28 set, 2023 - 18:00 • Rui Miguel Tovar
Jogo de palavra, eis o pontapé de saída de mais um podcast da Renascença. À nossa frente, uma figura inimitável: António Simões, ainda hoje o mais jovem campeão europeu de clubes, aos 18 anos e 139 dias, marca alcançada em 1962, num 5:3 entre Benfica e Real Madrid, em Amesterdão.
A sua vida dará um livro. Afinal, o homem estreia-se pelo Benfica na decisão da Taça Intercontinental, vs. Peñarol, em Montevideo, estreia-se pelo Benfica na 1.ª divisão vs. Sporting e estreia-se pela seleção portuguesa vs. Brasil. Tudo grandes momentos, tudo clubes do alto. Como se isso fosse pouco, a sua camisola número 11 do Benfica está no museu do Manchester United, cortesia George Best.
Começamos por aí. Simões e Best trocam de camisolas em 1968, longe de saberem que se iriam encontrar na mesma equipa dos EUA daí a dez anos. Qual o sentimento de ver uma camisola sua no museu de um dos clubes mais históricos do mundo?
Em primeiro lugar, cumprimentar os ouvintes e agradecer o convite para este novo programa que parece que vai ter interesse. Também agradeço a atenção que teve para comigo neste resumo do início da minha carreira. Obviamente que é uma honra, extremamente elegante, simpático e carinhoso estar exposto no museu do Manchester United. Mais tarde, na tal equipa dos EUA chamada San Jose Earthquakes, tive a oportunidade de conviver com o George Best como homem e ser humano, com virtudes e defeitos de qualquer um, e foi um privilégio porque posso falar sobre um rei do futebol.
"Mundial 66? Pelé foi sincero comigo e disse-me: ‘baixinho, eu não estava em condições'"
Por falar em rei e EUA, não é verdade que o Pelé nutria por si uma grande admiração e até lhe tinha reservado uma alcunha?
É verdade, sim. E cheguei a falar com ele duas semanas antes da sua morte. Ele teve o cuidado e o interesse de falar comigo e fiquei muito sensibilizado. Dentro do campo, ele tinha um carinho muito grande por mim e deu-lhe para me tratar por baixinho sempre que nos encontrávamos. Baixinho assim, baixinho assado. E há uma história muito bonita e interessante, jogava ele no Cosmos de Nova Iorque e eu no Minutemen de Boston. Ele estava no início da sua aventura nos EUA e a equipa era fraca. Bem, marcámos cinco golos.
Cinco-zero ao Cosmos.
Cinco-zero. A determinada altura, percebi que o Pelé estava completamente desapontado. Meu deus, estava zangado, coitado. E eu disse-lhe ‘você nunca chega a lado nenhum com esta equipa.’ E ele respondeu-me assim: ‘Está vendo, estou dando uma bola e devolvem-me uma abóbora.’ Veja bem a forma expressiva e bem-humorada como ele interpretou aquilo a meio do jogo. Mais tarde, tirámos uma fotografia lindíssima à civil. Tenho-a lá em casa, autografada por ele, e é daquelas memórias boas do futebol.
Já agora, e por falar em Pelé, recuamos até ao Mundial-66. O Simões marca ao Brasil num jogo em que Pelé já entra manco. Como é que foi a troca de palavras durante o jogo?
Nós tomamos conhecimento que o Pelé se tinha magoado no primeiro jogo do Brasil, com a Bulgária. Tanto assim é que nem jogou o segundo jogo, com a Hungria. Como perderam, vieram jogar desesperadamente porque o Brasil tinha de ganhar a Portugal por dois golos de diferença. Era uma missão difícil, tendo em conta que o Pelé não estava bem e entrou em campo a passo. Nós notámos isso, ele entra já a coxear. Bom, é claro que os brasileiros exploraram muito aquela entrada do Morais.
As entradas, foram duas.
Foram duas, sim, uma atrás da outra. E não as deviam ter feito. Nem a Pelé nem a ninguém. Não foi nada simpático, digamos assim. Anos e anos depois, o Pelé foi sincero comigo e disse-me: ‘baixinho, eu não estava em condições.’ A justiça do reconhecimento espontâneo e sincero do Pelé para comigo é outra grande vitória de Portugal nesse jogo do Mundial.
"‘Tenemos que comprar este pequenito’. O Boca Juniors veio a Lisboa e tentou levar-me, só que os clubes é que tinham a palavra e o Benfica disse não"
O Simões foi extremo-esquerdo, também deve ter apanhado uns defesas mauzinhos.
