28 nov, 2024 - 07:00 • Ana Catarina André (Renascença) e Ana Dias Cordeiro (Público)
O prometido estudo nacional sobre abusos sexuais ainda não saiu do plano das intenções, avança a nova presidente da Comissão Nacional da Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ).
"Procurei saber o que estava a acontecer com esse estudo e nada encontrei. Portanto, não houve ainda nada", admite Ana Isabel Valente, em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e jornal Público.
A nova presidente da CNPDPCJ, Ana Isabel Valente, foi nomeada em agosto para assumir o cargo em regime de substituição e deverá ser confirmada depois de concluído o concurso cuja abertura foi solicitada à Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP).
A jurista de 62 anos é, desde 2017, vereadora na Câmara Municipal de Sintra, na área das políticas sociais, e assim vai continuar, acumulando com a presidência da CNPDPCJ.
Foi nomeada pela ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Maria do Rosário Palma Ramalho, com quem passou a privar desde que foram colegas na Faculdade de Direito da Universidade Católica. Antes de ser autarca, Ana Isabel Valente passou pela direção de serviços de consultadoria jurídica e contencioso da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Perante a exigência do cargo que agora ocupa, a dirigente diz, em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e jornal Público, que conta com o conhecimento e dedicação de uma equipa de profissionais que há muitos anos trabalham na comissão nacional.
Nestes três meses e pouco de atividade, como tem sido o contacto com as comissões de proteção de crianças e jovens no terreno?
As comissões de proteção são 313 pelo país todo e é complicado estar a ir a todas. Tenho aproveitado os encontros regionais, feitos regularmente pela comissão nacional, em que estão presentes todos os presidentes e secretários das comissões de proteção de crianças e jovens (CPCJ) daquela área geográfica, para me ir apresentar às comissões.
Ainda falta a região Centro, mas porque têm sido uns meses muito intensos de trabalho e ainda não houve oportunidade de conjugar calendários. Também falta o da Madeira, que será em dezembro. Os comissários que exercem as funções de presidente e de secretário têm-me dado nota do que precisam em cada uma das suas comissões nos encontros regionais, muito embora o meu telefone e o meu email estejam sempre disponíveis para eles.
Tem havido famílias sinalizadas às comissões, não porque os pais colocam os seus filhos em perigo, mas porque perderam a casa. E nalguns casos são sinalizados como uma situação de negligência, não estando a família a negligenciar a criança. Como se resolve este problema?
Esse problema tem de ser resolvido num contexto mais alargado e juntamente com os municípios. Os municípios são muito importantes, devido à proximidade que têm com os casos. Não é só a criança que está em perigo. É toda a família, é todo o contexto familiar que estará em perigo porque não tem habitação. No caso das CPCJ, o seu papel é a protecção da criança, mas [a resolução do problema] tem de ser conjugada com o município de forma a arranjar-se uma solução para a família.
Existe o risco de as crianças serem retiradas à família, se esta não tiver casa?
Pode haver. As crianças viverem na rua não é admissível. Se formos mais longe, também não é admissível haver famílias a viverem na rua. E isso tem de ser ponderado. Se não é possível encontrar uma solução mesmo rápida para essas questões, terá de ser encontrada uma solução para a criança que não a deixe ficar na rua. São as CPCJ que avaliam, fazem o diagnóstico e veem se é uma situação limite na qual têm de retirar a criança ou se encontram outras formas para resolver o problema todo da família.
"A violência interpares está a ser muito motivada pelo mundo virtual, pela Internet. Isso é uma preocupação"
Existem casos desses?
Eu não tenho conhecimento dos casos e também não queria falar de situações particulares. Até porque as CPCJ têm autonomia relativamente às situações. A comissão nacional faz auditorias às CPCJ, mas não relativamente aos casos. É só relativamente ao seu funcionamento, se funcionam com todos os membros como previsto na lei, por exemplo. Essencialmente, são auditorias ao funcionamento e à organização das CPCJ. Nunca aos casos. O Ministério Público é que faz inspeção aos casos.
Também tenho de dizer que a maior parte dos casos, em todas as situações de perigo, são resolvidos em meio natural de vida. Ou seja, são junto da família, seja ela uma família restrita ou uma família alargada. E só quando não é possível vamos para o acolhimento familiar ou residencial.
Quais são as situações mais comuns de perigo? E quais são as novas situações que configuram novas tendências?
