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Entrevista

“A Ucrânia é aprendizagem para Pequim. A China está atenta à lição”

25 mar, 2022 - 23:02 • José Bastos

“A Rússia exibe a força. A China exibe a sabedoria. Pequim só pensa em si própria, mas partilha com Moscovo a perceção de que o Ocidente é, no geral, hostil aos seus interesses”, defende o sinólogo Jorge Tavares da Silva

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Entrevista a Jorge Tavares da Silva
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“Inquebrável”, “sólida como uma rocha” e “ilimitada”. A 4 de fevereiro os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da China, Xi Jiping reunidos em Pequim para assistir à abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno assinavam um comunicado conjunto, adotado neste tom hiperbólico para assinalar o melhor momento em 70 anos nas relações de Pequim de Moscovo.

20 dias depois a invasão da Rússia à Ucrânia representa o primeiro grande teste a esta aproximação entre Xi Jiping e Putin, no seu desejo de construir uma frente face a um inimigo comum, os Estados Unidos.

A relação entre a Rússia e Pequim fortaleceu-se nos últimos dez anos e a sintonia ficou clara, ainda a 4 de fevereiro, quando expressaram a rejeição conjunta à NATO. Esta cumplicidade fez muitos duvidarem de até que ponto Xi Jiping era conhecedor dos planos do Kremlin e desenharam-se análises sobre uma hipotética ação chinesa em Taiwan, que Pequim considera parte do seu território, tomando como referência a ofensiva russa.

Desde o início da agressão de Putin, a comunidade internacional tem tentado entender qual é a verdadeira posição da China. A potência asiática tem estado próxima do Kremlin, mas a China é também o maior exportador para os Estados Unidos e o principal parceiro comercial da Europa e da Ucrânia, uma possível explicação para manter uma postura ambígua.

A China pode ter uma ação determinante neste momento de enorme tensão. Se Pequim alinhar ao lado do Ocidente, a Rússia perde um apoio chave. Se assumir uma posição totalmente a favor do Kremlin, os efeitos geopolíticos da guerra são outros. Quais são os interesses chineses nesta crise?

A análise é do cientista político Jorge Tavares da Silva, fundador do Observatório da China, investigador académico na área da Resolução de Conflitos internacionais e professor de Estudos Chineses na Universidade de Aveiro.

A atitude de Pequim nesta crise é a aplicação prática da estratégia tradicional chinesa: ficar equidistante, não assumir uma posição de relevo e tentar extrair as maiores vantagens possíveis do contexto

A China adotou uma posição de neutralidade no conflito, uma espécie de "neutralidade estratégica", ora defende a integridade territorial da Ucrânia, ora parece simpatizar com os motivos invocados por Putin. Até quando a China pode continuar em cima do muro sem cair para um dos lados?

A China tem uma posição de neutralidade no conflito entre a Ucrânia e a Rússia, mas é uma atitude que já vimos repetida noutros cenários internacionais. No fundo, é a 'ambiguidade estratégica'. Na verdade, a China procura, e tem procurado sempre, retirar dividendos deste tipo de incidente internacionais. Pequim, na verdade, não toma uma posição ostensiva por qualquer dos lados.

É um pouco a aplicação prática da estratégia tradicional chinesa, se formos lá atrás ver os manuais que ensinam isso: ficar equidistante, não assumir uma posição de relevo e tentar extrair as maiores vantagens possíveis do contexto. É isso que está a acontecer com Pequim. No momento inicial verificou-se que Pequim se aproximou de Moscovo.

É importante contextualizar, foi um momento emotivo, tendo como pano de fundo os Jogos Olímpicos de Inverno que os Estados Unidos boicotaram e a China estava, de alguma forma, melindrada, criando uma boa ocasião de Moscovo se aproximar de Pequim. Tratou-se de uma aproximação interessante, porque foi no outro contexto da crise da invasão da Crimeia 2014 que a China aproveitou para uma maior proximidade a Moscovo.

Mas sublinhe-se: a relação sino-russa não é uma aliança e, muito menos, uma ligação forte. É tão só uma ligação que se reforçou num quadro de interesses mútuos muito localizados.

Indica um momento pouco lembrado: o presidente Xi recebeu Putin em Pequim para a abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno a 4 de fevereiro, a escassos 20 dias da invasão da Ucrânia. É crível que Putin nada tenha dito a Xi dos seus planos para invadir a Ucrânia?

