Henrique Burnay: “A Ucrânia tem lugar na Europa? Sim. Deve entrar na UE? Um dia, talvez possa”

01 mar, 2022 - 22:00 • José Bastos

No dia em que o PE deu a luz verde para ser concedido o estatuto de país candidato à adesão, o consultor Henrique Burnay analisa as várias fases da aproximação de Kiev a Bruxelas e responde à questão: está a nascer a ‘Europa geopolítica’?

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Henrique Burnay: “A Ucrânia tem lugar na Europa? Sim. Deve entrar na UE? Um dia, talvez possa”
Entrevista a Henrique Burnay sobre a situação na Ucrânia

"Demonstrem que a União Europeia está com a Ucrânia e não a abandonará". Volodimyr Zelensky podia tê-lo dito mais alto, mas não mais claro. O presidente ucraniano pediu novamente, esta terça-feira, a inclusão do seu país num discurso por videoconferência para o parlamento europeu.

Zelensky, que diz esperar a aceitação da adesão imediata da Ucrânia, fez notar que a via europeia é "a opção" da população ucraniana, depois da invasão em curso por parte do exército russo.

"Estamos a resistir e lutar para sermos membros de pleno direito da União Europeia. Estou convencido de que estamos a mostrar ao mundo o que são os ucranianos, o que é a Ucrânia. A União Europeia será cada vez mais forte, mas sem vocês a Ucrânia vai ficar isolada. Provem que não nos vão abandonar", apelou Zelensky numa intervenção de grande densidade política e emocional.

Na análise de Henrique Burnay, cientista político, especialista em Políticas Públicas e consultor em matérias europeias, o processo de adesão à União Europeia é recheado de dificuldades, o momento é complexo no plano militar, mas “fez sentido o pedido de adesão à EU, um pedido que é também um escudo militar com enorme peso simbólico”.

“O que acho estar a acontecer? O presidente da Ucrânia está – inteligentemente – a tirar partido, e bem, da situação trágica que se vive para dizer: ‘a ver se é desta que nos abrem a porta”, sublinha Henrique Burnay, defendendo que a Europa reage bem às perguntas do momento, respondendo um ‘sim’ e um ‘talvez possa’, porque não faz sentido “uma resposta negativa num momento destes”.

À pergunta de fundo: 'a Ucrânia pode ter um lugar na Europa?' a resposta que está a ser dada é: 'sim'. À pergunta seguinte: A Ucrânia deve entrar na UE?' a resposta que vai ser dada é 'um dia, talvez possa'. O que se quer evitar é que se formule uma pergunta demasiado ostensiva do tipo: 'mas pode entrar já rapidamente?' porque aí a resposta seria: 'não!". E não faz sentido dar uma resposta negativa num momento destes.
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"Há dias em que os políticos falam mais para os livros da História que para as atas das sessões parlamentares", na frase do diário El Pais sobre o discurso do presidente Zelensky ao parlamento europeu. Subscreve esta visão particular no dia em que o hemiciclo deu o seu apoio á abertura do processo para conceder o estatuto de país candidato à União Europeia?

Percebo o sentido mais amplo da observação. Faz sentido. Eu tenho achado que nós estamos, de alguma maneira, numa espécie de regresso a 1989/90 com mais violência e, portanto, com mais emoção.

Em 89/90 vimos o muro cair e vimos gente do lado de lá a correr literalmente para os braços do Ocidente e, portanto, respondemos com um 'obviamente entram'. Enfim, com algumas discussões pelo meio, mas a resposta substantiva era: 'esta gente tinha lutado na clandestinidade, tinha sofrido, quando pôde quis aderir ao Ocidente, e a resposta foi: entrem. São benvindos'.

O discurso do presidente Zelenski hoje no Parlamento Europeu teve dois momentos importantes para perceber isto tudo. Um momento é quando o presidente ucraniano diz que o que está em causa é a escolha europeia da Ucrânia. No fundo, remete para tudo o que tem acontecido desde 2004. Não podemos esquecer o que aconteceu desde 2004 até aqui e, a certa altura, refere: 'nos estamos a pagar o preço da liberdade'. Aquela ideia de liberdade com 'L'.

E é impressionante que o intérprete que estava a traduzir o discurso do presidente Zelenski fica com a voz embargada e percebe-se que se comove. Percebe-se que há um soluço, próprio de quem está a chorar. Acho ser a prova mais óbvia de que, de fato, há aqui um lado emocional que me parece recordar, e alguma maneira, 1989 só que com uma violência muito maior, porque em 89/90, apesar de tudo, as pessoas tinham corrido riscos de vida antes, mas não estavam a ser atacadas naquele momento. As pessoas atravessaram o muro sem correr riscos.

