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Entrevista

Chegaram menos migrantes, morreram muitos mais. Os traficantes estão a tornar as viagens mais perigosas

21 dez, 2016 - 07:55 • Catarina Santos

Mais de 4.800 migrantes desapareceram nas águas do Mediterrâneo em 2016, apesar de terem entrado na Europa menos de metade das pessoas face ao ano passado. O motivo, diz o porta-voz da Organização Internacional para as Migrações, é que as organizações criminosas estão a agir de forma particularmente irresponsável, obrigando os migrantes a partir em barcos cada vez mais sobrelotados.

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Pelo mundo todo, foram quase 7.200 os migrantes mortos ou desaparecidos em 2016. Dá uma média de 20 mortos por dia. Tinham sido cerca de 5.700 em 2015.

Olhando para o mapa, vê-se uma larga mancha a assinalar mais de 400 fatalidades na fronteira do México com os Estados Unidos, outra ainda maior quando olhamos para a zona do Saara e Norte de África, com mais de 1000 mortos. Mas o aglomerado de casos sobe exponencialmente na zona do Mediterrâneo, com mais de 4.800 fatalidades. Isto num ano em que chegaram cerca de 382 mil pessoas à Europa. No ano passado o número foi muito superior - chegaram mais de um milhão de pessoas -, mas morreram bem menos - cerca de 3.700.

“Algo não bate certo”, diz Joel Millman, porta-voz da Organização Internacional para as Migrações (OIM), em entrevista à Renascença. “Os grupos criminosos estão a agir de forma irresponsável, estão a pôr demasiadas pessoas nos barcos.”


Olhando para a migração, que balanço faz de 2016?

Creio que o mais importante é que os norte-americanos e os europeus, a metade Norte do globo, fizeram grandes avanços na regulação e controlo do que parecia uma situação migratória muito assustadora, em 2015 e também em 2014. Contudo, o impacto da ideia de migração descontrolada, que as pessoas continuaram a ouvir, manteve-se ao ponto de vermos estas votações históricas em Inglaterra e nos Estados Unidos. E provavelmente vamos ver mais por toda a Europa, o que sugere que o público ainda não digeriu o que considera uma emergência, um estado de pânico. Consideramos que isto é normal, é o que acontece, é necessário tempo para as sociedades compreenderem e assimilarem a situação, mas pensamos que, de forma geral, a gestão melhorou tremendamente.

A única excepção é do Norte de África para Itália e para a Península Ibérica, onde a migração continuou com números muito elevados este ano, com muitas mais mortes do que no ano passado. Algo não bate certo. O número de pessoas que chegaram é mais baixo que no ano passado e, no entanto, houve mais fatalidades no Mediterrâneo. Estamos preocupados com isso.

Por que acha que isso acontece? O que pode explicar?

A principal razão que conhecemos é que no Norte de África há menos embarcações fiáveis para mover as pessoas, por isso estão a usar meios que apresentam muitos riscos e estão a fazê-lo em condições que tornam a viagem ainda mais arriscada. Colocam muito mais pessoas num barco do que deveriam. Assistimos a grandes naufrágios este ano. Tínhamos visto grandes desastres noutros anos, mas não tantos. Os grupos criminosos estão a agir de forma irresponsável, estão a pôr demasiadas pessoas nos barcos.

Uma das razões para a diminuição de chegadas foi o acordo entre a União Europeia (UE) e a Turquia. Mas percebemos quão frágil este acordo é de cada vez que Erdogan ameaça a UE com a abertura de fronteiras. Olhando para 2017, isto preocupa-o? Colocaram um tampão, mas que não parece muito forte...

Sabemos que isto acontece sempre. Ainda recentemente vi notícias de que o México poderia fazer o mesmo com Donald Trump. Se estiver enfurecido com a posição anti-imigração do novo governo pode tornar a sua parte do acordo menos amigável. Em termos de relações com a UE, esta não é a única ferramenta da Turquia. Tudo o que está a acontecer, as batalhas na Síria e no Iraque, têm impacto na Turquia; o Irão tem impacto na Turquia; Israel tem impacto na Turquia. Não se pode isolar um problema e prever o que eles podem fazer. E creio que isso é verdade também para o México.

