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​Renascença na Ucrânia

Atum, água e cobertores. Há uma carrinha portuguesa que alimenta os soldados na frente de batalha

06 mai, 2022 - 19:46 • José Pedro Frazão , enviado da Renascença à Ucrânia

A Renascença conversou com um luso-ucraniano que ostenta com orgulho a matrícula portuguesa na carrinha que utiliza para fazer chegar roupa, comida e todo o tipo de material de apoio necessário às tropas que estão mesmo na primeira linha de ataque face às posições russas no leste da Ucrânia. Assegura que não transporta armas, diz não ter medo mas já apanhou sustos. Assume esta missão como um “voluntariado militar” da qual as forças militares ucranianas dependem do ponto de vista logístico nos terrenos mais explosivos.

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“Ainda vivo”. É desta forma que Petro Kostyuk responde aos amigos portugueses que perguntam como está este luso-ucraniano de 50 anos por estes dias de guerra. Esteve duas décadas em Portugal, tem passaporte e carta de condução – a precisar da renovação dos cinquentenários – emitidos no nosso país, mas decidiu regressar à Ucrânia há dois anos.

Trouxe apenas a carrinha comprada em 1989, com matrícula portuguesa, e é com ela que percorre as frentes de batalha no Leste e Sul da Ucrânia. Já fez mais de 30 mil quilómetros em dois meses, num vaivém constante entre a linha da frente e a da retaguarda logística no centro do país.

“Andamos com armas e com roupa militar, porque percorremos zonas onde o terreno já não é nosso e ainda não é deles. Levamos coisas para os nossos militares em zonas onde eles ficam dois ou três dias sem água e sem comida”, conta este operacional da Associação de Voluntários ATO de Vinnytsia, com sede na cidade de BAR, no centro da Ucrânia.

ATO é o acrónimo inglês de Operação Antiterrorista, nome dado à contra ofensiva ucraniana lançada em 2014 no começo da guerra no Donbass, que agrega as províncias de Luhansk e Donetsk.

Desde então que esta associação presta apoio logístico aos soldados ucranianos na frente de batalha. “Já fez mais de 100 saídas para posições quentes no conflito”, explica Petro, um camionista internacional em modo de pausa para acudir ao que considera ser uma prioridade como ucraniano.

Carregam um pouco de tudo. Na Páscoa levaram bolos da família e conservas de todo o género. “A malta de Severodonetsk e Kharkiv conhece bem o atum português”, assegura este camionista ao serviço da causa ucraniana. “Há aldeias que mataram todos os porcos para fazerem conservas. Até batata levamos”, acrescenta.

De Portugal já recebeu também ajuda humanitária mais normal como fraldas e medicamentos até produtos menos ortodoxos. “Tremoços também mandaram, mas quem quer isso na guerra?”

Um pronto-socorro logístico

Petro nunca pára quieto. A nossa conversa acontece durante uma dessas longas tiradas de estrada, depois de mais uma entrega de mantimentos nas zonas escaldantes da guerra. Nas últimas semanas carregou comida, água, roupa, cobertores e outros materiais – “não transporto armas” – para zonas de combate como Severodonetsk e Lysychansk, na província de Luhansk ou para Izium , já a meio caminho de Kharkiv, tudo no leste da Ucrânia.

“Os soldados telefonam para a associação, dizem o que precisam, nós carregamos a carrinha e vamos ao ponto onde eles estão.”

Toda a comida é enviada por voluntários e o papel de Petro é fazer chegar a carga ao ponto previsto, mesmo que seja no meio do nada ou em zonas sujeitas a bombardeamento constante. Substituem-se a uma cadeia logística tradicional como um verdadeiro exército de voluntários que abastecem os militares que estão a combater as tropas russas.

“Não dá para comprar nada porque naquela zona as pessoas apoiam os russos e os separatistas. Se pedir a alguém um pouco de água, vai lá chegar uma bomba em 10 ou 15 minutos”, diz Petro num tom de alguma descontração, como se isso fosse essencial para combater o medo de andar por ali.

Por entre bombas e minas

Guerra é guerra. Os combates não param para descarregar a carrinha. “ A situação é ‘terra-treme’ a cada minuto, daqui para lá e deles para cá”. Em Mikolaiv, no sul da Ucrânia, uma bomba rebentou a 200 metros da carrinha onde dormia com outros voluntários. Petro conta que acordaram com o estrondo numa carrinha a abanar por todos os lados.

As localizações enviadas a Petro nem sempre coincidem com zonas controladas pelos ucranianos.

