O dilema alemão. No meio da ponte entre a Rússia e a Ucrânia

29 abr, 2022 - 14:55 • Guilherme Correia da Silva, correspondente na Alemanha

Primeiro, a Alemanha hesitou quando a Ucrânia pediu sanções mais severas contra a Rússia. Mais tarde, voltou a vacilar quando Kiev pediu artilharia pesada para combater os invasores russos. Só após semanas de pressão internacional, acabou por ceder. A Alemanha recusa-se a assumir uma posição de liderança, diz um politólogo à Renascença. Há vários motivos para isso.

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A política alemã entrou em rebuliço quando o Presidente, Frank-Walter Steinmeier, revelou, este mês, que, aparentemente, uma viagem sua à Ucrânia "era indesejada". O partido de Steinmeier, o SPD, considerou a afronta "lamentável", os Verdes disseram que "assim não dá".

Steinmeier foi um dos políticos que defendeu com unhas e dentes o gasoduto Nord Stream 2, entretanto suspenso, que iria levar gás russo diretamente para a Alemanha sem ter de passar pela Ucrânia, como acontece atualmente.

Em março, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, criticou o negócio durante uma videoconferência no Parlamento alemão: "Quando vos dissemos que o Nord Stream era uma arma e uma preparação para uma grande guerra, a reposta foi que, afinal, se tratava de economia. Economia. Economia. Afinal, era cimento para um novo muro."

Mesmo a poucas semanas da invasão, enquanto Kiev denunciava o aumento de tropas russas junto à fronteira com a Ucrânia, Frank-Walter Steinmeier continuava a defender a construção do Nord Stream 2.

Em entrevista ao jornal "Rheinischen Post", o Presidente alemão disse que a energia era "a última ponte entre a Rússia e a Europa".

De "católicos" a "protestantes"

Construir pontes com Moscovo está no ADN dos sociais-democratas alemães, comenta o politólogo Andreas Heinemann-Grüder, em declarações à Renascença.

O SPD optou sempre por uma "política de desanuviamento". Foi o caminho escolhido pelo líder histórico do partido, Willy Brandt, que, em vez de virar as costas a Moscovo ou confrontar a União Soviética, decidiu que a aproximação, a pouco e pouco, era a melhor forma de garantir a paz para os povos de ambos os lados da cortina de ferro.

Mas os tempos mudam, e o que se exige aos sociais-democratas é que, com os tempos, mudem também as suas vontades, continua Heinemann-Grüder.

"A nova situação exige que os sociais-democratas mudem as suas convicções", diz o professor universitário. "Mas isso é como pedir aos católicos que se convertam em protestantes num curto espaço de tempo. Para eles, isso é muito difícil, porque é uma convicção de, pelo menos, 50 anos. Isso também implica reconhecer que erraram e que, se calhar, contribuíram para que o Presidente russo, Vladimir Putin, se tornasse tão poderoso. E quem é que gosta de reconhecer que errou?"

O Presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, já reconheceu que errou ao apoiar o projeto Nord Stream 2.

Steinmeier era um dos políticos de confiança do ex-chanceler alemão, Gerhard Schröder, que, depois de sair da chancelaria, assumiu cargos de chefia na petrolífera estatal russa Rosneft e, mais recentemente, na gigante energética Gazprom, além de ser presidente do conselho de administração da Nord Stream 2 AG.

Agora, o partido de Schröder, o SPD, distancia-se do ex-chanceler. Saskia Esken, co-presidente dos sociais-democratas, pediu inclusivamente a Schröder que saia do partido.

"Há muitos anos que Gerhard Schröder atua como homem de negócios, e temos de nos deixar de referir a ele como 'estadista' ou 'ex-chanceler'. Ele é pago por empresas estatais russas. O facto de defender Vladimir Putin perante acusações de crimes de guerra é absurdo", disse Esken, esta semana.

Pelo menos agora fica claro que, para ter paz, só a cooperação económica não chega, comenta o politólogo Heinemann-Grüder.

"Wandel durch Handel" (em português, "mudança através do comércio") foi o lema da Alemanha nas últimas décadas, mas a Alemanha enganou-se. "Pensava-se que as relações com a Rússia poderiam ser cultivadas independentemente do caráter do regime, da autocracia, da ditadura na Rússia. Pensava-se que a cooperação económica levaria à paz, porque dependeríamos uns dos outros. No entanto, essa ilusão acabou", comenta o professor do Centro Internacional de Conversão de Bona (BICC).

