26 out, 2023 - 18:00 • Rui Miguel Tovar
Algum dia teria de acontecer. Um jogador no activo, ei-lo no Jogo de Palavra. É ele Miguel Vítor, capitão do Hapoel Be’er Sheva e titular da selecção israelita, de olho no Euro-2024. Nascido e criado em Torres Vedras, faz a formação toda no Benfica desde os 11 anos até ao plantel sénior, chamado por Fernando Santos e lançado por José Antonio Camacho. A sua chamada ao estúdio da Rádio Renascença tem a ver com a saída abrupta de Israel, provocada pelos trágicos acontecimentos de há três semanas. Mais que uma entrevista desportiva, é um depoimento sentimental sobre a tensão em Israel.
Como foi lidar com a notícia do ataque do Hamas? Ainda por cima, vives em Israel com mulher e três filhas.
Três filhas e um filho.
Ahhhh: três-um, está feita a rectificação.
Antes de mais, muito obrigado pelo convite, é uma oportunidade para explicar o que vivi. Foram momentos de stress e pânico. Por sorte, a minha família já estava em Portugal porque aproveitou um feriado em Israel. Estava sozinho e acordei às oito da manhã já com o Whatsapp cheio de mensagens de jogadores do Hapoel, sobretudo estrangeiros, com medo das sirenes, que começaram a tocar em Be’er Sheva às seis e meia. Como moro ligeiramente afastado da cidade, a 40 quilómetros da faixa de Gaza, não apanhei as sirenes.
E depois?
O treino do Hapoel foi passado para a tarde, porque ainda ninguém tinha percebido a dimensão da tragédia, da entrada dos terroristas em Israel. Com o passar do tempo, as pessoas do clube foram-se apercebendo da real situação e aconselharam todos a ficar em casa. Houve uma altura, a meio da manhã, em que os terroristas estavam a 15 quilómetros da minha casa. Aí comecei a sentir medo. Eu próprio sentia medo ao mínimo barulho. À hora do almoço, o clube libertou os estrangeiros. Quem quisesse, podia ir para casa. Como fui chamado pela selecção de Israel, fiquei mais um dia em casa para saber se íamos jogar. Quando a federação me disse que não, vim para aqui e cá estou.
Até quando, qual é a expectativa do reinício do campeonato?
A liga deu 25 de Novembro, mas ninguém acredita que a situação se resolva até lá. Ainda hoje, os meus colegas israelistas do Hapoel receberam alertas de rockets e têm de ir o quarto anti-bomba. A cabeça não está no futebol. Todos os crimes que foram cometidos são coisas que nunca pensei passar nem ver. Ainda por cima, tenho uma ligação muito forte ao país, tenho amigos e conhecidos que perderam familiares e amigos próximos, têm sido dias muito duros.
Há alguma táctica para dar a volta a essa tristeza?
Da parte do clube e da selecção, metem-nos em contacto com crianças que perderam familiares próximos. Falamos com eles, mas não sabemos bem o que dizer. Uma criança fica feliz por nos estar a ver, claro, mas não sabes bem o que podes dizer. Falei com um miúdo cuja mãe foi raptada e pergunto-me se devo rir ou não durante a conversa. São sentimentos mistos que não sabes como lidar, porque tentamos sempre dar uma alegria e passar uma mensagem de conforto, mas as lágrimas vêm-me aos olhos quando termino a mensagem.
Falaste dos rockets. Como é viver nesse mundo tão diferente do de Portugal?
Não é uma situação comum, do dia a dia. Estou há oito anos em Israel e aconteceu-me duas ou três vezes. Na primeira, tive 45 segundos.
Quarenta e cinco segundos?
Depende da distância. Como moramos perto da faixa de Gaza, temos de nos despachar para entrar no quarto anti-bomba. Mesmo sabendo que a maioria dos rockets são destruídos pelo sistema de defesa de Israel.
Na primeira vez, dizias.
Estava a ver um filme com a minha esposa na televisão. De repente, toca a sirene e tivemos de pegar nas nossas duas filhas e metemo-nos no quatro anti-bomba. À segunda e terceira vez, as coisas já são mais naturais. Quando cheguei a Israel, apresentaram-me as casas e, do nada, diziam ‘aqui é o quarto anti-bomba’. Na altura, perguntava o porquê daquilo e eles diziam-me era essencial em todas as casas, porque acontece de vez em quando. E a verdade é que aconteceu.
E se estiverem na rua, como é?
Todos os espaços comerciais têm um recinto anti-bomba. Já me aconteceu estar num restaurante em Telavive e soar a sirene.
E foi ordeiro?
Depende da zona, se é turística ou não. Se for uma zona residencial, as pessoas já estão habituadas e faz-se com naturalidade. Se for turística, é normal alguma agitação. Em Telavive, temos um minuto, um minuto e 15 segundos, e, nesse restaurante, houve pessoas que ficaram a comer na mesa enquanto os outros saíam. Também há pessoas que filmam os rockets na varanda, outros filmam na rua. Há de tudo. Tenho um exemplo de um colega meu sueco em que sirene tocou no aeroporto e começou tudo a correr. Quase ia perdendo os dois filhos no meio da confusão e foi complicado.