Vamos tentando descobrir até onde terá ido essa informação. Os indícios apontam para que Xi Jiping talvez soubesse que do ponto de vista militar algumas ações poderiam estar iminentes em regiões mais fronteiriças, mas julgo que Xi Jiping não estaria seguro de uma invasão armada nos termos e graus em que aconteceu.

Qual é o elemento principal que nos indicia este quadro? É a forma tardia com que a China ordenou a operação de recolha dos seus cidadãos da Ucrânia, cerca de 6 mil, sendo das últimas nações a proteger os seus cidadãos, o que pode revelar não estar totalmente ciente do que se iria passar.

A ter sido assim, também fica demonstrada uma quebra de lealdade de Moscovo, o que não é exatamente uma novidade porque China e Rússia são duas nações que, no passado, já competiram mais do que propriamente estiveram aliadas.

A ser real esse cenário de eventual desconhecimento parcial, quão desconfortável pode ter ficado o presidente Xi em não saber antecipadamente da totalidade dos planos de Putin?

A eventual falta de informação terá, por um lado, criado esse desconforto ao presidente chinês, mas, por outro a Rússia 'perde' a China.

Perde como? Perde, porque, entretanto, segundo algumas notícias, há um conjunto de empréstimos que já não estão a ser feitos - enfim, podem estar a ser realizados, mas de forma dissimulada, ainda não o sabemos - não está a ser protegido o rublo e material aeronáutico - peças para a aviação comercial - não está a ser fornecido à Rússia.

Portanto, há algum impacto negativo dessa eventual omissão de Putin com Xi Jiping neste contexto das relações sino-russas.

Voltando à atitude chinesa na invasão da Ucrânia que, nalguns círculos ocidentais, tem sido descrita como uma 'neutralidade pró-russa' e a própria formulação paradoxal do conceito revela a magnitude das tensões e contradições da posição chinesa. A China exercita este equilibrismo para salvaguardar interesses conflituantes entre si - defesa da integridade territorial por causa de Taiwan ou a parceria estratégica com a Rússia - qual é o elemento mais importante na relação China-Rússia antes da invasão? É a visão comum, partilhada em Pequim e Moscovo de que o Ocidente, no geral, é hostil aos interesses de ambos? É este o grande eixo de aproximação entre a China e a Rússia?

É exatamente. É um dos principais elementos na aproximação. Vamos chamar-lhe a criação de uma ordem internacional alternativa a não passar pela hegemonia americana, ao contrário inclui a ‘desdolarização’ do sistema financeiro internacional e o reforço do yuan, a moeda chinesa. Uma ordem que não passa pelo domínio dos Estados Unidos em instituições internacionais, particularmente a NATO e, portanto, olhar para o mundo em vias de desenvolvimento e, o que não deixa de ser curioso, tentar tornar o sistema 'mais democrático' do ponto de vista da representatividade internacional.

Podemos simplificar: temos um mundo livre, de um lado, e um mundo das autocracias onde estão alinhadas estas duas potências, China e Rússia. Este é o ponto central desta 'frente unida' face a Washington e é muito claro nos dois países, Rússia e China. Por outro lado, elemento importante não é tanto a questão energética - gás e petróleo - nem o comércio residual entre Pequim e Moscovo, mas sim o elemento militar. Isto é, alguma tecnologia militar russa de ponta que, entretanto, a China, com a sua velha estratégia de transferência de tecnologia e depois da Rússia ter sofrido as sanções por causa da Crimeia, ficou com acesso privilegiado a esses avanços tecnológicos.

Estes dois elementos são os fundamentais na relação Pequim e Moscovo: a questão da nova ordem internacional e a questão de transferência de conhecimento na questão do armamento que está a ser muito útil a Pequim na criação de modelos chineses de tecnologia russa que até encerram a contradição de até servirem de elemento concorrência em mercados onde a Rússia vende armamento, o Paquistão é um desses casos de concorrência direta da China à Rússia.

A China não quer prejudicar as relações económicas que lhe são primordiais não só com os Estados Unidos, 20% do total das exportações chinesas, bem como com a própria União Europeia onde negoceia com países como a Alemanha, o principal parceiro comercial da China no espaço comunitário

A invasão da Ucrânia está a unir os Estados Unidos à Europa e reforça a NATO. A Europa vive o seu 'momento 11 de Setembro' e parece ser inevitável o acentuar da dinâmica distinta na ação democracias liberais Vs autocracias. Na perspetiva da China, o país que mais prosperou com a era dourada da globalização, e porque não se pode dar ao luxo de alienar a sua relação comercial com o Ocidente, o quadro não deixa de ser preocupante?

