09 jan, 2025 - 07:00 • Susana Madureira Martins , Beatriz Pereira (Renascença) e Sónia Trigueirão (Público)
Oito meses após a tomada de posse, o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) explica que o plano de reestruturação que está a ser aplicado prevê um conjunto de alienações de imóveis que pode chegar aos 80 milhões de euros. A primeira hasta pública resultou numa receita de 700 mil euros, diz Paulo Duarte de Sousa em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e do jornal Público.
Paulo Duarte de Sousa recusa pedir empréstimos à banca para fazer reabilitação de imóveis que são propriedade da SCML. A intenção da provedoria é ter “endividamento zero” e ir eliminando os atuais dois milhões de euros gastos em rendas. O provedor fala de um caso em que a Santa Casa arrendava um imóvel em Benfica, desde 2015, com uma renda de 2.917 euros. “Esse imóvel nunca teve qualquer uso” e o houve rescisão de contrato, explica.
Por outro lado, garante que o despedimento de trabalhadores da Santa Casa não está em cima da mesa e que continua a "contar com as pessoas que lá trabalham”. O programa de reformas antecipadas está a correr melhor do que o projetado e teve um “impacto” de 455 mil euros.
O seu mandato como provedor é de três anos. Qual é o objetivo? É arrumar a casa e ter contas certas?
O primeiro objetivo é implementar um plano de reestruturação que foi apresentado à tutela, aprovado e que está em implementação. Há uma componente financeira, que pretende garantir a sustentabilidade futura da instituição que teve um período longo de uma atividade deficitária, prejuízos ano após ano. Temos de conseguir recompor as nossas contas e ganhar espaço para ter uma situação mais estável no futuro, conseguindo ao mesmo tempo que a Santa Casa cumpra a sua missão de apoio aos mais frágeis.
Além disso, a receita dos Jogos não é exclusiva da Santa Casa. Ela é distribuída por um conjunto muito relevante de instituições. A Santa Casa tem uma quarta parte, cerca de 26%. Depois, a Santa Casa tem também um parque de ativos imobiliários muito significativo, pouco rentável e que tem de se tornar uma das fontes de receita.
Disse no Parlamento que, ao contrário da mesa anterior, tem um plano de reestruturação e uma estratégia. Quais os objetivos que pretende alcançar?
Um plano de reestruturação é um instrumento que identifica programas, medidas, iniciativas que são devidamente calendarizadas. Um primeiro objetivo foi acionar um conjunto de medidas, que tivessem impacto imediato. E isso é, acima de tudo, visível em duas grandes áreas. No programa de garantia de receita, onde pretendemos ter fontes alternativas que aumentem as receitas que permitem o funcionamento da Santa Casa…
De que fontes alternativas é que estamos a falar?
Por exemplo, do imobiliário. Mas os próprios jogos sociais. Recordo que quando tomámos posse em maio, os jogos sociais tinham uma variação negativa de 5,8% face ao ano anterior. Para uma atividade que, no total, significa 3.300 milhões de euros ano, é muito significativo. Um dos primeiros sentimentos que tive quando reunimos o Conselho de Jogos foi de preocupação pela previsão de diminuição das receitas. Ainda não temos as contas encerradas, e é precipitado fazer qualquer tipo de julgamento mais profundo, mas acho que somos capazes de chegar ao dia de hoje e dizer que os beneficiários dos jogos sociais de Estado vão ter, em 2024, uma receita superior à que tiveram em 2023. Era necessário introduzir um conjunto de medidas que permitissem que esta realidade se equilibrasse.
Depois, uma outra área ao nível dos custos. Era preciso acionar um conjunto de medidas que permitissem que a base de custos não crescesse. E há um conjunto de outras dimensões, nomeadamente o programa de investimento e desinvestimento. Pela primeira vez, a Santa Casa passou a ter um normativo perfeitamente claro, onde se define quais são os ativos que são alvo desse plano e que tem de ser apreciado por uma comissão independente que foi criada e que emite parecer.
E depois há um outro ponto, muito mais relevante para o futuro da Santa Casa, que é a área da eficiência operacional, da transformação digital, da inovação.
Está otimista em relação às receitas de 2024. Onde vão ser aplicadas?
O Programa de Investimento e Desinvestimento estabelece exatamente uma matriz de aplicação dessas receitas. O foco principal é reforçar a posição de tesouraria. Estaríamos confortáveis quando a posição da tesouraria líquida atingisse 100 milhões de euros. Temos ainda um caminho pela frente.