E as sirenes tocarem e tu estás no meio da estrada?
Aí é mais preocupante. O que eles dizem é que tens de parar o carro, sair e afastar-te com as mãos na cabeça, mas sem qualquer tipo de protecção. No outro dia, ia na estrada e tinha a faixa de Gaza à minha esquerda a ver os clarões da destruição dos rockets pelo tal sistema de defesa. Admito que o maior medo é ser apanhado fora de casa no toque das sirenes.
E porque é que foste para Israel?
Na altura, tive de perto de renovar pelo PAOK, mas mudou a direcção e o director-desportivo. As coisas seguiram um outro rumo e entendi que era melhor sair. Recebi duas propostas da Turquia, ambas de equipas a lutar para não descer, e a proposta do Hapoel Be’er Sheva, equipa com ambições de título de campeão e presença nas competições europeias. Meti as coisas na balança entre futebol e família. Antes de decidirmos, fomos visitar Be’er Sheva e ficámos convencidos. Agora, oito anos depois, ainda mais. Pode soar estranho dizer isto, mas demo-nos muito bem em Israel.
E a adaptação, fácil?
Sim. É um país diferente, não há dúvida, há muitas culturas no mesmo espaço, mas aprendi imenso e cresci muito a nível pessoal. As minhas filhas entraram no infantário, aprenderam logo o hebraico a falar e a escrever. E o israelita é um povo quente e afectuoso, como Grécia e Portugal.
E o futebol israelita em matéria de adeptos?
Muito fervorosos.
Vão ver os treinos?
Uns miúdos e tal, de vez em quando, ali à espreita no centro de estágio. A maioria dos estádios são bons, modernos, e os clubes mais fortes conseguem meter 20 mil pessoas. Na Grécia, por exemplo, os estádios não são tão modernos e os adeptos são mais fanáticos. Lá, em Israel, o apoio também é frenético, mas é diferente. Vou dar um exemplo: quando jogo no campo do Maccabi Telavive, um dos rivais do Hapoel, saio do estádio a pé com a minha família e desloco-me até ao meu carro sem qualquer problema. Isso seria impensável em Portugal. E nem pensar em Salónica. Aliás, na Grécia, os adeptos visitantes não podem ir ao jogo em dia de dérbi ou clássico. Dou valor a essa tranquilidade e ausência de deselegância.
E nas ruas de Beer’shevva?
Como é uma cidade de um só clube, as pessoas reconhecem logo os jogadores. Desde a mais nova à mais velha pessoa, paramos, tiramos fotografias e assinamos autógrafos.
E qual é a noção dos israelitas sobre Portugal?
Espantou-me, eles são muito viajados, têm essa cultura, e há dois voos diários para Lisboa. Por isso, vêm para cá com frequência e conhecem o país. Uma vez, apanhei um casal de 70 anos no avião e eles iam aterrar em Lisboa, alugar um carro para ir ao Porto e por aí fora. Têm curiosidade, gostam de conhecer outras culturas e fazem por viajar. Na Grécia, por exemplo, viajam mais para dentro e conheci casos, sobretudo de mulheres sem aquela ligação ao futebol, em que julgavam que Portugal era nas Caraíbas. Senti que isso já não acontece em Israel.
E como chegas a capitão de equipa?
Tem a ver com antiguidade, cheguei há oito anos, e também com o meu perfil para liderar. As pessoas viram isso em mim e sou capitão há três épocas. Quando cheguei ao Hapoel, o capitão era um jogador que agora é o meu treinador. Foi jogar para a Bélgica, depois voltou ao Hapoel e o clube foi campeão israelita uns 50 anos depois. Virou deus, claro.
E a braçadeira é algo inato?
Já o tinha sido na formação do Benfica. E até no PAOK, quando os dois capitães estavam ausentes. E também fui uma vez na equipa principal do Benfica.
Uauuu.
Uma honra, um momento importante, inesquecível. Foi num particular de pré-época na Suíça, com o Friburgo, acho.
Jogo de Palavra
Carlos Manuel. Mais palavras para quê, é um artist(...)
Quem era o treinador?
Jorge Jesus.
Em 2009-10?
Diria mais tarde, em 2011-12. Já depois de jogar no Leicester.
É verdade, jogaste no Leicester. Que tal Inglaterra para ti?
Foi uma experiência bem boa, estava lá o Paulo Sousa como treinador. Quando me falaram do Leicester e relacionei com a 2.ª divisão inglesa, pensei que não fosse o passo certo para mim. Depois falei com pessoas mais ligadas a essa realidade, informei-me melhor e fui com outra atitude. Cheguei lá e deparei-me com um campeonato muito competitivo, embora o futebol seja muito jogado à antiga, bola para a frente e na base do erro do adversário. Mas há o físico, a organização. Espectacular, joguei em estádios cheios, ambientes diferentes e cresci bastante.
Qual é a tua geração no Benfica?