Na IOM, temos que nos lembrar que estes são todos Estados-membros que podem beneficiar de um diálogo aberto, que podemos ajudar a monitorizar e a moderar. É uma perda de tempo especular sobre o que pode acontecer de negativo. Há tanta coisa positiva que pode acontecer também e é para isso que estamos a trabalhar.

Acha que em 2016 se deu demasiada atenção ao lado negativo e que isso alimentou um sentimento de medo? Como se faz o exercício inverso?

Devemos sempre lembrar as pessoas das condições que estão por trás destes movimentos de pessoas - e que não se vão alterar a curto prazo. É o balanço demográfico entre o Norte que envelhece e o Sul que está em crescimento acelerado... Não podemos esquecer que grande parte de África e outras partes do mundo estão a experimentar, talvez pela primeira vez na história, maiores níveis de educação, maior esperança média de vida, porque largas zonas de guerra, que pareciam que nunca terminariam, começaram a diminuir. Falamos da América Central, do Sri Lanka, da Colômbia, do Sudeste da Ásia... Parecia que nunca teriam paz e agora têm, de certa forma. Há ainda muita criminalidade, mas as verdadeiras guerras acabaram. As zonas de guerra limitam-se agora à Nigéria e ao Afeganistão. Temos um problema novo. Há adolescentes e jovens adultos que são cidadãos com educação, que precisam de trabalho, oportunidades, formas de cumprir as suas ambições. Isso não mudará e a movimentação destas pessoas rumo a Norte não terminará.

Além disso, a guerra a sério em locais como a Síria tem de ter um desfecho, têm de ter uma solução política. E quando isso acontecer, teremos novas circunstâncias. Temos de ver esses movimentos a longo prazo e de pensar que impacto terão na mobilidade. Por isso, não é apenas uma questão de ser optimista, mas de ser realista. Creio que o mundo não tem opção senão em seguir esta direcção, porque a história está seguir para aí e têm de estar preparados.

E acredita que as instituições internacionais estão a compreender isso e a fazer esse caminho?

Creio que compreendem. Li recentemente no "Financial Times" alguém a dizer: "claro que sabemos o que fazer, só não sabemos como ser reeleitos depois de o fazermos". Esse é um problema que as democracias enfrentam. As pessoas vão reagir às acções tomadas, mesmo que sejam as correctas. Por serem medidas dolorosas, vão fazer pagar por elas. Por isso, qualquer pessoa que queira manter o seu emprego, incluindo um político, tem de fazer esses cálculos. Compreendemos isso, mas a dinâmica geral não vai tomar um caminho diferente. Uma parte do mundo é jovem e tem educação e a outra é velha e está a reformar-se. Os jovens africanos, sul-americanos ou do sul da Ásia com capacidades vão mover-se para onde tiverem mais compensações pelas suas habilidades. O que, provavelmente, vai acontecer noutro país.

A IOM acaba de comemorar 65 anos. Diria que nunca como agora o vosso trabalho foi tão difícil?

É difícil responder. Sabemos que nunca houve este número de emergências a acontecer ao mesmo tempo, mas está o mundo mais disponível para aceitar, está mais diverso, há mais pessoas dispostas aceitar o problema e agir? Diria que, em vários aspectos, este é o melhor momento que já tivemos. Comparamos frequentemente com o Sudeste asiático em 1975, quando tantos países pelo mundo se juntaram para salvar milhões de pessoas que tentavam fugir da região de barco, arriscando as suas vidas. Foi notável a forma como tantos países participaram e quão rapidamente agiram.

Neste momento, temos catástrofes semelhantes a acontecer em vários lugares ao mesmo tempo e o mundo está a fazer um trabalho muito adequado. Pelo menos estão cientes do que se passa e estão a responder a estas emergências o melhor que podem. Se é uma situação melhor ou pior é algo subjectivo, mas continuamos extremamente optimistas e achamos que o mundo agirá de forma adequada e com rapidez.

Comentários
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  • FR
    21 dez, 2016 Portugal 11:37
    Os Europeus vão sempre apertar com os desesperados, mas não vão apertar com quem criou os desesperados e a destabilização...ninguém se mete com os EUA...
  • as
    21 dez, 2016 adelaide 09:34
    ... Isto e o puro trafico de pessoas .... mas os "politicos" da Europa acham isto completamente normal e ninguem quer resolver este problema...

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