Mas, neste momento, não só nesse sentido estamos em 89/90, há gente a querer muito vir para o lado de cá do mundo, querer viver como nós, quer ter esta liberdade ocidental e europeia, mas, por outro lado, parece que estamos em 1939, porque estão a ser atacados como, no fundo a Polónia diz. Quando se pergunta à Polónia porque se está a portar como está a resposta é: 'porque ninguém fez o mesmo por nós em 1939'. Isto para dizer: claro que há aqui uma grande dose de emoção, mas é importante, apesar de tudo, sublinhar dois ângulos.

Um: um não é a primeira vez que a Ucrânia diz querer entrar para a União Europeia. Em 2014 o presidente Barroso já havia dito: 'sim senhor, a Ucrânia, como outros países que tenham um olhar europeu, tem um lugar na Europa’. O presidente Juncker tinha chegado mesmo a dizer que esperava que a Ucrânia estivesse em condições de pedir a adesão à UE em 2023 e que pudesse aderir em 2030. Nada disto é completamente estranho, entretanto, o que aconteceu é terem surgido várias circunstâncias a tornar a adesão impossível.

O que acho estar a acontecer? Neste momento, o presidente da Ucrânia está - inteligentemente - a tirar partido - e bem - desta emoção para dizer: 'a ver se é desta que nos abrem a porta'.

...de resto, já o havia feito, há 10 dias em Munique, ainda antes da invasão, sem calendário e sem resposta. Mas se Zelensky diz que agora em guerra, mais que nunca o futuro da Ucrânia depende da União Europeia, a UE não tem uma 'dívida moral' para com Kiev? Afinal, a aproximação de Kiev a Bruxelas em 2013 foi o rastilho da primeira agressão russa neste século. A UE não deveria ter ido mais longe do que foi de 2013 até agora?

Voltando ao discurso de hoje do presidente Zelensky no parlamento europeu, há vários aspetos importantes e que marcam o que está acontecer. A certa altura, Zelensky diz: 'nós já passamos por duas revoluções, uma guerra e agora uma invasão total'.

No fundo, o presidente Zelensky está a referir-se á revolução laranja, na sequência da deposição do presidente Viktor Yushchenko que em 2004 sucedeu a Kuchma pró-russo e foi deposto para o primeiro mandato de Yanukovich pró-Moscovo Viktor Yushchenko que, recordo, a certa altura aparece envenenado com visíveis marcas físicas do envenenamento.

Temos então a revolução laranja, depois temos em 2013 a revolução da praça Maidán e, depois, Yanukovich, pró-Rússia, é afastado pela segunda vez. A resposta seguinte a esta revolta foi a invasão russa da Crimeia. O meu ponto é este: de cada vez que a Ucrânia se aproximou da União Europeia a Rússia escalou a resposta.

Agora, em relação à 'dívida moral' há aqui duas coisas: acho que é o regresso a 89/90 no sentido 'eles querem tanto viver como nós, como somos capazes de dizer não?' quando ainda por cima estão dispostos a morrer. Enfim, não estou a dizer que é uma espécie de modelo ocidental perfeito, mas é o melhor que se arranja.

O dever moral é um pouco esse, o de não podermos andar a defender e apoiar um modelo em que as sociedades vivem bem e prosperam em paz e, depois quando dizem 'só estando dentro é que estamos protegidos' nós respondermos com um 'não, nem pensar'.

Mas há algo que não podemos esquecer. Há uma semana o ponto de que se falava na Europa era de haver quem quisesse suspender da UE, mas havia mesmo quem falasse de expulsar, dois estados-membros (Polónia e Hungria) por comportamentos desalinhados com os princípios e valores fundamentais da União Europeia. Um desses estados (Polónia) está a ter neste momento um papel importantíssimo nesta crise.

Mas, atente-se como o pêndulo da opinião tem tamanha variabilidade. Há uma semana havia gente capaz de dizer 'deve-se expulsar' e até há uma semana havia muita gente a dizer 'os alargamentos em espera - por exemplo, Albânia, Macedónia do Norte, Montenegro, etc - não são para fazer, não há capacidade de absorção'.

Ursula Von Der Leyen voltou a pronunciar hoje a frase de domingo à Euronews, os ucranianos são dos nossos e queremos que estejam dentro”. Já Josep Borrel disse que se esta a assistir “ao nascimento da Europa geopolítica” - ele que no domingo dizia que “a questão não está na agenda, a adesão demoraria anos e o que se necessita são respostas para as próximas horas, não para os próximos anos… A verdade é que oito países da Europa Central e de Leste com a Polónia à cabeça, a Hungria juntou-se hoje, defendem reconhecer de imediato a candidatura da Ucrânia, mas uma maioria das capitais parece considerar o debate como prematuro e defende maior prudência - objetivamente os chamados critérios de Copenhague são muito apertados… e a Ucrânia não cumpre muitos deles. Como sair ‘em modo real-politik’ deste complexo equilíbrio razão vs emoção ?

