15 fev, 2022 - 07:15 • Celso Paiva Sol
“A mais breve história da Rússia”, o livro do jornalista e historiador José Milhazes chega esta terça-feira às livrarias. Um contributo, diz o autor, para se perceber através da história porque é que os russos pensam como pensam e que referências filosóficas, religiosas e políticas é que os guiam enquanto povo.
O lançamento não podia ser mais oportuno, ou não estivesse a Rússia envolvida numa das maiores crises diplomáticas e militares da actualidade: A ameaça de invasão da Ucrânia e o braço de ferro que isso está a gerar com os Estados Unidos e a Europa.
Em entrevista à Renascença, José Milhazes diz que não é a primeira vez que Moscovo se coloca numa situação destas, e que, como noutros momentos da história, em causa está o seu próprio futuro.
Foi um desafio que me foi colocado, que eu sabia que seria extremamente difícil. A Rússia não é só um país, é um continente. A ideia é transmitir os principais momentos da história da Rússia de uma forma acessível.
Eu conheço histórias da Rússia com 14 e 20 volumes, porque é de facto uma história enorme, mas tentei em 300 páginas destacar os momentos importantes que também nos podem ajudar a compreender a atualidade.
Porque é que os russos são como são e pensam como pensam? Quais são os orientadores filosóficos, religiosos e políticos desse povo, e assim abrir pistas para quem quiser aprofundar a história deste país.
A crescente tensão na fronteira da Ucrânia está a (...)
Quanto mais a Rússia se estende territorialmente, mais fraca fica em termos internos e externos. Hoje a Rússia está na situação em que estava o império russo em 1856 quando perdeu a guerra da Crimeia.
Essa derrota no Mar Negro frente às tropas da Inglaterra, da França e da Turquia, veio chamar a atenção para um grande problema: o estado interno – económico, politico e social – em que se encontrava a Rússia e que caminho devia ser seguido. Ou continuar a via das conquistas, e isso seria um salto para o abismo, ou concentrar-se nas grandes necessidades internas do país, para recuperar e modernizar a Rússia.
Sim, neste momento a Rússia está nesse grave impasse. Ou se dedica realmente a modernizar o país e a transformá-lo num dos mais desenvolvidos e economicamente fortes do Mundo, ou continua a investir na expansão militar e arrisca-se a ter o mesmo destino da União Soviética. Ou seja, a desintegrar-se.
"Putin gosta de arriscar, mas também sabemos que ele gosta de arriscar quando sabe que vai ganhar."
Para dar uma ideia do que é atualmente a economia russa, ela é sensivelmente entre 15 a 20% da economia norte-americana. O PIB per capita fica abaixo da Itália e da Espanha, e muito perto do português. As infraestruturas têm sofrido algum desenvolvimento, mas nada que se compare com as necessidades reais do país. Em termos de desenvolvimento científico, a Rússia está muito longe de países desenvolvidos como a China, os Estados Unidos, o Japão e a Coreia do Sul.
É verdade que a Rússia tem poderosíssimos e fortíssimos hackers, mas acho que ainda ninguém viu um computador portátil fabricado na Rússia ou um telemóvel. Para além disso, tem um outro problema.
A Rússia continua a viver muito à sombra da exportação do petróleo e do gás, que é uma dependência sempre arriscada, porque uma queda brusca do petróleo e do gás nos mercados internacionais pode provocar-lhe sérios problemas.
A opção pela invasão é possível. Não podemos excluir essa possibilidade quando temos uma corrida ao armamento e um aumento de tropas na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia, e na fronteira entre a Bielorrússia e a Ucrânia.
Mas se me pergunta a minha opinião, eu acho que, por enquanto, a Rússia não vai atacar a Ucrânia porque a Rússia não tem nada a ganhar, e pode perder muita coisa. É um risco extremamente grave. É verdade que Putin gosta de arriscar, mas também sabemos que ele gosta de arriscar quando sabe que vai ganhar.
