"A vida não é garantida". De juiz turco a refugiado

17 fev, 2022 - 08:10 • Liliana Monteiro

Obrigado a fugir de um regime que o acusou de terrorismo, um juiz turco ficou refém sem passaporte, sem as contas bancárias e sem os bens. Decidiu aventurar-se no mar Egeu e chegou à Grécia, onde conseguiu dois passaportes falsos (um deles português) para chegar à liberdade nos Países Baixos - ajudado por um traficante de seres humanos. Hoje, este refugiado quer lutar por uma justiça independente - e não apenas na Turquia.

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A fuga de Aslan - Reportagem de Liliana Monteiro
Ouça a reportagem. Sonorização: André Peralta. Imagem: Rodrigo Machado

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“A vida não é garantida. Pode mudar de repente e isso é válido para todos”. De juiz a procurado pela justiça, de uma vida confortável a refugiado, o mundo de Aslan (nome fictício, por razões de segurança) mudou de forma dramática de um dia para o outro.

Nascido na Turquia, com curso e graduação feitos nos Estados Unidos, este magistrado, pai de três filhos, está hoje a aprender de novo a viver longe do seu país, onde tem a cabeça a prémio. Encontrou um porto seguro dos Países Baixos, após uma rocambolesca e arriscada viagem.

“Se alguém há seis anos me dissesse: ‘tu vais ser preso, vais estar num campo de refugiados e deixar o teu país, eu iria rir à gargalhada, mas a verdade é que aconteceu!’”. Este é o resumo que Aslan faz dos últimos seis anos de vida.

Em entrevista exclusiva à Renascença, conta que a vida começou a mudar antes de 2016. “Um dia, um membro do colégio de juízes chamou-me para me dizer que, se eu continuasse a atuar de determinada forma, iam transferir-me. Referi que me limitava a aplicar a lei”. O que estava a fazer de errado? Não sabia.

Em julho de 2016, o país foi palco de uma tentativa de golpe militar levado a cabo, alegadamente, por uma fação das forças armadas turcas, contra o Presidente Tayyip Erdogan. O chefe da diplomacia turca acabou por acusar o clérigo Fethullah Gullen, exilado nos Estados Unidos, de ser o cérebro de toda a operação, ele que se disse por diversas vezes alvo de uma “caça às bruxas”. O executivo de Ancara perseguiu várias centenas de pessoas com alegadas ligações ao clérigo num plano que abrangeu várias províncias do país.

A tentativa para derrubar Erdogan fracassou e o Governo retaliou com uma purga em várias camadas da sociedade: militares, juízes, políticos foram detidos, processados ou afastados.

Turquia. Um golpe de estado falhado que reforçou o poder de Erdogan. Vídeo: Arquivo Renascença/Julho 2016
Turquia. Um golpe de estado falhado que reforçou o poder de Erdogan. Vídeo: Arquivo Renascença/Julho 2016

Nessa altura conturbada da história recente da Turquia, Aslan foi transferido para outra cidade sem consentimento, três mil juízes foram suspensos, reformados antecipadamente, um procurador apareceu mesmo morto. “Prepararam a lista dos juízes que deviam ser afastados”, explica Aslan.

Tempos mais tarde, Aslan recebeu nova ordem para regressar à cidade onde sempre tinha trabalhado. A partir desse dia, começava o mais longo episódio da sua vida.

“Meti-me num autocarro para voltar ao meu tribunal e, durante a viagem, a polícia parou o autocarro e pediu a minha identificação. Disseram-me que havia um mandado de detenção contra mim. Fiquei em choque e levaram-me para a esquadra. Perguntei o que se passava e disseram que não sabiam. Tentei falar com o procurador e perguntei o que se passava e ele disse que não era decisão dele, que a ordem vinha de Ancara, a capital. Acusaram-me de terrorismo”.

Três dias mais tarde acabava libertado e o juiz que assinou a sua libertação foi transferido para outro tribunal. “O governo Turco não gostou da decisão de me libertar”, conta.

Revela-nos que num abrir e fechar de olhos viu contas congeladas e cartões cancelados. “Os meus bens não podiam ser vendidos. Se eu pudesse vender a casa e o carro podia seguir com a minha vida, mas não dava!”. Descreve que a vida da família começou a ficar assim mais complicada e com recursos escassos.

Em seis meses o pesadelo intensificou-se. “Fui novamente detido sob a mesma acusação: ser membro de uma organização terrorista. Desde 14 julho 2015 que eu era juiz e, de um dia para o outro, passei a terrorista! Prenderam-me desta vez por 18 meses, noutra cidade, longe de todos”. É de voz embargada que lembra a cela que mais parecia uma lata de sardinhas, onde 24 presos se amontoavam num espaço para nove reclusos. “Durante os primeiros seis meses dormi no chão, à espera da minha vez para ir para o colchão que era usado rotativamente”, recorda.

