25 fev, 2022 - 21:53 • Xúlio Rios*
O agravamento da crise da Ucrânia com a invasão russa implica o fracasso dos apelos à moderação produzidos pela China. É certo que, nesta ocasião, Pequim se tem mostrado mais próxima das teses do Kremlin, alimentando a sua reivindicação de que a segurança deve ser indivisível, culpando Washington de desestabilizar a região e, no geral, responsabilizando os países ocidentais pelo desinteresse na aplicação efetiva dos acordos de Minsk.
Na cimeira mantida por Vladimir Putin e Xi Jiping por ocasião dos jogos Olímpicos de Inverno ficou evidenciada uma aproximação estratégica importante a partir da premissa partilhada de condenação da Nato. Quão terá influído este contexto bilateral Pequim/Moscovo na decisão final de Putin de invadir a Ucrânia? Putin já havia tomado a decisão por altura da cimeira com Xi Jiping? O encontro de Pequim traduziu-se num estímulo à invasão?
Mesmo agora, quando a invasão já é um fato consumado, a porta-voz do Ministérios de Relações Exteriores, Hua Chunying, colocou o acento tónico na condenação dos Estados Unidos por provocar a tensão. É que para a China, essa dinâmica sentida na Europa não é alheia à que se vive na Ásia-Pacífico: a ativação do QUAD, a criação do AUKUS e a nova estratégia anunciada pela Administração Biden para o Indo-Pacífico, a incluir a definição da China como o “principal desafio regional” e, subsequentemente, a firme aposta pelo que qualifica de políticas de “assédio e contenção”. Quando vires as barbas do teu vizinho a arder… Moscovo e Pequim partilham o mesmo interesse de afastar os Estados Unidos da sua periferia.
Mas a ação da Rússia na Ucrânia resulta muito incómoda para Pequim. Em primeiro lugar, a China proclama o respeito da soberania e da integridade territorial como pilares básicos da sua política externa. Pequim não reconheceu a anexação da Crimeia em 2014, nem tão pouco reconhecerá a de Donetsk e Lugansk, se formalmente concretizadas. O temor da China é que um passo em falso neste terreno possa algum dia vir a justificar que as potências ocidentais optem pelo reconhecimento de Taiwan como um país soberano.
A China vai procurar manter a calma, repetindo apelos ao diálogo e ao fim das hostilidades, sem condenar, nem apoiar abertamente o desenrolar dos acontecimentos. Num cenário muito desconfortável, a Pequim inquieta particularmente a hipótese de ser percecionada como um mero cúmplice de Moscovo e procurará manter a distância. Não tomando partido, desde logo, o que não será tão fácil como na crise de 2014, especialmente no plano do auxílio que possa prestar à Rússia para suavizar as duras sanções do Ocidente.
Uma das maiores preocupações da diplomacia chinesa tem a ver com esse efeito Moscovo nas relações com a União Europeia, há meses em processo de tentativa de retoma. Tem-se falado muito da inabilidade estratégica de Washington no confronto em simultâneo com a Rússia e a China, mas a crise da Ucrânia também irá acentuar a proximidade no Ocidente, algo que a China gostaria de diluir.
Pequim é o único grande Estado a abster-se de cond(...)
No diálogo recente com Emanuel Macron, à frente da presidência rotativa da União, Xi Jinping, por entre elogios ao ‘formato da Normandia’ (Alemanha, França, Rússia e Ucrânia) como via para se encontrar uma solução política e global para ultrapassar a crise, instava em paralelo ao impulso de uma agenda positiva que incluiria avanços na ratificação do acordo de investimentos que continua à margem. E assim vai continuar.
A China, portanto, caminha na corda bamba. A hipotética alegria de que esta crise possa desviar a atenção dos seus diferendos com os Estados Unidos, passando a Rússia a ocupar o primeiro plano, pode ser efémera se daí resultar o fortalecimento do mundo ocidental contra os seus rivais.
O teste do algodão será a atitude de Pequim face às sanções. Há espaço para admitir que a China não as desafiará e que vá optar por alternativas que não impliquem um confronto direto, com medidas que mitiguem o impacto sancionatório, talvez recorrendo às compras de energia, a principal fonte de riqueza da Rússia.
Mas quanto mais se agravar o conflito na Ucrânia, mais difícil será para a China caminhar sobre o fio da navalha. As vantagens estratégicas da crise são limitadas e poderão traduzir-se em perdas dolorosas com Pequim abertamente a favor de Putin e contra o Ocidente. O risco da China ampliar a brecha na relação com os países ocidentais é cada vez mais elevado e a única possibilidade de conjurar essa tendência seria que as reservas existentes quanto às ações de Putin se traduzam num distanciamento que recomponha a sua imagem global. Também por isso, a Ucrânia é um enorme teste e coloca muito à prova o entendimento estratégico entre Moscovo e Pequim.
*Diretor do Observatório da política chinesa do IGADI, Instituto Galego de Análise Internacional, autor do livro “A metamorfose do comunismo na China”, Ed. Kalandraka, 2021