Para além disso, se optar pela invasão, teria que manter um exército, um aparelho repressivo muito grande na Ucrânia, porque na Ucrânia vai haver resistência. E é preciso lembrar que territorialmente a Ucrânia é igual à França e à Alemanha juntas. Imagine a quantidade de tropas que será preciso para controlar um território desses. Já para não falar que a Rússia ficará internacionalmente isolada e sujeita a sanções.
Passa pela cabeça de alguém, que algum dirigente de um país da NATO fique completamente louco ao ponto de decidir que os exércitos invadam a Rússia? Isto não passa pela cabeça de ninguém!
Eu acho que tem outras explicações. É preciso dizer que nos próximos 30 ou 40 anos a Ucrânia não fará parte da NATO. Tem problemas fronteiriços como tinha a Geórgia e a Moldávia, que eram outros pretendentes, e enquanto não os resolver a Nato não a vai aceitar na estrutura militar.
Na recente conferência de imprensa conjunta com o presidente francês Emanuelle Macron, o Sr. Putin disse uma coisa absolutamente do outro mundo. Ele às vezes tem raciocínios que mereciam ficar gravados em pedra para que não se esqueçam.
Quando lhe perguntaram sobre a adesão da Ucrânia à NATO, virou-se para a jornalista e perguntou-lhe se ela imaginava um cenário em que a Ucrânia adere à NATO, a seguir invade a Crimeia e pede ajuda à NATO para o fazer, porque já faz parte da NATO.
Ora, quem devia ter pensado nisso era Vladimir Putin em 2014 antes de ocupar a Crimeia. Putin tem muitas vezes um discurso demagogo.
Mas passa pela cabeça de alguém, que algum dirigente de um país da NATO fique completamente louco, mas mesmo completamente louco, ao ponto de decidir que os exércitos dos países da NATO invadam a Rússia como fizeram o Napoleão e o Hitler ? Isto não passa pela cabeça de ninguém!
Tanto mais que a Rússia é um país com tantas armas nucleares, que mesmo que os mísseis não levantem voo e rebentem todos na Rússia, o planeta Terra desaparece. Isto é um contrassenso. Ou um contrassenso ou uma loucura. Invadir um país que vai pôr fim à nossa civilização.
E a Europa ? No caso de um conflito de grandes dimensões na Ucrânia, a Europa entrava numa crise terrível. Uma crise económica, financeira, energética, e milhões de refugiados que não vão precisar de atravessar o mar a nado, porque podem entrar a pé na União Europeia.
É muito difícil traçar cenários, mas olhando para a história podemos arriscar a traçar alguns.
Um deles é que a situação se congele, como se congelou depois da guerra na Moldávia que perdeu a Transnístria, que segundo o direito internacional faz parte da Moldávia mas na realidade está nas mãos da Rússia, e o mesmo acontece na Geórgia com a Abecásia e a Ossétia do Sul, que são dois pedaços da Geórgia também controlados pela Rússia. Este é um dos cenários possíveis.
Estas conversações não deverão ser fáceis, mas deverão abrir caminhos para que se chegue a um modus vivendi, mais ou menos normal, entre a Rússia, a Europa e a NATO.
Cronologia
As raízes do conflito entre a Rússia e a Ucrânia s(...)
A julgar pelo que nós vemos, as relações entre a Rússia e a China estão às mil maravilhas. A China está a aproveitar muito bem este problema, por exemplo, aumentando as compras de gás à Rússia a preços muito baixos, que não têm nada a ver com os preços que neste momento se praticam na Europa.
Alguns dizem que, em caso de guerra, a China podia aproveitar a oportunidade para resolver a questão de Taiwan, ou seja ocupar Taiwan, o que pode não parecer impossível, mas seria extremamente grave.
Aí estaríamos mesmo dentro de uma guerra mundial.
Mas eu quero lembrar que a relação entre a Rússia e a China é desigual. É entre um país economicamente muito forte que se está, a pouco e pouco, a preparar militarmente para desafios de futuro, e um país que tem um aparelho militar forte, mas que tem uma economia nada comparável. Isto não é uma parceria igual.