Em relação à reestruturação. O que vai implicar em termos de recursos humanos?
Continuamos a contar com as pessoas que lá trabalham. Naturalmente, desenvolvemos iniciativas, programas que possam ir ao encontro até de algumas expectativas que a organização tinha, por exemplo, a existência de um programa de pré-reformas que lançámos e que vai permitir resolver um tema que é a pirâmide etária da Santa Casa.
As componentes das pessoas com maior idade são muito relevantes face às componentes daqueles que são mais jovens. Até aos 25 anos é 1% da pirâmide etária. Não é normal, porque há toda a transmissão de conhecimento que vai ser necessário fazer e até porque há funções que exigem ter gente mais jovem.
Como é que está a correr esse programa de reformas antecipadas?
Bem. Foi lançado em outubro e durou um mês e poucos dias até novembro. Ultrapassámos em muito o objetivo: tínhamos estabelecido que o programa tinha de ter impactos anuais na ordem dos 220 mil euros e o impacto que foi atingido foi de 455.657,70 euros.
Houve mais pessoas a pedir reforma antecipada do que estavam à espera?
Eventualmente, perfis diferentes daqueles que tínhamos previsto. Estimávamos que na primeira tranche pudessem sair cerca de 30 pessoas e saíram 33. A estrutura de remuneração de algumas pessoas é que era diferente e, portanto, o impacto foi superior.
Está previsto algum plano de rescisões amigáveis?
Não. Nem despedimentos. Tem havido pessoas que saem da Santa Casa por iniciativa própria.
Vai manter este programa de reformas antecipadas com uma meta anual?
Sim, e gerindo também o tema das próprias reformas, porque havia uma tradição na Santa Casa de que algumas pessoas, mesmo chegando à reforma, depois voltavam a celebrar contratos para continuarem em funções.
A antiga provedora Ana Jorge disse, no Parlamento, que havia famílias inteiras a trabalhar na Santa Casa. Tem conhecimento desta situação? Havia até uma família com mais de 20 pessoas na Santa Casa.
Acho que a Santa Casa é uma estrutura com uma cultura muito própria. E foi essa cultura que no passado terá permitido que se desenvolvesse uma prática que era normal, que os familiares de colaboradores também lá trabalhassem. O que é muito relevante e não pode acontecer é que alguém que tem um familiar a exercer funções e está em claro conflito de interesses possa continuar nessas funções. Não podemos ter alguém que tem uma relação com outra pessoa e que é superior hierárquico dessa pessoa.
E isso acontecia? Ou acontece ainda?
O que eu gostaria era que não acontecesse hoje. Dirigimos uma comunicação a todos os colaboradores com um conjunto de requisitos para que, se estiverem em situação de conflito de interesses, têm de o declarar.
E já alguém declarou alguma coisa?
Sim.
Muitas?
Há bastantes.
Como é que estão a ser resolvidas?
Com normalidade. A partir do momento em que se estabelecem regras, passa a ser um processo normal.
No plano de reestruturação existe um valor de outros rendimentos que está inscrito anualmente até 2027, na ordem dos 31 milhões de euros. Qual é a origem deste valor?
Há várias linhas de geração de valor. Temos previsto fazer um conjunto de alienações. Primeiro, de um conjunto de participações que não eram estratégicas e que não acrescentavam valor à missão da Santa Casa nem rendimento. A primeira foi uma participação no Hospital CUF Belém. Foi concluído o processo no ano passado. Havia também uma carteira de ações em títulos cotados, que não geravam rendimento. Também estão em alienação.
E depois há a componente dos ativos imobiliários. Nenhuma transação se fará em que a contrapartida da venda seja destinada à tesouraria. Todos os montantes que sejam provenientes deste plano de investimento e desinvestimento são exclusivamente para investimento. Ao contrário do que se fez no passado, as vendas não vão alimentar a tesouraria corrente. Depois, a carteira imobiliária é muito grande. Tem alguns ativos que são prédios com uma construção antiga, que exigem manutenção. Estão num estado de degradação muito elevado, têm uma taxa de desocupação de cerca de 43% e, portanto, é preciso investir. Para investir é preciso ter recursos. E, naturalmente, contamos com essas alienações para gerar recursos e um conjunto de rendimentos extraordinários. O que é que se tenta aqui fazer? Criar um círculo virtuoso de desinvestimento para investir. Ninguém pode estar perante uma carteira como a da Santa Casa, de imóveis, muitos deles no centro de Lisboa, todos fechados, sem qualquer uso, alguns com intimações camarárias para fazer obras.