Rúben Lima, agora no Famalicão. Curiosamente, fizemos treinos de captação aos 10 anos e entrámos no Benfica aos 11. Havia também Miguel Rosa, Romeu Ribeiro, André Carvalhas, David Simão. Espero não me estar a esquecer de nenhum. Sami, também.
E alguns deles foram contigo ao Torneio Toulon?
Também, sim: Rúben Lima e Romeu Ribeiro.
E os treinadores?
Bruno Lage, dos juvenis do primeiro ano aos juniores do primeiro ano. Foi muito importante para todos nós, porque trouxe uma exigência diferente no treino e trabalhou connosco numa altura em que estávamos órfãos de campos de treinos, devido à construção do novo estádio. Íamos treinar para Odivelas, Unidos, ao pé da Pontinha, Palmense, ali ao lado do estádio, e acabámos por nos fixar nos Pupilos do Exército.
E quando sobes ao plantel sénior?
Numa digressão de final de época aos EUA, fui eu mais Miguel Rosa, Sami, André Carvalhas.
Quique Flores?
Ainda era Fernando Santos.
E a equipa era Nuno Gomes…
Mais Kikin Fonseca, Miccoli, Petit, Rui Costa. No início da época seguinte, começo com o plantel principal. O Fernando Santos sai ao fim da primeira jornada, com empate no Bessa com o Leixões. A meio dessa semana, entrou o Camacho e lesionou-se um outro central, o David Luiz, se não me engano. O Luisão também estava lesionado. Restava eu. Fomos jogar com o Vitória SC, em casa, na Luz, 50 mil pessoas. Nunca mais me esquecerei, é a minha estreia, e ao lado do Katsouranis.
E o primeiro adversário?
Era um sérvio, esqueci-me do nome. Lembro-me que era forte [Mrdakovic]. Empatámos 0:0. A seguir, jogámos em Copenhaga para o acesso à fase de grupos da Liga dos Campeões. O relvado estava todo destruído, tinha havido lá um concerto uns dias antes. Ganhámos 1:0. Depois foi com o Nacional, na Madeira, 3:0 para o Benfica. E depois Milan, em San Siro. Estreei-me na Liga dos Campeões com Kaká, Seedorf, Nesta, Inzaghi. Foi um momento incrível, aconteceu tudo muito rápido do campeonato de juniores para a Liga dos Campeões.
Jogo de Palavra
Aquele português cuja carreira futebolística se po(...)
E a malta, porreira?
A malta recebeu-me muito bem, ainda sou amigo de muitos deles: Quim, Nuno Gomes, Ruben Amorim, Luís Filipe, Coentrão, Carlos Martins.
Como foi a festa do título de campeão em 2010?
Foi especial, porque fui campeão pelo clube do coração e participei na festa até ao Marquês. No dia seguinte ou dois dias depois, pensas que querias ser mais participativo com mais minutos e mais jogos.
O que falhou para saíres do Benfica?
Não falhou nada, foi natural. Havia muito centrais: Luisão, Dsvid Luiz, Sidnei, Garay. Jogadores de selecção brasileira e argentina. Olhando para trás, compreendo que seria difícil jogar. Não guardo rancor nem mágoa, é claro que gostava que tivesse sido diferente, o sonho era jogar a carreira toda no Benfica mas continuar lá não seria benéfico para mim e, por isso, aceitei o PAOK:
E como é que se proporciona o convite para a selecção de Israel?
Nunca tinha havido um jogador estrangeiro não judeu a jogar pela selecção israelita. Houve, sim, uns americanos com raízes judias a jogar. Por isso, nunca tinha pensado nisso. Há coisa de um ano e meio, a federação israelita e o meu clube falaram-me disso. Pensei e senti que era um passo natural por todo o carinho demonstrado ao longo dos anos. Também pensei na parte pessoal e profissional, estilo falta-me uma presença numa grande competição.
Euro-2024?
Estamos na luta, se conseguirmos é uma alegria imensa para um país que falha uma grande competição desde o Mundial-70 e, nessa altura, ainda discutia a qualificação através da confederação asiática.
Para terminar, qual a diferença entre Jerusalém e Telavive como cidades?
Jerusalém é uma cidade com o peso da religião e da cultura. Na zona das muralhas, há de tudo entre muçulmanos, judeus e cristãos. Sentes o peso, com o muro das lamentações e, logo atrás, uma das mesquitas. Na zona onde está Jesus sepultado, vêem-se pessoas cristãs sobre a campa e isso impressiona-te. Já Telavive é uma cidade com outra mentalidade, muito para a frente, com praia e calçadão enorme onde se vêem pessoas a fazer desporto. Depois há muita vida nocturna. Tocam-se os extremos.
Já agora, e Be’er Sheva?
Fica no sul, rodeada por deserto, e é uma cidade em crescimento há 20 anos. Nota-se o aumento de centros comerciais e restaurantes.
Muito obrigado Miguel pelo depoimento, grande abraço.
Obrigado eu pela oportunidade de falar sobre as últimas semanas. Abraço a todos.