Uma das marcas da excecionalidade desta última semana, sobretudo à luz destes últimos dias, é termos tido a oportunidade de fazer alguns elogios à Europa.

Acho que a Europa está aqui a reagir bem. Isto é, à pergunta de fundo: 'a Ucrânia pode ter um lugar na Europa?' a resposta que está a ser dada é: 'sim'.

À pergunta seguinte: A Ucrânia deve entrar na UE?' a resposta que vai ser dada é 'um dia talvez possa'. O que se quer evitar é que se formule uma pergunta demasiado ostensiva do tipo: 'mas pode entrar já rapidamente?' porque aí a resposta seria: 'não!". E não faz sentido dar uma resposta negativa num momento destes. Há perguntas que é melhor não fazer, porque sabemos que a resposta não é positiva.

Agora, o que não quer dizer que não tenha feito todo o sentido o presidente Zelensky ter assinado o pedido de adesão à União Europeia. Repare-se: este pedido também é um escudo militar que o presidente da Ucrânia arranjou. Apesar de, nestas coisas, não haver nenhum tratado que o proteja mais por causa disso, do ponto de vista político e simbólico, para todos nós, um país que pede a adesão à União Europeia estar a ser bombardeado é diferente de um outro país sem essa proximidade. Esta forte simbologia é válida para todos nós e para os políticos europeus.

Agora, o Alto Representante Josep Borrell tem razão, porque acho absolutamente extraordinário que os países da União Europeia tenham decidido contribuir para o esforço de guerra ucraniano enviando dinheiro e material militar. Acho tão mais extraordinário ter sido possível tomar-se esta decisão num instante do que se discutir a adesão.

Atente-se que, no limite, se as coisas correm mal - oxalá não - e houver um governo fantoche em Kiev tudo isto volta para trás.

O alargamento de 2004 que resultou do período 1989/90 já foi, ele próprio, um gesto geopolítico. Foi um momento da máxima importância geopolítica e, atente-se, a Estónia, a Letónia e a Lituânia só estão hoje protegidas e têm a perfeita noção de que o seu fator de salvaguarda e resguardo é estar na União Europeia e na NATO. Portanto, já houve nesse alargamento da União de 2004 uma dimensão geopolítica

... Josep Borrell que, nas últimas horas, também veio dizer que se está a assistir ao nascimento da "Europa geopolítica' e o ponto é esse: a União Europeia está a assumir um papel proativo na defesa do seu modelo civilizacional com inúmeros exemplos de grande calado simbólico até isolados - a Alemanha com volta de 180 graus na sua política de defesa, Bruxelas a financiar material letal destinado a terceiros, a diretiva que acolhe todos os refugiados, etc - e isso quer dizer que se vê, finalmente, a emergir a potência geopolítica há tanto reclamada? Uma Europa que se agiganta quanto maior o desafio?

Há dois ângulos na resposta. Primeiro: o alargamento de 2004 que resultou do período 1989/90 já foi, ele próprio, um gesto geopolítico. Não foi um gesto apenas simbólico, já tinha ali uma dimensão geopolítica. Teve lugar, isso sim, há já muitos anos, mas foi um momento da máxima importância geopolítica e, atente-se, a Estónia, a Letónia e a Lituânia só estão hoje protegidas e têm a perfeita noção de que o seu fator de salvaguarda e resguardo é estar na União Europeia e na NATO. Portanto, já houve nesse alargamento da União de 2004 uma dimensão geopolítica.

O que acontece agora e nesse sentido a resposta é sim, é ter acabado o mundo em que vivemos de 1990 até 2022. Reconheço ser perigoso ter conclusões muito definitivas em cima dos acontecimentos, mas julgo ser razoável dizer que o mundo em que vivemos no pós-guerra fria, a convicção de que a expansão do comércio levava à expansão da democracia, da convivência, de que não haveria ameaças deste género entre países com um elevado grau de integração económica... todo este modelo foi agora posto em causa.

Este é um dos ângulos o outro é o de que todos temos noção de que não podemos desligar esta crise do que aconteceu no verão com o Afeganistão. Nem há um ano estávamos a notar que a saída dos Estados Unidos de Kabul, da maneira que teve lugar, queria dizer que a Europa teria de assumir maior responsabilidade pelo seu futuro. Portanto, a resposta a todas estás dúvidas parece ser:

1. O Ocidente não está em crise. Os valores ocidentais não estão em crise.

2. A União Europeia tem de contribuir para o esforço de defesa desse modelo ocidental de mundo e, de tal maneira percebeu isso, que até a Finlândia está disponível para aderir á NATO e a Suécia para enviar armamento letal. A Suécia costumava mandar dinheiro para a cooperação destinado a construir escolas em países em vias de desenvolvimento. Portanto, percebe-se que há um lugar no mundo que a Europa tem de ocupar, não sei de uma potência global, se de uma potência regional, mas que é um lugar diferente no mundo, isso é.

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