Era complicado, era. Mas como era irreverente e ainda jovem com os meus 17, 18, 19 anos, não tinha medo de nada. Recordo um episódio muito engraçado, em Guimarães, no pelado da Amorosa, com um lateral brasileiro chamado Caiçara. Não era assim um rapazinho muito bom de coser e provocou-me antes do jogo, à entrada do balneário. Ouvi uma coisa de ‘vou bater aí no baixinho, ele vai driblar e eu para cima dele’. Estava acompanhado pelo Mário Coluna, que me disse ‘deixa isso comigo, vai lá direito a ele, dribla e faz o que quiseres, deixa ele comigo.’ Fiquei com a moral em alta e plenamente convencido de que era possível passar por ele. E isso aconteceu. Ganhámos 4:3 e, por acaso, fiz um golo. Nunca fui um goleador. Chovia e havia imensas poças de água no pelado. Lembro-me perfeitamente de uma situação em que percebi com antecedência que a bola ia parar no meio de uma poça. Chego primeiro, pico a bola para sair da poça e ele [Caiçara] vem para fazer a tesoura. Deve ter escorregado ou qualquer coisa, abriu demais as pernas e saiu de campo com uma lesão na virilha. Passámos a jogar com mais um. São pequenas histórias que nós temos.
É isso que alimenta o futebol.
É mesmo. Tenho outro exemplo de um lateral, jogou no Vitória de Setúbal e Lusitano de Évora. Era o Polido e nunca passava por ele. Também sentia o mesmo com o Carlos Alberto Torres, da seleção brasileira. Parece que adivinhavam as minhas jogadas. Deixe-me partilhar uma coisa, ó Rui, sobre os meus três pilares da vida. O primeiro é a família, cresci dentro de uma casa com muito carinho e fraternidade. O segundo é a escola, estudava na Escola Emídio Navarro. Fui um excelente aluno, sobretudo a matemática, embora nunca tenha tirado um 20. Como tinha a mania de jogar à bola, falhava sempre uma conta ou assim. A minha professora de matemática ficava, nem imagina. O vício da bola era superior a qualquer matéria.
E o terceiro pilar?
O Benfica. Entrei no Lar do Jogador, conheci gente fantástica e cresci ao lado dos mais velhos como Coluna, Costa Pereira, Germano, Cavém, Mário João.
O que era o Lar do Jogador?
Era uma casa para jogadores solteiros do Benfica. Quando havia jogo, os casados também dormiam lá.
Entravam quando, os casados?
À sexta-feira.
Para um jogo ao domingo?
Isso mesmo, de sexta até segunda. Se houvesse jogo da Taça dos Campeões Europeus, ficávamos lá durante uma semana inteira.
E os horários?
Tínhamos de estar no Lar até às dez e meia da noite.
E se não estivessem?
Multa, claro.
Quanto?
Por norma, 500 escudos.
Qual era o salário?
Dois mil e 500.
E os casados?
A mesma coisa, às dez e meia havia quem fosse bater à porta das suas casas para saber se estavam lá.
E se estivessem na cama, por exemplo?
Tinham de se levantar para a se apresentar ao serviço.
E não havia folga de horários?
Só às segundas-feiras. Aí podíamos chegar ao Lar à meia-noite, era o dia de folga, era o dia da recuperação, era o dia para ter juízo, ahahah.
Quem tomava conta de vocês no Lar?
Era a dona Otília, a governanta. E também funcionava como mãe, avó, irmã. Tratava-nos por meus meninos. O seu marido era o senhor Teixeira, era ele quem batia à porta da casa dos casados.
"Jorge Sampaio disponibiliza-se para ajudar na construção do Sindicato dos Jogadores. Era um grande apaixonado do futebol. Saía de casa a chover para ver o Benfica na Taça dos Campeões"
Já disse aqui que nunca fui um goleador, mas o Simões marcou um grande golo em 1972 com a criação do Sindicato dos Jogadores.
Exactamente, foi um momento marcante na minha carreira.
É o António quem começa?
Começo essa luta com o doutor Jorge Sampaio, juntamente com outros jogadores como Toni, Artur Jorge, Hilário, Eusébio, Pedro Gomes. E luta porque a sociedade olha-nos de uma maneira diferente. O doutor Jorge Sampaio disponibiliza-se para ajudar na construção do sindicato, é ele quem cria os estatutos e os redige.
Como aparece o Jorge Sampaio?