Foi em 2018, quando foi libertado, já em casa que tocou no assunto pela primeira vez: a fuga.

“Conversei com a minha mulher sobre se devíamos, ou não, abandonar o país. Ela tinha trabalho, os miúdos andavam na escola. Eu não tinha a minha vida, fiquei sem trabalho e não queria ser de novo preso, mas não queria ao mesmo tempo estragar a vida deles. Esta conversa durou dois anos, foi uma decisão difícil. Esgotámos todas as reservas que tínhamos”, confessa Aslan, a quem tranquilizava apenas o facto de em 2019 o governo ter libertado os passaportes da mulher e dos filhos, que iriam conseguir voar por meios legais.

Até que a hora chegou. “Um dia decidimos que estava na hora de deixar o país por causa da minha situação. O tribunal de primeira instância tinha-me dado sentença de seis anos e dez meses de prisão por ser membro terrorista. Pensei que os meus filhos não iam ter uma vida normal neste país e debaixo destas circunstâncias”. A preparação para fugir levou muito tempo, praticamente um ano.

No Verão de 2020, depois de visitarem as famílias a quem não contaram nada, começaram a pensar na melhor forma de abandonar o país. “Perguntei aos meus colegas de curso que já estão em outros países europeus e todos lidaram com traficantes de seres humanos, mas eu não queria entregar a minha vida a uma pessoa dessas. Procurei um caminho alternativo”.

Conversou com dois colegas, também eles juízes, marido e mulher, e decidiram juntar-se ao plano de fuga da Turquia. “Decidimos comprar um barco de cinco metros e atravessar o mar até uma ilha grega".

Aslan começou a treinar, viu muitos vídeos sobre como manobrar um barco e chegou mesmo a fazer um curso para obter a carta de Patrão. “Depois preparei-me para a viagem. Fui para o mar perto da minha cidade para treinar, para ter treino real. No meu terceiro dia o barco afundou completamente. Tive de chamar um capitão meu amigo que me ajudou a resgatar o barco. Paguei muito dinheiro pelo seu arranjo. Achei que era um sinal para não deixar o país”.

A primeira tentativa foi em maio 2021 e a segunda em agosto do mesmo ano. “Se olhar para o mapa, percebe-se que algumas ilhas gregas estão próximas da Turquia, ficam a seis quilómetros e eu escolhi uma a 12 quilómetros. Levou-nos 15 minutos no mar para lá chegar”.


"Pai, desculpa, eu não te disse, mas tive de vos abandonar"


A saída da Turquia

“Quando estávamos prestes a deixar águas turcas, a polícia grega veio em direção a nós. Tivemos medo, dava impressão que, se entrássemos nas águas gregas, eles nos iam afundar o barco. Aí voltamos para trás”. Pensaram em desistir porque não era tão simples como parecia.

Três meses depois tentaram de novo atravessar o mar Egeu e conseguiram chegar a uma ilha grega sem que a polícia os conseguisse detetar. “Quando lá chegámos, o meu amigo e a mulher mostraram o passaporte caducado e a polícia não viu a data expirada e mandou-os para Atenas. Eu fiquei sozinho porque não tinha documentação”. Depois de cinco dias preso em condições que não quer recordar, lá seguiu para Atenas.

“Estive sete dias à procura de um traficante de seres humanos, um que eu tinha julgado antes. Eu, um juiz! É contraditório. Uma vida a agir segundo as leis a aplicá-las e depois a agir como um criminoso. Estou a rir-me, mas é desesperante. Eu estava nervoso, ansioso, tudo ao mesmo tempo”, conta-nos. “Cheguei até ele, combinei os documentos e o preço e o homem deu-me dois passaportes: um sérvio e outro português, onde me chamava Miguel dos Santos.”

É com pesar que recorda que, há muito pouco tempo, um colega e a mulher morreram no mar Egeu, quando o barco naufragou durante a travessia. “Vidas decentes, pessoas cultas e educadas, com boa vida e morreram durante a fuga. É uma tragédia.”

Tiros, lanças e abalroamento. Guarda Costeira grega tenta travar bote com  Vídeo: Arquivo Renascença/Julho 2016
Tiros, lanças e abalroamento. Guarda Costeira grega tenta travar bote com Vídeo: Arquivo Renascença/Março 2020

A ausência do adeus aos pais

Em lágrimas e de voz embargada, Aslan partilha que quando chegou à ilha grega ligou à família. “Disse-lhe: Pai, desculpa, eu não te disse, mas tive de vos abandonar. Foi um momento muito difícil.”

Teme pela vida dos pais. “Até agora eles têm estado bem, mas não podemos ter a garantia que vai ser sempre assim. A minha mãe e o meu pai não devem ser procurados pela polícia pelo menos enquanto durar o recurso da minha condenação”. Questionado sobre se tinha como objetivo seguinte levar os pais para os Países Baixos, afirma: “acho que eles não querem sair da Turquia; têm 70 anos e não querem sair. Eu encorajo-os a visitar-nos quando conseguirem”.