Comecei por sublinhar que numa fase inicial houve uma aproximação sino-russa, mas, entretanto, dentro da 'ambiguidade estratégica' de que tenho vindo a falar, a China foi-se afastando de um ponto de excessiva proximidade com a Rússia tentando acentuar a sua 'neutralidade mais neutra'... se a expressão pode ser utilizada.

A China 'desligou-se' de maneira mais expressiva da Rússia, precisamente para não prejudicar as relações económicas que lhe são primordiais não só com os Estados Unidos, 20% do total das exportações chinesas, bem como com a própria União Europeia onde tem países como a Alemanha, o principal parceiro comercial da China no espaço comunitário.

Mas para o país que mais enriqueceu com a globalização uma reconfiguração da ordem internacional que leve a blocos mais fechados e novas alianças é o pior dos quadros e, insisto, ao não saltar do muro a China não está a agravar este problema de neutralidade contraditória?

Há uma grande diferença entre a 'atitude clássica' dos Estados Unidos e da China. No fundo, enquanto os Estados Unidos constroem uma ordem internacional alicerçada em instituições e participações em projetos de âmbito comum, a China, embora vá participando nesses projetos, tem uma visão de uma ordem internacional muito voltada para dentro, muito centrada em si mesma. É uma posição da China evidente na questão do discurso de defesa da paz mundial.

A verdade é que Pequim defende a paz, mas não diz como é que a paz mundial deve ser garantida. Afinal, para construir a paz é preciso tomar medidas e atuar. Mas não. Pequim defende um sistema de paz, um sistema multilateral, mas carecendo de uma componente prática que confira soluções para essa construção de paz. Portanto, a China fica sempre numa situação um pouco híbrida. Porquê? No fundo, porque Pequim permanece sempre, como tem feito ao longo dos anos, centrado na defesa do seu próprio conjunto de interesses.

É quase a visão de uma ordem internacional moldada aos interesses de Pequim a que obedece a lógica de criação de todas as instituições internacionais com envolvimento chinês, como a Organização para a Cooperação de Xangai, OCX, e outras. São organizações para a defesa de uma certa ordem chinesa centrada em si própria. Com esta atitude, o mundo tenderá a dividir-se quase em dois blocos na que deverá ser a tendência para os próximos anos.

Já depois da abstenção na ONU, a China fez um aceno à Ucrânia, há um telefonema entre os ministros dos estrangeiros de Pequim e Kiev em que, sem condenar a Rússia, Wang Yi expressou solidariedade a Dmitro Kuleva e se confessou muito preocupado com o que está a acontecer à Ucrânia e aos civis ucranianos. Qual é a importância da Ucrânia do ponto de vista das vantagens económicas?

A Ucrânia é um parceiro relativamente importante no âmbito de quase todas as dinâmicas económicas e comerciais da China, mas, sobretudo, em duas áreas fundamentais, uma do ponto de vista tecnológico nos sistemas de motores de turbina a gás - que alimentaram muita da indústria de guerra chinesa - e não esquecer que o primeiro porta aviões chinês, um símbolo nacional o "Liaoning", primeiro porta-aviões construído na Ásia depois da segunda guerra mundial, - tem origem ucraniana, donde há uma cooperação militar e tecnológica interessante entre Kiev e Pequim.

Curiosamente a China tentou adquirir algumas empresas ucranianas ligadas a estes setores tecnológicos, mas esse acesso foi vedado, mas a cooperação é forte. Depois tem outra área muito forte, a da agricultura e da produção cerealífera. A Ucrânia é na produção de cereais um celeiro para muitos países e, em particular, para a China. Há empresas chinesas muito envolvidas.

A COFCO Group (China Oil and Foodstuffs Corporation) ligada aos bens alimentares e que tem desenvolvido infraestruturas nos portos perto de Odessa e é por ali que se escoavam os cereais para o mercado chinês. A produção agrícola na China foi má no último ano e o próprio vice-presidente Li Xiang disse abertamente, numa sessão plenária bi-anual do Congresso do Povo, ser importantíssimo para os chineses terem alimentos na mesa, sinal da preocupação no acesso a estes bens.