Uma pessoa do sindicato apresenta-nos um advogado, que, por sua vez, nos fala de outro advogado. É ele, Jorge Sampaio, um grande apaixonado do futebol. Vou dizer-lhe, o Jorge Sampaio saía de casa a chover para ver o Benfica na Taça dos Campeões. Mais tarde, Jorge Sampaio foi um presidente simplesmente extraordinário, uma pessoa justíssima, directa, objectiva.
E humana.
E humana. Ele interessou-se muito por fazer justiça no futebol português.
"Tenho três pilares na vida: a família, a escola e o Benfica"
E como tudo começou?
Com o Boca Juniors. O Benfica fez dois jogos com o Boca Juniors nos EUA, um em São Francisco e outro em Los Angeles. As duas equipas ficavam no mesmo hotel e o que aconteceu no campo? Aconteceu que Deus nosso Senhor deu-me dois dias bons, aquilo foi uma coisa diabólica. Foi de tal maneira que o capitão do Boca, um tal senhor Rattín, que foi expulso com a Inglaterra no Mundial-66, virou-se para o Alberto Armando, presidente do Boca Juniors, durante uma viagem de elevador no nosso hotel e comentou ‘tenemos que comprar este pequenito’. O Boca Juniors veio a Lisboa e tentou levar-me, só que os clubes é que tinham a palavra e o Benfica disse não. Aí nasceu um conflito entre mim e o Benfica. O clube tinha todos os direitos laborais sobre os jogadores. Foi essa a luta para a criação do Sindicato. Nasceu então a Lei da Opção, que obrigava os clubes a pagar 30% ao jogador. Em 1995, veio a Lei Bosman para toda a Europa, depois Mundo. Porque não dizer a Lei Simões nasceu em 1972 em Portugal? O Sindicato dos Jogadores foi o terceiro sindicato de Portugal, criado ainda antes da revolução.
Mudou o futebol.
Claro. Entusiasmei-me e fiquei ligado para sempre. Sinto orgulho. E vou dizer-lhe com toda a sinceridade, era difícil aquela época. Lembro-me de uma viagem da selecção portuguesa a Moçambique para jogar com o Brasil e aquilo não correu muito bem.
Inauguração do Estádio Salazar?
Exactamente. Houve liberdade a mais e organização a menos. Como não gostava nada dessas coisas, disse-o frontalmente. Disse que já não era uma honra jogar por Portugal. Assim que cheguei ao aeroporto em Lisboa, fui interceptado por duas pessoas e tive de me explicar. E admito que teria tido imensos problemas se não fosse jogador do Benfica.
Só mais uma pergunta sobre o sindicato: as reunião com o Jorge Sampaio eram às claras ou às escondidas?
Fizemos algumas em espaços públicos, na Feira Popular. Ou então no escritório dele e até em minha casa, em Benfica.
E era perigoso?
Tínhamos de o fazer, sem olhar a essas coisas. Éramos futebolistas a lutar pelos nossos direitos por uma classe com dignidade. Naquela altura, nenhum pai queria a filha a namorar com um futebolista, Deus me livre. Porque o jogador da bola não sabe ler, não sabe escrever, o malandro não quer trabalhar. A sociedade olhava para o jogo dessa maneira.
"A minha primeira grande referência foi o Albano, dos Violinos. Vi-o jogar no campo do Barreirense e fiquei fascinado"
Outra situação que mudou com a Simões foi aquela saudação aos adeptos no Estádio da Luz.
Importei-a durante uma digressão à Ásia, três jogos no Japão com a selecção japonesa. A saudação de nos curvarmos à frente dos adeptos não nasceu na Luz, e sim no Jamor, porque estávamos a jogar em campo neutro por culpa de uma invasão de campo em Janeiro 1970, num jogo com o Belenenses. Quando jogámos com o Japão, todos os seus jogadores faziam-nos a saudação e depois repetiam o gesto com o público. Lembro-me de ter falado com o Toni, o Artur Jorge e mais uns quantos sobre a ideia de transportar a saudação para Portugal. E fizemos aqui.
Estamos em semana de clássico, que jogadores do FC Porto lhe ficaram na memória?
Eu joguei com o Hernâni, que jogador, um dos melhores da história de Portugal, de quem quase ninguém fala. No primeiro jogo pela selecção portuguesa, foi o Hernâni quem jogou ao meu lado, tinha quase idade para ser meu pai. Era fantástico. E havia outros como Perdigão, Teixeira, Jaburu. E também havia bons treinadores.