“Quando chegamos à última posição do Exército, dizem-nos que para lá daquele ponto já não é a nossa terra. Mas são as coordenadas que nos mandam e temos que ir até lá. No outro dia em Severodonetsk, andámos três quilómetros numa zona que já não é nossa e ainda não é deles. Passei com a carrinha no alcatrão por entre aquelas minas que não rebentaram. Em Kharkiv, um militar disse-nos simplesmente que não deixaria que fôssemos ao local pretendido. Fomos tomar café e dez minutos depois recebeu uma chamada a dizer que tinha acabado de cair uma bomba nas coordenadas que tínhamos. Salvou a nossa vida”, vai contando enquanto conduz para casa depois de mais uma saída para o Leste da Ucrânia.

Uma carrinha (quase) imparável

Petro deixou o trabalho de camionista para ajudar. “Não ganho nada. Paramos dois dias para reparar a carrinha, recebemos dinheiros da organização, compramos o que precisamos, carregamos e voltamos para o Leste”. A regra é andar sempre na estrada. Enquanto um condutor conduz a carrinha há outro que vai dormindo. Assim se revezam e ajudam nesta missão de risco. Por vezes, transportam uma voluntária, professora universitária que também vestiu a farda para levar ajuda à linha da frente onde tem o filho e o marido.

“É uma caravana de pobre. Uma carrinha velha, mas ao menos tenho uma cama para deitar e uma bagageira grande la atrás”. Ao quarto dia de guerra já andava no Donbass. Ao longo dos últimos anos, andou por zonas de Melitopol e Mariupol enquanto foi possível. Desde que a guerra começou, o luso-ucraniano já mudou o óleo por três vezes à sua velha amiga de quatro rodas.

Mas a carrinha pode estar cansada de vez. No Dia do Trabalhador, a embraiagem deixou de colaborar de vez. Petro estava mais uma vez numa zona complicada, já próximo de Kherson, cidade ocupada pelas tropas russas. Em guerra, interessa não parar no caminho e o engenho de Petro conseguiu trazer a carrinha a salvo para casa. Está parada com prognóstico reservado devido à falta de peças.

Da vida boa ao lugar de partida

A vida era boa em Portugal, garante Petro. Vinte anos depois, decidiu sair de casa e regressar ao seu país de origem. “ Estou a ajudar o meu país porque sou ucraniano. Posso ficar em Portugal ou Eslováquia, mas sou sempre ucraniano”, fica feita a declaração de identidade que transcende os cartões de cidadão.

“Portugal é bom, mas não é o meu lugar.Esse é aqui, onde eu nasci”. De Portugal gostaria de importar bom senso político para os seus compatriotas. “O português é gente que pensa um bocadinho antes de dar o voto. Aqui fizeram um filme com o presidente e perderam cabeça”.

Petro não é o maior admirador de Zelensky, nota-se ao fim de 25 minutos de conversa. “O problema será depois de ganhar. Vai entrar muito dinheiro na Ucrânia. Mas o Governo vai ter medo, porque neste momento há muitas armas aqui nas mãos das pessoas”.

Piadas de guerra e lemas para a estrada

Os russos ocupam o topo da lista das palavras menos gentis de todo o discurso. Falar de Putin pode significar uma oscilação entre o calão e a anedota. “Ele não diz que quer conquistar até Lisboa? Ao menos o Montijo está safo, é só até Lisboa”, eis uma amostra do humor ucraniano com que um repórter de estadia prolongada aprende a conviver. Refere-se a uma frase recente de Dmitry Medvedev, antigo primeiro-ministro e Presidente em aliança com Putin, ao descrever o objectivo de uma “Eurásia aberta entre Lisboa e Vladivostok”.

A Rússia é um país muito grande, diz Petro. “Eles têm muita ‘carne’ para canhão. Para Putin, se morre um ou morre um milhão, é o mesmo”. O luso-ucraniano vai repetindo que esta guerra não é nenhuma brincadeira, que já dura há 300 anos e que agora é a última hipótese. “Se a Ucrânia perder, perde o mundo inteiro”.

Sobre o medo, Petro lembra uma história de infância em que chorava ao pé do avô. Este disse-lhe algo que tem vindo a interpretar ao longo dos seus 50 anos de vida. Um lema que ilumina as suas viagens para o Leste da Ucrânia: “quando os pais têm medo, os seus filhos acabarão escravos”.


(Nota: todas as fotos aqui publicadas foram cedidas por Petro Kostyuk e posteriormente sujeitas a tratamento digital, para segurança dos militares e do próprio autor das imagens)


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