O juiz-refugiado não teve coragem de lhes contar que está num campo de acolhimento. “Disse que arrendámos uma casa linda, não os quis tristes e preocupados. Depois de uma vida longa, digna e de muito trabalho, orgulhosos do filho que já viram preso e que agora está num campo de refugiados... Não lhes contei nada”, confessa.

A um passo da liberdade

Na primeira tentativa de saída de avião da Grécia (com um falso passaporte português) rumo a Bruxelas tudo corria bem até uma hospedeira de terra perceber que o passaporte era falso. “Quando ela olhou para o documento rapidamente percebeu que era falso. Chamou logo a polícia grega que me levou para o seu gabinete. Disseram-me que conheciam a minha realidade, que não iriam fazer nada e pediram-me para abandonar o aeroporto. Não me fizeram nada”.

A segunda tentativa acontece em agosto noutra ilha grega, Creta, onde usou o passaporte sérvio falso. “Vesti-me de forma elegante, com uma mala de mão e o jornal 'New York Times' debaixo do braço, para dar ideia de uma pessoa normal”. E, já na porta de embarque, a hospedeira suspeitou que o passaporte era falso. Fez um compasso de espera e olhou para ele. “Então, o que se passa? Tenho de embarcar. Ela olhou para mim e deixou-me seguir. Fiquei radiante, porque tinha, finalmente,conseguido!”. Rumou à Holanda onde já tinha chegado a família.

O reencontro com a família

A mulher e os filhos tinham chegado sete dias antes dele e já se encontravam no centro de refugiados.

“Os requerentes de asilo ficam todos no mesmo sítio e lá estavam eles. Os meus filhos correram em direção a mim. Foi um momento extraordinário, um dos melhores momentos da minha vida”, revela.

Nesta entrevista à Renascença, Aslan conta que não há normalidade e privacidade nestes campos.

“Partilhamos o meu espaço com outros requerentes embora tenhamos o nosso próprio quarto. Mas tivemos tanta sorte! Antes de sermos transferidos para aqui estivemos num campo temporário e isso não foi bom para nós. Estivemos lá três meses, quando por norma são duas semanas. Perguntei às autoridades porque continuávamos ali. Diziam que como éramos uma família de cinco pessoas não estavam a conseguir encontrar casa para nós. Depois disso enviaram-nos para um campo com casas pequenas e separadas. Estamos numa unidade onde temos uma casa de banho só para nós, uma cozinha só nossa, é quase uma casa, temos privacidade e estamos muito felizes, tivemos muita sorte.”

“Os meus filhos já estão na escola. Começámos a aprender alemão. É muito importante continuar a vida e é importante para a procura de emprego”. Há sete meses que aguardam a decisão sobre o pedido de asilo ao Estado holandês.

"Às vezes, temos colapsos psicológicos. Quem somos? Porque estamos aqui? O que nos aconteceu e o que nos vai acontecer? Somos humanos. Tento encorajar a minha mulher porque tudo está nos ombros dela. Ela toma conta das crianças e é a âncora deles; ela é aquela que tem mesmo de se sentir forte”. Viver na incerteza é desgastante, desabafa.


"Às vezes temos colapsos psicológicos. Quem somos? Porque estamos aqui? O que nos aconteceu e o que nos vai acontecer? Somos humanos"


A vitória nas instâncias europeias e o futuro

Recorreu ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por considerar a acusação de terrorismo ilegal e infundada. No final do último ano, o Tribunal decidiu que a prisão de Aslan foi totalmente ilegal. “Mas o Governo turco não quer saber dessa decisão. No futuro, quando a justiça regressar à Turquia e tudo estiver melhor, essa decisão terá efeitos, de certeza”, acredita.

O julgamento de Aslan terminou em dezembro de 2020. Foi condenado a seis anos e 10 meses de prisão pelo crime de terrorismo. Aguarda a decisão do recurso.

Aslan quer começar a escrever uma nova página feliz no livro da vida. “Estou a pensar noutra carreira se for possível. Não sei se quero voltar à Turquia. O meu objetivo é fazer uma nova graduação, se possível conseguir um cargo numa organização internacional e lutar pela independência judicial internacional, não apenas na Turquia mas noutros países também. Lutar pelo cumprimento da lei.”

“Quantos juízes já foram presos? Tornam-se refugiados em campos como eu? Tenho 400 colegas juízes ainda nas prisões na Turquia, sozinhos em celas, muitos doentes, mulheres grávidas. Presos sem provas concretas. Isto é muito triste. Gostava de os ver livres imediatamente prontos a retomar a vida que lhe roubaram”.


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