No seu tempo de jogador do Benfica, entre 1961 e 1975, o FC Porto nunca foi campeão nacional. Agora tudo é diferente e o FC Porto nem perde na Luz há quatro anos.
O FC Porto da minha época de jogador teve sempre grandes jogadores, bons treinadores e equipas. Só que coincidiu com uma geração fantástica do Benfica e um Sporting muito organizado. Devo dizer que a minha primeira grande referência foi o Albano, dos Violinos. Vi-o jogar no campo do Barreirense e fiquei fascinado. Como também fiquei fascinado com um extremo do Sporting chamado Seminário.
O peruano.
Meu Deus do céu, que jogador. Sou benfiquista a não sei quantos por cento, não sei se chega aos mil. Mas nunca fui capaz de não perceber que havia outros clubes com jogadores extraordinários. É essa cultura desportiva que eu noto ausente no futebol português. E tenho pena, porque o futebol vai muito mais além de um desporto e já é um negócio. É um negócio em que toda a gente está de acordo, toda a gente reconhece o futebol como um negócio e, depois, ninguém consegue vender o produto. E fico danado, revoltado. O único momento de antagonismo no futebol devem ser os 90 minutos mais os acréscimos. No resto do tempo, todos temos de ser parceiros. Se todos vendem o mesmo produto, tem de haver credibilidade. Caso contrário, não vendem nada. Se um produto não tiver qualidade, não vende nada. Aprendi isso em 1975, quando fui para os EUA com o Eusébio. Chegámos ao balneário e vimos as nossas camisolas com os nossos nomes nas costas. O Eusébio só dizia ‘olha para isto, os nossos nomes’. Começou aí, aprendi muito nos EUA e tive mundo que me ajudou a ser a pessoa que sou hoje.
"Faz parte da cultura do FC Porto impor-se através de uma agressividade física e também de inteligência"
De volta ao clássico de sexta-feira, o que me diz aos quatro anos do FC Porto sem perder na Luz?
Uma coisa é óbvia: faz parte da cultura do FC Porto impor-se através de uma agressividade física e também de inteligência. O FC Porto mostra isso e domina. Obviamente que muitas coisas que acontecem nos levam a pensar que sempre tiveram a postura mais correcta, que nem sempre essa cultura foi aberta e elegante, mas a verdade é que funciona. E sabe o que acho? Na minha simples opinião, o Benfica, que tem valor e talento, tem de ter agressividade no pensamento. É isso que se recomenda. E quem deve apresentar isso chama-se Roger Schmidt. É ele quem sabe melhor quem está mais forte, mais agressivo para um jogo dessa natureza. Estou com um feeling que desta vez vai correr bem, embora a tradição diga que há quase um complexo de inferioridade por parte do Benfica nos jogos com o FC Porto.
No século XXI, só na Luz e para a 1.ª divisão, o FC Porto tem 10 vitórias e o Benfica só cinco.
Francamente, não pensei que fosse assim. Mas é mais um estímulo e um desafio perante essa estatística.
Qual é a forma de desafiar a estatística?
Tem de meter todo o talento no jogo, sem desequilibrar, como é lógico. Se é com Neres ou Di María? Se são dois talentos e estão em força, devem jogar os dois. Agora discutir se é um ou outro… Todos os jogos precisam de talento, precisam de jogadores que expressem o seu talento para evitar jogos maçadores. Todos nós, espectadores, queremos levantar-nos durante o jogo, estamos sempre à espera de coisas inesperadas, diferentes. E isso tem a ver com o quê? Talento, arte. Em movimento.
Falou há pouco do Roger Schmidt, porquê?
O conhecimento chegou a toda a gente, já não há segredos daqui até ao Japão. E os jogadores são todos melhores atletas, todos bem treinados. A questão de fundo tem a ver com o ensino. Às vezes, vejo bons jogadores durante três /quatro anos e não reparo em mudanças, são sempre os mesmos, com as mesmas virtudes e as mesmas qualidades. E isso não é bom, o jogador tem de ser ensinado a melhor as qualidades e a suprir os defeitos. Por isso, o treinador deve ensinar mais. Estou a ler um livro do Pat Riley [ex-jogador e treinador ganhador na NBA] e ele diz ‘chegou o momento de um treinador perceber que treinar não chega, tem que começar a ser professor’. Porquê? Porque há jogador que cometem erros e isso não faz sentido. O treinador também tem de ser professor.
Muito obrigado António, grande abraço.
Obrigado eu.