Qual é o valor dos imóveis da Santa Casa?
O valor total da carteira de ativos, incluindo os que são de serviço próprio e os que são de rendimento, é perto de mil milhões de euros.
E que parte é que vai poder ser alienada?
O objetivo são cerca de 80 milhões de euros em alienações, mas muitas delas não são alienações efetivas. Porque também está previsto que uma grande parte desse montante, logo que consigamos atingir os 100 milhões de tesouraria corrente, seja reinvestido na própria carteira. Portanto, há ali um gap entre o momento da venda até ao momento que se volta a investir, mas a carteira vai rodando e, portanto, o valor volta a integrar a carteira e muitos dos ativos até podem vir a ter valorizações significativas pela intervenção que se vai fazer.
Mas é mesmo necessário vender património? Não valeria mais a pena pedir um empréstimo à banca?
No nosso entendimento, não. Por uma simples razão. A taxa de rentabilidade da carteira é hoje muito baixa, 1,9%. E, portanto, financeiramente, não faz sentido esse raciocínio. Para além disso, temos uma política de, tendencialmente, ter endividamento zero. Achamos que é saudável para uma instituição como a Santa Casa não ter um endividamento significativo. E não tomar iniciativas que conduzam ao agravamento da situação. Não faz sentido ir reabilitar património através de endividamento.
Disse no Parlamento que a Santa Casa está a pagar quase dois milhões de euros em rendas. Quanto está neste momento a pagar e quanto é que prevê pagar no final dessas alienações?
Temos de separar rendas e vendas. A Santa Casa arrendava um imóvel na Rua de Pedralvas, em Benfica, desde 2015. Pagava uma renda de 2.917 euros. E esse imóvel nunca teve qualquer uso. Rescindimos o contrato.
Depois, na área dos jogos, tínhamos um conjunto de quatro armazéns a apoiar a exploração. Simultaneamente, no início de 2024, tinha sido inaugurado um novo centro logístico num contrato de arrendamento, que também foi feito, com um fundo de investimento de um montante muito significativo, na zona de Cabra Figa, que estava claramente pouco utilizado. Acabámos por negociar a rescisão antecipada de dois contratos de arrendamento desses armazéns, um de 9.180 euros por mês, o outro de 19.179 euros por mês. Transferimos todos os artigos para o nosso centro logístico e deixámos de pagar quase 30 mil euros por mês em rendas. São menos 300 mil euros por ano. Temos uma área de acompanhamento de proximidade, na zona dos Olivais, onde pagamos mais de 25 mil euros por mês. A Santa Casa tem um edifício devoluto a necessitar de obras a menos de 500 metros onde pode instalar essas equipas, assim que estiver concluído o processo do licenciamento de obras e a sua realização.
É esta dinâmica que é preciso encontrar e ir tomando medidas para que, a pouco e pouco, seja possível eliminar - eu diria que é muito ambicioso, mas quase tender para zero, que era isso que gostaríamos ao longo dos anos - esses cerca de 2 milhões de rendas.
Ou seja, a Santa Casa tem imóveis próprios que pode utilizar e deixar de pagar rendas?
Exatamente. E é isso que fará e que está a fazer. Demora algum tempo, mas vai ser feito com respeito pelos proprietários e pelos que utilizam os espaços.
A propósito ainda do património, o Tribunal de Contas já respondeu à dúvida colocada pela anterior mesa sobre a forma técnica como deve ser avaliado o vasto património da Santa Casa? Nos últimos relatórios de contas houve uma diminuição de cerca de 58 milhões do valor do ativo, devido a uma alteração feita na forma de avaliação.
Não temos ainda conhecimento da resposta. Temos um auditor e respeitamos o papel do nosso auditor que definirá o que são os princípios contabilísticos relevantes que se aplicam às demonstrações financeiras.
E qual é a sua opinião?
A minha opinião é que hoje é bem mais fácil escolher um método de avaliação do património da Santa Casa. Porque, pela primeira vez nos últimos anos, a Santa Casa tem uma abordagem de mercado. Por exemplo, uma abordagem de justo valor, ela existe quando há transações. Ora, se a carteira não mexia, como é que era possível ter uma abordagem desse tipo? Pela primeira vez, há uma hasta pública que foi feita, há uma segunda que está, neste momento, em curso. Haverá uma terceira, uma quarta, as que forem necessárias. Agora, há finalmente medidas claras de perceção de valor que o mercado atribui aos imóveis que são alienados.