A Rússia exibe a força, a China exibe a sabedoria. Esta é a grande diferença. Nos espaços geopolíticos, a Rússia tem uma influência essencialmente regional, a China tem um projeto internacionalista e terá a ganhar também com a tragédia russa que é também muito a vantagem da China. O recuo estratégico de Pequim é instrumental para que essas oportunidades não sejam comprometidas

Com uma economia dez vezes maior que a Rússia, a China pode ser o maior apoio a Moscovo para suavizar os efeitos das sanções internacionais ao regime de Putin? No futuro, a China pode ‘satelizar’ a Rússia no plano económico?

Não creio que vá acontecer no apoio à Rússia para contornar os efeitos das sanções. A China continua com esta neutralidade que, no fundo, pretender agradar a todos. A China está muito interessada em que o regime russo não caia, porque, apesar de tudo, é um bom parceiro.

Mas não é do interesse de Pequim monetarizar em yuans e rublos a compra de energia e secundarizar, deixando de lado a dependência, das transações em dólares?

Isso já está a ser feito e pode ser que seja ampliado. E neste processo de sanções do Ocidente à Rússia mais uma vez a China deverá tirar proveito. Uma dessas grandes vantagens que a China irá extrair é comprar petróleo e gás russo a um valor muito mais reduzido. Outra das vantagens é impor a sua moeda, o yuan, ao rublo russo que em queda de cotação, ou não sendo protegido, verá o yuan ser imposto nas trocas comerciais da China com a Rússia.

A China vai também tirar óbvias vantagens do ponto de vista geopolítico, porque, apesar de tudo, há muita competição entre Moscovo e Pequim no plano da influência na região, em particular na Ásia Central, são parceiros estratégicos, mas também são, de alguma forma, competidores e a China olha para a Rússia como um parceiro menor, um parceiro essencialmente regional de projeção de força.

A Rússia exibe a força, a China exibe a sabedoria. Esta é a grande diferença entre os dois. Do ponto de vista da ocupação de espaços geopolíticos, a Rússia tem uma influência essencialmente regional, a China tem uma presença que - embora seja também regional - ultrapassa em muito esse âmbito, é global, tem um projeto internacionalista desse ponto de vista e terá a ganhar também com a tragédia russa que é também muito a vantagem da China. Por isso é que há o recuo estratégico de Pequim, recuo instrumental para que essas oportunidades não sejam comprometidas.

O pior que podia acontecer à China era uma ampliação das sanções ao eixo Moscovo-Pequim, seria trágico para os dois e seriam dificeis de prever as consequências. Já no contexto atual a China não perde, porque acabou de ficar numa situação cómoda que lhe permite retificar a rota, este alinhamento com Moscovo.

Mais do que uma ordem mundial edificada à volta de esferas de influência com a China a controlar a Ásia, a Rússia com veto sobre alianças de segurança na Europa - o verdadeiro interesse estratégico da China é manter o seu crescimento económico e impedir a possibilidade de um bloqueio económico pelo Ocidente, no geral, e Estados Unidos, em particular? Este é o grande objetivo estratégico de Pequim?

Claramente a China pensa em si própria. Ponto. A China vive e alimenta-se da sua centralidade, enquanto civilização. O projeto chinês de ligação ao mundo é pensado com a China no centro de tudo. De resto, eu costumo acentuar esta diferença entre o projeto transformativo dos Estados Unidos no mundo, uma construção um pouco à sua imagem, ir a um país e tentar influenciar uma transformação do sistema político a favor dos valores ocidentais, mas a China já não opera assim.

A China não transforma diretamente cenários internacionais, antes faz projetos como a nova rota da seda e procura condicionar esses países aos seus próprios interesses económicos, com a ligação última sempre centrada em Pequim. Esta é a visão chinesa e será a realidade que vamos ter nos próximos tempos. A China não aceita de forma alguma ingerências externas, pressões vindas de outro lado e está sempre muito focada nos seus próprios interesses nacionais.

A China lida sempre mal quando há qualquer tipo de sugestão, de proposta exterior, por isso, é que não lida bem com as sanções, por isso é que nunca lidou bem, historicamente, com a Rússia, outra potência imperial que também não admitiu ingerências excessivas. Veja-se: até quando o comunismo chegou a China adaptou-o à sua realidade. Qualquer proposta do mundo das ideias universal é moldado à realidade chinesa. É sempre o ‘mundo chinês’ que prevalece. Esta é uma enorme diferença para o Ocidente.