O Presidente Vladimir Putin "está disposto a sacrificar as relações económicas em função dos seus propósitos de um grande império russo", acrescenta.

Não é uma visão de uma Europa unida - "de Vladivostok a Lisboa" - como defendeu o estadista russo Mikhail Gorbachev. Não. Segundo Heinemann-Grüder, regressa-se à ideia de que "existe uma Europa da democracia, do Estado de Direito e dos Direitos Humanos, apostada na paz, e outra parte da Europa, dominada pela Rússia, que se baseia, em última análise, no princípio de que os países vizinhos não são soberanos e os conflitos são decididos pela via militar e não pela negociação".

A dependência do gás russo

A Alemanha, que se tem dedicado à "economia, economia", é agora confrontada com um grande dilema, assinala Rafael Loss, investigador do Conselho Europeu de Relações Internacionais.

"Acreditou-se durante muito tempo que [Moscovo] seria um parceiro confiável para o fornecimento de energia, e cometeram-se vários erros no que diz respeito à transição energética", afirma Loss.

"Apostou-se bastante no gás natural como tecnologia de transição - sobretudo no gás natural russo, mais barato - e, nas últimas duas décadas, a Alemanha tornou-se extremamente dependente, económica e politicamente."

Mais de metade do gás natural importado pela Alemanha vem da Rússia. É algo de que agora o país "se arrepende bastante", diz Loss.

Não é de estranhar, portanto, que, quando Kiev apelou a sanções mais severas, incluindo a exclusão de bancos russos do sistema de pagamentos SWIFT, Berlim tenha vacilado inicialmente: a Alemanha continua a ter de pagar as faturas do gás para prevenir cortes no fornecimento. O Governo alemão está agora a tentar reduzir essa dependência.

Mas este não é o único dilema com que Berlim é confrontado no que diz respeito à ajuda a Kiev.

Armas pesadas para a Ucrânia?

Quando a Ucrânia insistiu que precisava de artilharia pesada para combater os invasores russos no Leste, Berlim voltou a mostrar-se reticente.

O chanceler alemão, Olaf Scholz, assinalou que é preciso impedir a todo o custo uma terceira guerra mundial: "A nossa ação é guiada por estes princípios: o maior apoio possível à Ucrânia, mas nenhuma participação da NATO na guerra", declarou Scholz.

Grande parte dos alemães teme ser arrastada para uma nova guerra. Ao enviar armas pesadas para a Ucrânia, a Alemanha poderia ser vista como co-beligerante. Por outro lado, para utilizar tanques Leopard - um dos itens na lista de pedidos da Ucrânia - os soldados ucranianos precisariam primeiro de formação, sublinhou o Governo,

Após semanas de pressão, Berlim anunciou, no início desta semana, que autorizou o envio de tanques antiaéreos Gepard do stock da indústria alemã. Por entre críticas da oposição da CDU/CSU, que acusou o chanceler Scholz de falta de liderança, e apelos do embaixador ucraniano na Alemanha, Andrij Melnyk, para mais "coragem", o Parlamento alemão consentiu na quinta-feira o envio de armas pesadas para a Ucrânia.

O envio deste material é um dilema, reconheceu Britta Haßelmann, líder da bancada parlamentar dos Verdes.

"Por um lado, não queremos ser parte beligerante; por outro, não podemos deixar a Ucrânia desamparada face ao agressor Putin", disse Haßelmann, citada pela revista Spiegel.

Saskia Esken, do SPD, referiu, contudo, que há um limite de armas que a Alemanha pode fornecer: "O que a Alemanha entrega depende da capacidade da indústria alemã de armamento, porque a capacidade do Exército alemão está esgotada. Não podemos comprometer a proteção do nosso país."

O dilema dos fundos para a Bundeswehr

Há dois meses, um jornalista da televisão pública ZDF perguntou a Egon Ramms, ex- comandante na NATO, se o Exército alemão estaria preparado para defender o país, caso necessário.

A resposta de Ramms foi um redondo "não".

Houve vários cortes na "Bundeswehr", particularmente após 2010. As Forças Armadas não estavam na lista de prioridades do Governo. Relatório atrás de relatório constata o mesmo: falta pessoal, falta equipamento… Há vezes em que os militares têm de pedir material emprestado e faltam peças para reparar tanques ou aeronaves, já para não falar da burocracia que atrapalha as estruturas no Exército.