As mais comuns são a negligência [dos pais], o absentismo escolar, os maus tratos e a violência doméstica. Por outro lado, estão a aparecer as situações online. Por exemplo, os jogos online que levam por exemplo à automutilação [do jovem], e as situações do bullying. A chamada violência interpares está a ser muito motivada pelo mundo virtual, pela Internet. Isso é uma preocupação.
A comissão nacional, a que agora preside, foi encarregue pelo Governo anterior de elaborar um estudo nacional sobre abusos sexuais na infância nos diferentes contextos sociais. A sua antecessora disse que este estudo seria feito com base em dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). Parece-lhe suficiente usar os dados já existentes para fazer um retrato desta realidade?
Eu julgo que não será suficiente. Soube desse estudo, foi-me feito um alerta. O estudo ainda não existe. A única coisa que existe neste momento são os dados. Mais nada aconteceu. Houve, de facto, uma intenção de fazer o estudo. Mas este é um estudo que não será feito com a prata da casa, naturalmente. Será um estudo científico apurado com base em dados do INE, mas neste momento só existem os dados do INE. Não houve evolução [face à intenção anunciada pelo anterior Governo].
A elaboração do estudo continuará a ser competência da comissão nacional, como o anterior executivo definiu, ou será o Governo a definir quem vai fazer esse estudo?
Calculo que será uma competência da comissão nacional. Procurei saber o que estava a acontecer com esse estudo e nada encontrei. Portanto, não houve ainda nada. Claro que estes estudos precisam de financiamento e terei de o tentar obter de outra forma [e sem uso dos recursos da comissão]. Claro que o Governo não está fora disto, a tutela não poderá estar fora disto.
Vai pedir ao Governo o financiamento?
Espero naturalmente que ele possa ser feito, vou falar com a tutela no sentido de estabelecer aqui prioridades.
Ainda sem qualquer prazo definido para avançar?
Sim, não tenho previsão sequer para a elaboração do estudo porque realmente a única coisa que neste momento existe são os dados.
Entre si e a sua antecessora, a Dr.ª Rosário Farmhouse, houve uma passagem de pasta em que foram discutidos os assuntos da transição?
Não houve. A doutora Rosário saiu e eu entrei.
Como teve conhecimento dos assuntos que estavam a ser tratados pela anterior presidente da comissão nacional?
Procurando, não é? A minha vice-presidente é a mesma, a Dr.ª Maria João Fernandes. Por isso há aqui uma continuidade. O trabalho nesse aspeto continuou. As organizações são as organizações e valem também por elas próprias. As pessoas continuam, os colaboradores, os trabalhadores da comissão nacional são os mesmos, trabalham com condições escassas, com recursos escassos, mas são de um empenho e de uma dedicação inexcedíveis.
Mas não teria sido natural essa passagem de informação entre lideranças?
Não aconteceu...
As comissões têm escassos recursos mas muitos processos instaurados, logo poucos técnicos para os processos iniciados e ainda para acompanhar os mais antigos. Pode surgir uma nova situação de perigo na família [já estabilizada] sem estar garantido esse acompanhamento. Não existe o risco de se estar aqui a negligenciar o cuidado das crianças?
Os recursos na administração pública são escassos em todo o lado. E as CPCJ trabalham sob um modelo de representação. As CPCJ têm uma comissão alargada que é representada por variadíssimas entidades; e depois uma comissão mais restrita de cinco pessoas onde tem de estar, obrigatoriamente, um comissário oriundo da Segurança Social, outro do município, outro da Saúde e outro da Educação, e mais um que poderá ser ocupado por uma IPSS [Instituição Particular de Solidariedade Social]. Esta é a estrutura da CPCJ. As próprias entidades representadas têm dificuldades de recursos humanos para os disponibilizar a tempo inteiro para as CPCJ. É um problema que temos e que estamos a tentar resolver, valorizando mais os próprios recursos humanos que trabalham nas CPCJ.
Como é que, concretamente, se vai resolver esse problema? Haverá ou não reforço das equipas?
Neste momento, há um grupo de trabalho que está a estudar, precisamente, essas questões, e [o resultado] pode passar por alterações a nível da composição e do funcionamento das CPCJ [como definidos] na Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. Não queria estar a adiantar o que o grupo de trabalho está a fazer, mas a ideia é essa: é reforçar as equipas e também alterar a forma de funcionamento para poderem mais expeditamente chegar aos casos.
Esperam-se novidades deste grupo de trabalho?
Haverá novidades no princípio do ano.
Vai ser repensado o modelo?
Está a ser repensado. Não será nenhuma revolução. A ideia é aprofundar e melhorar este modelo.