O que a China pretenderá é que o regime russo não caia e que, evidentemente, o conflito se resolva e a guerra acabe, mas num contexto em que possa manter um parceiro estratégico em Moscovo com que possa contar para defender os seus interesses. Esta é a principal preocupação da liderança chinesa

O professor Jorge Tavares da Silva também faz investigação académica na área de resolução de conflitos à medida a que a guerra na Ucrânia se possa prolongar qual poderá ser a contribuição, se alguma, do pragmatismo chinês na busca de uma solução de paz. O saber milenar de Sun Tzu continua a ser citado - e defendia que quando se encurrala um inimigo poderoso deve-lhe ser dada uma ponte dourada para retirar - que ponte pode ser essa do ponto de vista de Pequim?

Estou mesmo convencido de que a defesa de uma saída, de alguma forma airosa" para o líder russo será um dos princípios a ser defendido por Pequim e Xi Jiping. O que a China pretenderá neste momento é que o regime russo não caia e que, evidentemente, o conflito se resolva e a guerra acabe, mas num contexto em que possa continuar com um aliado em Moscovo - no sentido de parceiro estratégico, porque a China não tem aliados - uma parceria forte com que Pequim possa contar para defender os seus interesses no quadro internacional. Esta será a principal preocupação da liderança chinesa.

Também é claro que a China só vai ter um papel ativo nesta guerra, ou em qualquer outro conflito internacional, depois de ter feito uma análise ao seu mapa de interesses e concluir que o conflito prejudica mais os seus interesses do que se se mantiver numa posição de ambiguidade. Nesse cenário de avaliação de custos/benefícios, aí sim, a China atua. Até que essa ponderação se conclua, a China ficará sempre a tentar extrair ganhos.

No fundo, é a atitude que sempre teve lugar. No 11 de Setembro de 200, Pequim obteve ganhos. Em todos os acontecimentos internacionais definidores a China fica sempre numa atitude de ver o que acontece para poder extrair vantagens.

Por último, e não menos importante, a guerra da Ucrânia vai fazer com que se fale menos de Taiwan, "a ilha do desassosego", nos próximos tempos? A China continua a tentar evitar uma "Nato asiática", assim lê, não só a prioridade dada por Biden à área indo-asiática com alianças como a AUKUS ou a ativação do QUAD?

Esta guerra na Europa entre a Ucrânia e a Rússia vai, de fato, desviando atenções da Ásia-Pacífico. Este é um dos grandes ganhos já imediatos da China com o conflito, quando antes estava tudo com os olhos muito mais centrados na periferia chinesa. Portanto, por aí já está a ganhar algo do ponto de vista estratégico. É preciso ainda perceber que foram concluídas, há dias, as obras de transformação em bases navais de um conjunto de ilhas e recifes no mar da China. Entretanto, o ministro dos negócios estrangeiros chinês esteve recentemente envolvido numa série de atos de cooperação com o Paquistão e em diálogo com o mundo islâmico que também está a ter lugar.

Este é um pouco o angulo morto da análise dos últimos tempos: há coisas a acontecer e não se está a olhar. Na próxima semana, um pouco neste contexto de tensão na Ásia-Pacífico vai ter lugar uma operação de exercícios militares de larga escala entre forças das Filipinas e dos Estados Unidos, mas não está a ser noticiado. Taiwan é um pouco o angulo morto da análise dos últimos tempos: há coisas a acontecer e não se está a olhar. Há uma dinâmica em curso na Ásia-Pacífico, mas no último mês o mundo tem estado centrado neste conflito na Europa.

No caso de Taiwan, os habitantes da ilha estão verdadeiramente preocupados com o que está a acontecer na Ucrânia, porque são acontecimentos que indiretamente remetem para o seu próprio cenário interno, mas, desta vez, com um elemento de algum conforto: é que o mundo reagiu contra a invasão da Ucrânia. Há uma movimentação internacional relevante, vozes que se levantaram contra a guerra e, de alguma forma, pode inibir a China quanto a planos mais imediatos para Taiwan.

Com a guerra na Ucrânia a situação de Taiwan ficou, do meu ponto de vista, em 'pausa', à espera do desenvolvimento de outros contextos e a China tenderá, nos próximos tempos, a uma linha de continuidade, uma política sem alterações substanciais à posição anterior. Essa atitude terá a ver, precisamente, com o grau desta mobilização internacional por causa da Ucrânia.

A China terá ficado 'assustada' pela forma como o mundo tem reagido, uma mobilização que não teve lugar por causa de Hong Kong, ou por causa da Crimeia em 2014. De silêncio em silêncio a China ia observando e, talvez, se o mundo não reagisse a uma intervenção na Ucrânia...A Ucrânia é uma aprendizagem para Pequim. A China está atenta à lição.

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