Pouco depois do início da guerra na Ucrânia, o chanceler Olaf Scholz proclamou uma "nova era" no continente e anunciou a modernização das Forças Armadas alemãs com um pacote inédito de 100 mil milhões de euros e um investimento anual de 2% do PIB, a meta estabelecida pela NATO.

Os críticos disseram que não é só com dinheiro que se moderniza a "Bundeswehr" (serão necessárias também reformas estruturais). Há ainda quem tema a "remilitarização" da Alemanha.

Mas Rafael Loss, investigador do Conselho Europeu de Relações Internacionais, não se aflige com este novo capítulo na história do país. "Não acredito que, com este fundo especial de 100 mil milhões de euros para a 'Bundeswehr', alguém parta do princípio de que a Alemanha esteja a entrar num frenesim militarista-nacionalista", diz Loss em entrevista à Renascença.

Os Verdes, antes assumidamente pacifistas, parecem já ter entrado serenamente na nova era, onde a corrida às armas é aceitável pela defesa da democracia, "contra ditadores e déspotas". Mas no SPD, as vozes dissonantes têm soado mais alto.

Jessica Rosenthal, deputada e líder da juventude social-democrata, os Jusos, disse no início de março que estava contra o investimento de 100 mil milhões no Exército. Defendeu "o mínimo necessário" de despesas militares. Contactada pela Renascença, a assessoria de Rosenthal disse que, atualmente, a deputada "não se pronuncia" sobre a entrega de armas alemãs a Kiev, nem sobre o "papel do SPD" face à crise ucraniana.

Dívida histórica

Além de tudo isto, a Alemanha enfrenta outro dilema: blindados alemães a combater tanques de Moscovo é uma imagem que Berlim tem querido evitar.

A Alemanha não esquece o sacrifício da antiga União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. O Exército Vermelho foi determinante para esmagar a ditadura nazi de Adolf Hitler.

"Até hoje, essa vitória serve como fundamento internacional da autoridade moral da Federação Russa e é um dos principais pilares da identidade russa", escreveu em 2018 Dmitri Trenin, ex-diretor do centro de pesquisa Carnegie Center em Moscovo.

O preço que a União Soviética pagou (não só a Rússia, mas também os outros Estados que lhe sucederam) foi o mais pesado de todos - estima-se que um quarto da sua população morreu ou ficou ferida durante a Segunda Grande Guerra; 11 milhões de soldados foram mortos.

Os laços da Alemanha com a Rússia são muito antigos. A imperatriz Catarina, a Grande, era de origem alemã. Karl Marx nasceu em Trier e estudou em Bona, no oeste da Alemanha. Ainda hoje se usam palavras alemãs na Rússia: "Zifferblatt", o mostrador do relógio, diz-se da mesma forma em alemão e russo. Estação de correios - "Postamt" - também é uma palavra idêntica. O alemão é, depois do inglês, a língua mais ensinada na Rússia.

São laços culturais e históricos que Berlim valoriza. O Ministério alemão dos Negócios Estrangeiros diz, no entanto, que invasão da Ucrânia a 24 de fevereiro "ofuscou" as relações com Moscovo.

Como será o posicionamento do Governo alemão daqui para a frente?

"Na Alemanha, não se coloca sequer em questão que o país é parte integrante da União Europeia e da NATO, e que está em estreita coordenação com os seus aliados na América do Norte e na Europa", refere o investigador Rafael Loss.

O que se espera, acrescenta Loss, é que Berlim assuma uma posição de liderança que "tem recusado" até aqui.

Por outro lado, além de pensar na economia, será preciso também que o país se debruce mais sobre as ramificações geopolíticas de cada decisão que toma, diz o investigador.

"Creio que é difícil para a Alemanha acostumar-se à ideia de que Putin tem de perder esta guerra para garantir a segurança europeia a médio e longo prazo. Acredito que, para isso, é preciso um apoio maior à Ucrânia."

Para já, Berlim parece continuar a seguir uma estratégia antiga - parar, escutar e olhar antes de tomar uma decisão. O máximo de tempo possível.

"Creio que é um legado da era Merkel, de 16 anos", comenta o professor Andreas Heinemann-Grüder. "Houve sempre uma gestão de crises e nunca uma previsão estratégica. [O Governo] reagia quando havia uma crise, mas o horizonte temporal do pensamento político em Berlim é bastante limitado. É essa a cultura que impera na chancelaria federal e nos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa."

É outro dilema alemão.

Comentários
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  • João Lopes
    29 abr, 2022 Porto 18:04
    O Presidente alemão deveria demitir-se.

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