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Guerra na Ucrânia

Chernobyl, o risco colateral na rota mais curta para Kiev

24 fev, 2022 - 23:51 • José Bastos

Cientista nuclear Bruno Soares Gonçalves, presidente do Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear, avalia os perigos de confrontos na periferia de Chernobyl na rota mais curta para Kiev.

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Chernobyl, o risco colateral na rota mais curta para Kiev

As forças russas terão já ocupado a área periférica da central nuclear de Chernobyl depois de o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, ter anunciado esta quinta-feira que o exército estava a tentar avançar sobre esse território a norte da capital. Numa publicação no Twitter o presidente escreveu a meio da tarde: “Forças russas estão a tentar ocupar Chernobyl”.

O presidente ucraniano relembrou o maior acidente nuclear de que há registo em abril de 1986, quando a Ucrânia ainda fazia parte da União Soviética sublinhado que os ucranianos “estão a dar as suas vidas para que a tragédia de 1986 não se repita” e que as ações russas são “uma declaração de guerra contra toda a Europa”.

Um conselheiro do ministério do Interior da Ucrânia, Anton Gerashchenko, já antes havia afirmado que havia registo de combates perto do depósito de resíduos nucleares de Chernobyl, a que a Rússia chegou a partir da Bielorrússia.

Nesta conjuntura de conflito militar, Chernobyl converteu-se num enclave militar estratégico. No sábado passado, a Agência Estatal Ucraniana para a Gestão da Área de Exclusão da antiga central nuclear havia anunciado a evacuação obrigatória da zona.

Tratava-se de um movimento chave para a estratégia de defesa ucraniana porque o complexo da antiga central nuclear está situada a apenas 17 quilómetros da fronteira com a Bielorrússia – país aliado de Putin no conflito – e está alinhado na via mais curto, apenas 70 Km entre o território bielorrusso e a capital ucraniana, Kiev.

Apesar da complexidade do terreno, por se tratar de uma área pantanosa e florestal, esta particular localização permite que Chernobyl esteja situada em pleno caminho mais rápido para a invasão das tropas russas ao território ucraniano.

“Não interessa se a área está contaminada ou se ninguém aqui vive” disse o tenente coronel Yuri Shakhraichuk, da guarda de fronteiras ucraniana, em janeiro ao The New York Times. “Trata-se da nossa terra, do nosso país e é nosso dever defendê-lo”, fez notar o militar Shakhraichuk.

Por seu turno, a Agência Estatal Ucraniana para a Gestão da Área de Exclusão havia decidido no sábado “a relocalização de todos os cidadãos” que se encontravam nas imediações de Chernobyl e determinou a proibição de qualquer visita à zona entre 20 de fevereiro e 20 de março como medida preventiva prevista no projeto de modernização do sistema de controlo e observação ambiental de radiação em todo o complexo.

O presidente da Agência Turística de Chernobyl, Yaroslav Yemelianenko, havia também determinado o encerramento ao turismo da área de exclusão a partir de 19 de fevereiro indicando na altura que “apesar da tensão crescente, havia um significativo número de ucranianos, estrangeiros e jornalistas interessados em visitar” a antiga central nuclear.

A explosão do reator central de Chernobyl ocorreu em 1986, forçando a evacuação da cidade de Pripyat e outras localidades periféricos e a criação de uma zona protegida. O reator que explodiu foi coberto por um sarcófago de betão, de forma a prevenir fugas de radiação.

Caso a central nuclear ou, em concreto o sarcófago nuclear seja atingido, a eventual fuga radioativa pode contaminar o ar, com consequências que ultrapassam a fronteiras da Ucrânia e podem afetar a própria Rússia e grande parte da Europa, é a tese defendida por Dmytro Gumenyuk, chefe de análise de segurança do Centro Científico e Técnico do Estado para a Segurança Nuclear e Radiológica no site britânico inews.

Já o cientista nuclear português Bruno Soares Gonçalves, presidente do Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear do Instituto Superior Técnico, descreve à Renascença “o armazém nuclear” de Chernobyl e admite que só num contexto fortuito é que se deve temer um evento perigoso na antiga central soviética. Não é impossível, mas será altamente improvável.

Chernobyl pode ser o grande risco colateral deste conflito?

Chernobyl está numa zona de exclusão e os resíduos que aí se encontram, apesar de perigosos, estão contidos e seguros. Relembro que em Chernobyl há cerca de 22 mil contentores especiais com combustível usado.

O combustível está encerrado e seguro, mas, por exemplo, um dos problemas associados é que esses contentores não são resistentes a fogo militar.