Ainda sobre as comissões locais, as 313 CPCJ, embora tenham autonomia, precisam de uma liderança que lhes transmita segurança. Como vai caracterizar-se a sua intervenção ao longo dos cinco anos do seu mandato?
A comissão nacional o que faz é transmitir orientações, dar formação, também ter aqui alguma intervenção nos novos modelos. Tenho-me colocado à disposição dos presidentes das CPCJ para aquilo que necessitarem e eles querem algum reconhecimento. Eu pretendo dar-lhes esse reconhecimento. Aproveito para dizer que trabalham incessantemente para proteger as crianças. E tenho pena, às vezes, que só sejam evidenciadas quando alguma coisa não corre tão bem. Porque as situações de sucesso nunca são notícia. Eu compreendo isso. Mas, para quem está a dar tudo, todos os dias, é um bocadinho desmotivante. Tenciono trabalhar o mais possível para o seu reconhecimento e para que tenham melhores condições para conseguir cumprir as suas funções.
Falando um pouco do seu percurso, como conjuga a sua área de especialização, de Gestão Tributária e Fiscalidade, ao tema das crianças em perigo?
Isto já vem de longe. Ainda sou vereadora sem pelouro na Câmara Municipal de Sintra e durante anos e anos, 20 anos, tenho sido autarca – de Assembleia de Freguesia, de Assembleia Municipal e agora de vereação. E sempre acompanhei as áreas sociais. Tenho aqui dois compartimentos, a área da gestão tributária, porque entrei para a autoridade tributária praticamente logo depois de acabar o curso, e depois estive na Segurança Social e no emprego quando fui chefe de gabinete do Secretário de Estado do Emprego; e a ação social, e aqui sempre acompanhei as CPCJ em toda a minha atividade de autarca. Por isso, não é novo para mim. Além disso, sou uma diretora-geral, uma gestora de uma organização, tenho uma equipa que sabe imenso e que sempre se dedicou muito a esta área da proteção de crianças.
Tem o perfil certo para este cargo?
Acho que sim. Foi um desafio que me foi lançado, mas acho que tenho. Tenho o perfil de gerir pessoas. Já tive também outros cargos de dirigente e isto é realmente a gestão da organização e a gestão de pessoas é também importante porque é parte do meu trabalho.
A sua nomeação foi uma escolha direta da senhora ministra da Solidariedade e Segurança Social. A Drª Maria do Rosário Palma Ramalho já conhecia o seu trabalho?
Já e conhecia-me pessoalmente também. Eu e a senhora ministra fomos colegas de faculdade, portanto já nos conhecemos há muitos anos
"Procurei saber o que estava a acontecer com esse estudo nacional sobre abusos e nada encontrei"
Esta nomeação é uma nomeação política?
Julgo que não. As nomeações políticas são a outro nível.
Mas o facto de ter havido aqui uma mudança e não ter havido uma continuidade, por exemplo da vice-presidente da comissão nacional, Drª Maria João Fernandes [há muitos anos na CNPDPCJ] que continua como vice-presidente, mas vista como sucessora natural da Drª Farmhouse, é que nos leva a perguntar se foi uma nomeação política.
Compreendo o seu dilema mas, de facto, foi uma escolha que não foi minha. Foi uma escolha da senhora ministra, não vou discutir as escolhas da senhora ministra.
Vai acumular as funções de vereadora com as de presidente da comissão nacional?
Pedi um parecer para ver se era incompatível a minha continuação como vereadora sem pelouros com as funções que desempenho e foi considerado que não era incompatível. Se fosse incompatível, naturalmente que renunciaria ao lugar de vereadora. No fundo as minhas funções na câmara são quase de fiscalização porque – embora esteja no órgão executivo – a única coisa que faço é aprovar ou não as propostas que são levadas pelos vereadores que têm pelouros. E, portanto, uma vez que não se verificou a incompatibilidade, continuo.
Mas isso implica tempo...
Sim, de 15 em 15 dias tenho uma reunião na câmara. É absolutamente compatível. Porque não tenho horário [na CPCJ].
E vai acumular a presidência da comissão nacional com outras funções partidárias?
Sim, sou membro do Conselho de Jurisdição Nacional, fui eleita no último congresso mas isso também não me tira muito tempo. Levo muito a sério os meus direitos de cidadania e, por isso, tudo aquilo que não é incompatível – e de facto este não é incompatível – não pode tolher [o exercício da] minha cidadania.