

Não, é apenas uma resistência não-violenta. Na maioria das vezes, o ativismo na Crimeia é mais pró-ucraniano e a maioria desses números de ativistas da Crimeia são tártaros da Crimeia.

De acordo com a nossa visão dos tártaros da Crimeia, essa resistência deve ser feita apenas em oposição não-violenta. Os tártaros da Crimeia têm uma enorme história de resistência não-violenta no tempo soviético e os nossos líderes tártaros da Crimeia também. Por exemplo, Mustafa Jemilev é um ativista de direitos humanos muito conhecido, que passou 15 anos na prisão em campos soviéticos e sempre em resistência não-violenta.

"Vieram com os seus soldados, depois perseguiram ativistas ou jornalistas, depois mataram pessoas. A Crimeia é um território de medo"

É uma autoridade por delegação do seu Presidente da Ucrânia. Estabelece algum tipo de diálogo com aqueles que estão a ocupar o seu território?

Não temos qualquer comunicação com as autoridades de ocupação russas. Claro que, durante estes oito anos, a nível do Ministério dos Negócios Estrangeiros, temos alguma comunicação com as autoridades russas, não com as autoridades de ocupação. Quando falamos sobre a Crimeia, eles dizem ‘não, não falamos sobre a Crimeia. A Crimeia é nossa terra’, diz a Rússia. Quando o nosso presidente Zelensky foi eleito e iniciámos o nosso trabalho, a Crimeia voltou à agenda ao nível internacional.

No ano passado, tivemos por exemplo uma grande cimeira sobre a Crimeia. Foi a Plataforma da Crimeia em Agosto do ano passado em que 46 países e organizações internacionais assinaram uma declaração sobre a Crimeia. É muito, muito importante, porque são os nossos parceiros ocidentais ou sul-americanos a reconhecer que a Crimeia é da Ucrânia.

Muitas pessoas disseram-me aqui na Ucrânia que este tipo de invasão era algo expectável após a anexação da Crimeia e as declarações de repúblicas do Donbass.

Infelizmente a comunidade internacional não se importou com isso.

Compreende por que razão eles não agiram como agora?

Eles estavam com medo de Putin, porque ele tem armas nucleares. E, é claro, eles fazem os seus negócios.

Também ouvi aqui ucranianos a dizer, por exemplo, que a Crimeia é outra coisa, é um assunto diferente. Não acha que oito anos depois, a Crimeia é uma causa perdida para os ucranianos?

Bom, as nossas autoridades ucranianas durante talvez seis anos… Eu não queria falar sobre o governo anterior, mas para mim eles fizeram poucas coisas pela Crimeia. Quando o presidente Zelenskiy e a sua equipa chegaram ao poder e começaram a trabalhar na questão da Crimeia, fornecemos uma estratégia para lidar com a ocupação da Crimeia e também algumas questões legislativas que são muito importantes para a questão da Crimeia. Não sabemos por que razão o nosso governo anterior não lidou com isso. Eu sei que é difícil pedir aos nossos parceiros internacionais para colocarem a questão da Crimeia na agenda diária. Mas se não fizermos nada do nosso lado, será estranho.

Trabalha diretamente com o Presidente Zelenskiy. Ele está realmente empenhado em recuperar a Crimeia?

Claro. É uma posição muito forte do nosso Presidente. Temos tido muita comunicação com o Presidente antes de 24 de fevereiro e ele faz avançar essa legislação sobre a população indígena. E o Presidente sempre diz que devemos devolver a questão da Crimeia à nossa agenda não apenas internacional, mas também interna.

Durante os últimos cinco anos, infelizmente, fizemos alguns cartazes, mas não é suficiente. Mas agora temos uma posição forte do governo para termos uma estratégia de ocupação da Crimeia, que tem algumas partes sobre as pessoas que vivem na Crimeia, sobre o que se deve fazer a nível internacional e sobre o que fazer na esfera da informação. É um documento muito importante e não sei porque não tivemos o documento antes de 2021.


Mas estamos a ver o mesmo filme novamente no Donbass, com referendos e ocupação.

Sim. Está a acontecer o mesmo também agora em plena invasão. Nestes territórios recém-ocupados na região de Kherson, eles também vêm com exército. Perseguem pessoas, ativistas, jornalistas. Agora os russos falam nesses autodenominados referendos na região de Kherson. É a mesma coisa, é o que eles fazem. Infelizmente, as pessoas que vivem em Kherson ou em territórios recém-ocupados, mesmo que resistam nessas regiões, infelizmente agora vivem em situação de ocupação.

E se acabar com a guerra passar por concessões de terras na Crimeia?

A posição do Presidente da Ucrânia e dos nossos cidadãos é que não temos nenhuma negociação com a Rússia para parar esta enorme guerra com cedência dos nossos territórios. Crimeia e Donbass são territórios ucranianos. E é a nossa integridade territorial.

O Presidente sempre disse nas suas entrevistas - e todas as pessoas, na verdade: nós morremos nesta guerra. Milhares de civis morreram. Bucha aconteceu, Mariupol aconteceu, Kharkiv, Izium. É muita gente. Muitos soldados. Não é um negócio, é a nossa terra. E na Crimeia temos o nosso povo. Claro que muitos russos chegaram às nossas terras na Crimeia depois de 2014. Foram cerca de 500 mil pessoas, é um grande número. Mas entendemos que após a ocupação da Crimeia, eles devem retornar às suas terras e à Federação Russa.

Claro que não vamos forçar deportações, mas, de acordo com a legislação ucraniana, se eles precisarem de uma permissão permanente para viver na Crimeia, como cidadãos russos, talvez isso seja possível.