Por outro lado, há todo o sarcófago do reator e o novo sarcófago, o novo confinamento seguro, que protege cerca de 200 toneladas de material radioativo. Esse material está encerrado de maneira a impedir a libertação para a atmosfera de poeiras.

É uma grande estrutura com cerca de 36 mil toneladas e será bastante resiliente, mas obviamente, apesar destas estruturas serem muitas vezes pensadas para resistir a vários tipos de acidentes e impactos como embates de aviões, a sismos, e outros tipos de arremetidas, há sempre um risco que num conflito armado alguma ocorrência possa criar brechas também nesse sarcófago.

A sua eventual destruição podia constituir um risco que ultrapassaria as fronteiras da Ucrânia, um risco que poderia não se estender a toda a Europa, mas que afetaria muitos países. Mas um dos primeiros países a ser afetados seria um dos aliados da Rússia neste conflito: a Bielorrússia precisamente pela proximidade a que está de Chernobyl.

Em resumo há razão de ser para alguma preocupação, mas temos de pensar que na insanidade da guerra haverá algum bom senso no sentido de não criar uma situação que neste caso envolve um cenário de alguma potencial gravidade, incluindo para aliados da Federação Russa.

Mas, até por razões históricas, os beligerantes terão grande conhecimento substantivo e prático do terreno além da magnitude do risco envolvido. Isso é mais tranquilizador?

Os beligerantes conhecem o terreno e certamente conhecerão a componente de risco, mas sendo a Ucrânia um país que não está integrada na Rússia há vários anos não sei quão conhecedores serão os russos da localização exata de todos os resíduos para terem o cuidado suficiente de não criarem brechas e de não destruírem unidades de contenção de combustível usado.

Certamente terão algum cuidado, mas também é preciso ver que os soldados que estão no terreno não serão necessariamente especialistas em proteção radiológica para terem essa precaução particular.

Então só num contexto fortuito - e as guerras também incorporam este fator - é que se deve temer um evento perigoso em Chernobyl?

Penso que sim. Só num contexto de fogo acidental ou numa situação em que algo realmente saia fora do controlo e corra mal.

Apesar de ter sido feito para defender também o seu território, a Ucrânia mostrou uma grande responsabilidade ao tentar proteger toda a área envolvente evitando que constitua um perigo para países circundantes e para os seus potenciais aliados.

Do ponto de vista técnico como é que está Chernobyl nesta altura? A ameaça radioativa vai persistir durante séculos?

O perigo radioativo vai permanecer durante alguns séculos. Em 1986 no momento do acidente havia cerca de 100 diferentes isótopos radioativos, muitos deles de tempo de vida muito curto que decaíram rapidamente.

Mas há três isótopos radioativos que subsistem e que tem um tempo de vida bastante longo em particular o estrôncio e o césio que têm um tempo de meia vida de 29 e 30 anos. Isto significa que desses isótopos que existiam em 1986, passados mais de 30 anos, temos aproximadamente metade.

A quantidade de material radioativo vai decrescendo com o tempo, mas, em função do seu longo tempo de decaída, a quantidade que subsiste é ainda significativa.

Tanto quanto é possível apurar parte desses resíduos estão nos tais contentores especiais com combustível usado e outra parte está dentro do sarcófago.

Houve um primeiro sarcófago construído pelas autoridades ucranianas após o acidente e em 2019 foi inaugurado aquilo que se chama 'o novo confinamento seguro'.

Trata-se de um novo sarcófago que tinha como objetivo não só proteger a zona como permitir o desmantelamento seguro do anterior sarcófago que havia sido inicialmente construído, ampliando a área, permitindo assim criar uma zona de contenção de ainda maior segurança.

Este novo sarcófago tem cerca de 257 metros de comprimento, 108 metros de altura e tem 36 mil toneladas tendo sido construído para durar 100 anos. A ideia é manter todos esses resíduos bem contidos.

Havendo uma brecha no sarcófago é evidente que poderia haver a libertação de poeiras que, num contexto de fogo de artilharia, ou de explosão poderia ser libertado para a atmosfera e, obviamente, depois propagar-se quer através da atmosfera, quer pelos aquíferos e depositar-se-ia no solo.

Esse contexto hipotético seria um quase ‘remake’ do acidente de 1986 com as partículas radioativas a viajarem na atmosfera para os países da Europa Central?

Esse seria um dos riscos. Mas, dependendo da magnitude do incidente que tivesse tido lugar, poderia acontecer uma situação similar ao acidente original ou, provavelmente, até poderia ser ligeiramente menor, mas, seguramente, afetaria um número significativo de países.

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