Será possível?

Poderia ser possível, por exemplo, se após estes anos de ocupação, alguns cidadãos da Federação Russa se casassem com um ucraniano ou se eles tiverem alguns filhos. Nesse caso, tudo bem, de acordo com a nossa legislação ucraniana, eles poderiam morar temporariamente na Crimeia.

Como responde à abordagem cultural e histórica que, às vezes, ouvimos sobre a Crimeia na versão da União Soviética?

A Crimeia é a terra dos tártaros da Crimeia. Antes da primeira anexação forçada da Crimeia por Catarina II, em 1783, a maioria da população na Crimeia eram tártaros da Crimeia. Eram quase 90% das pessoas.

Não percebo porque dizem que aquela era terra russa. Não entendo. É uma colonização do século XVIII que o Império Russo iniciou na Crimeia. E depois de 2014 há uma nova colonização da Crimeia, porque deslocaram à força o nosso povo. Quase 100 mil ucranianos da Crimeia fugiram depois de 2014 e tornaram-se deslocados internos. E eles levaram população da Federação Russa para a Crimeia. É a colonização da nossa península da Crimeia.

Mas por algum motivo foi criada uma região autónoma da Crimeia.

Em primeiro lugar, a Ucrânia concedeu autonomia à República da Crimeia logo em 1991, não no sentido da autodeterminação como nação. Existe uma população indígena que se identifica com uma base territorial. A República Autónoma da Crimeia tem identificação territorial e não como nação.

"Não temos nenhuma negociação com a Rússia para parar esta guerra com cedência dos nossos territórios. Crimeia e Donbass são territórios ucranianos"

Um território autónomo da nação ucraniana ou uma nação por si chamada Crimeia?

Nós não temos uma Nação Crimeia. Essa é a narrativa de Putin, a de que existe uma Nação Crimeia que exerceu uma autodeterminação. Não! Não temos uma Nação Crimeia. Nós temos cidadãos ucranianos na Crimeia. Mas de acordo com o Direito Internacional, temos um povo indígena que tem o privilégio de ter autonomia em termos de governo no país.

E o que aconteceu durante a ocupação à cultura dos tártaros da Crimeia?

A cultura está numa situação perigosa porque eles destroem-na. No caso do património dos Tártaros da Crimeia, por exemplo, o Palácio Khan foi também destruído por Catarina II, tal como algumas mesquitas foram atingidas. Os tártaros da Crimeia não têm também a possibilidade de falar na língua tártara ou educar na sua própria língua. Ainda é usada, mas a educação em língua tártara já é reduzida.

E quanto ao lado religioso?

Eles perseguem os tártaros da Crimeia porque dizem que são terroristas. Para a Federação Russa, é importante controlar desde cedo alguns grupos religiosos, políticos ou de direitos civis. E se alguns grupos religiosos não forem controlados, como os russos afetos à Igreja Ortodoxa obediente a Moscovo. Mas se o seu grupo religioso não for controlado, será perseguido.

Existe uma diáspora tártara da Crimeia na Turquia, país que está a tentar mediar este conflito. Como vê esses esforços do lado turco?

A Turquia apoiou a Ucrânia na nossa integridade territorial ao longo destes oito anos. Eles não reconheceram a tentativa de anexação da Crimeia e sempre apoiaram as comunidades tártaras da Crimeia. Isso é muito importante.

Por exemplo, o primeiro relatório sobre a situação dos direitos humanos na Crimeia após a ocupação russa veio da Turquia, porque eles tinham uma delegação na Crimeia em 2014. Eles fizeram um relatório muito bom. Claro que a Federação Russa respondeu que é um disparate e que nem sequer era um relatório. Claro que a Turquia apoia também a Ucrânia na esfera militar, o que também é muito importante.

Vejo que considera que a Turquia é amiga da Ucrânia. Por que razão a Rússia poderia aceitar a Turquia como mediadora, tendo em conta essa relação com a Ucrânia?

Eu tomo nota a forte posição da Turquia e a Turquia apoia a Ucrânia. E isso para mim é realmente suficiente. Eles têm uma posição forte sobre a Crimeia, considerando que faz parte da Ucrânia. Isso para mim também é suficiente. Eu compreendo que a Turquia tenha algumas ligações de negócios com a Federação Russa, com muitos turistas russos na Turquia. Mas eles apoiam o nosso governo.

Pensa que a Turquia pode ajudar a acabar com esta guerra?

Não é apenas a Turquia. Em primeiro lugar, tem de ser a Ucrânia, o nosso exército e o nosso povo. Claro que agradecemos todo o apoio de diferentes países. Mas deve compreender que o nosso melhor ativo é o exército.

Para si uma vitória é uma vitória militar?

A vitória não será apenas militar, mas sobretudo militar. A guerra termina quando trouxermos de novo a Crimeia e o Donbass para a Ucrânia. Claro que esperamos que esta fase ativa da guerra termine num futuro próximo. Mas a guerra na Ucrânia começou em 2014 quando a Crimeia foi ocupada pelos russos. E só terminará quando a Crimeia regressar à Ucrânia.

Consegue vislumbrar na sua geração um cenário de convivência pacífica com um vizinho chamado Federação Russa?

Não. E não é apenas uma questão de Putin, mas também dos russos comuns. E esses novos líderes políticos da Federação Russa, até os da oposição que se dizem liberais, a maior parte deles são imperialistas. Tem de haver uma mudança na sociedade da Federação Russa e não passa apenas pelo tempo depois da morte de Putin ou algo parecido. Porque, claro, isto é uma questão cultural.

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