07 nov, 2024 - 07:00 • Susana Madureira Martins , Lara Castro e Helena Pereira (Público)
D. Américo Aguiar considera que é “obrigação” da Igreja Católica agilizar o processo de compensações às vítimas de abusos sexuais. Em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal "Público", o cardeal e bispo de Setúbal diz esperar que a reunião plenária da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), de 11 a 14 de novembro, possa “continuar este caminho” e decidir que não será preciso ouvir de novo as vítimas para proceder às compensações. “Não vamos pedir às vítimas que percorram novamente o túnel do horror”, diz D. Américo Aguiar.
O bispo de Setúbal foi um dos quatro portugueses que participaram na última sessão da Assembleia Geral do Sínodo, em Roma. Explica que a Igreja está cada vez "mais perto" de dar mais protagonismo às mulheres, embora reconheça que existem vários padres que resistem a "partilhar o poder" com quem quer que seja.
Nesta entrevista, D. Américo Aguiar revela-se preocupado com a situação dos mariscadores das margens do Tejo, ao longo da península de Setúbal, salientando que muitos deles são trabalhadores ilegais, lamentando que, provavelmente, o assunto “só voltará a ter a atenção de quem de direito quando morrer mais alguém”.
Participou nos trabalhos do Sínodo dos Bispos, no Vaticano, que terminaram a 27 de outubro. Até junho vão funcionar dez grupos de estudo sobre algumas questões – pobreza, participação das mulheres na Igreja. Este sínodo, no fundo, começou em 2021. Criar grupos de trabalho não é adiar mais uma vez a decisão sobre temas que podem ser fraturantes?
Aquilo que o Papa empreendeu desde o início é que nos sintamos em modo sinodal. Isso significa que os problemas e os caminhos a percorrer no futuro sejam discutidos naquilo que é a partilha da família dos irmãos e das irmãs. O sínodo era sobre a sinodalidade, propriamente dita, e as temáticas que viessem seriam encaminhadas para os tais dez grupos de trabalho para cada um poder fazer o estudo aprofundadamente.
"Não tenho dúvidas quanto à importância do papel da mulher na Igreja, seja na catequese, seja na liturgia"
E se o grupo de estudo, por exemplo, que vai avaliar a participação das mulheres na vida da Igreja concluir sobre a necessidade de ordenação de mulheres padres ou de mulheres diáconos, o que é que acontece? Estas decisões são ou não vinculativas?
Depende do modo como o Papa as materializar, porque quer o sínodo, quer estes grupos de trabalho, normalmente quando chegam ao fim, fazem recomendações. No final deste sínodo, por exemplo, o Papa não fez uma exortação pós-sinodal. O documento final, pura e simplesmente, foi divulgado e encaminhado para as igrejas e para as dioceses. O Papa decidiu assim, não sei se para queimar etapas ou para acelerar ainda mais o processo da sinodalidade no terreno.
Nestes dez anos, há um caminho que se vai fazendo, em muitas áreas, não é única e exclusivamente nessa. Na votação sobre o diaconato feminino, houve 90 e tal votos contra, mas uma esmagadora maioria a favor, 200 e tal a favor.
Os votos contra podem funcionar como um sinal de que a Igreja se pode dividir nessa temática?
Durante um mês estivemos juntos das 8h45 até às 19h30. Aprendi que é uma riqueza ter a oportunidade de estar junto com irmãos e irmãs que pensam de modo diferente, que sentem de modo diferente, mas também que nos sensibilizam e testemunham as suas urgências. Por exemplo, enquanto nós, europeus, discutimos a questão dos recasados, os nossos irmãos africanos disseram-nos, ‘calma aí, porque nós não estamos a entender essa prioridade. O nosso problema chama-se poligamia’.
Mas, voltando a esta questão das mulheres diáconos, qual é a sua posição? É de que se deve integrar todos, todos, mas não todas, todas?
Não tenho dúvidas quanto à importância do papel da mulher na Igreja, seja na catequese, seja na liturgia. Mais do que a questão do ordena ou não ordena, na sociedade e na Igreja somos iguais.
Entrevista Renascença/Ecclesia
Uma semana depois do final da segunda sessão da As(...)
Mas é possível haver igualdade sem haver sacerdócio?
Colocamos um sublinhado que eu acho que é errado. Quando falamos de ministério ordenado, eu falo de serviço. Mas na sociedade e em muitos areópagos, entendemos o ministério ordenado como exercício do poder e questionamos porque é que os iguais não podem aceder a esse exercício do poder.
A mim não me causa especial problema, nem dificuldade maior. Acho que é errado colocarmos no centro da reflexão a questão do exercício do poder. A culpa é nossa, quando o padre, quando o bispo não...
... não quer partilhar o poder?
Exatamente. O erro é associar ao ministério ordenado o exercício do poder.
Sente que na Igreja há padres que não querem partilhar o poder?
Eu sinto na Igreja que há homens que não lhes agrada partilhar o poder, mas não é por partilhar o poder com mulheres. Não lhes agrada partilhar o poder com ninguém.
Acho que hoje estamos muito mais perto de um caminho, não digo de unanimidade, mas de consenso, do que estivemos no passado mais recente.
Ou seja, a breve trecho, podemos ver mulheres a celebrar missas, por exemplo?
Não. O que eu estou a dizer é que o ministério ordenado não tem de estar absolutamente associado ao exercício de poder. No limite, podemos ter homens e mulheres a dirigir as instituições e os organismos e isso não ter nada a ver com o ser sacerdote ou não ser sacerdote.
O Papa nomeou recentemente uma senhora para o governatorato de Roma. Um dia pode nomear uma prefeita de um dicastério. É um caminho que temos de fazer.
Sobre esta temática, há o risco de a dada altura haver uma cisão da Igreja entre a ala mais conservadora e a mais progressista?
Pelo contrário. No sínodo, onde estiveram presentes todas as sensibilidades, não notei esse ambiente.
Outro dos grupos de trabalho é sobre o ministério dos bispos. Os bispos e cardeais estão preparados para exercer no mesmo patamar de um leigo o tal caminhar juntos de que Francisco falou no arranque dos trabalhos? Acabou a ideia dos príncipes da Igreja?
Para mim, já acabou há muito tempo. Agora, há uma coisa que no sínodo se aprende: numa sociedade, numa família, numa instituição, nós temos de aceitar que alguém tem de ter a última palavra, mas essa última palavra não tem de ser a única palavra. E às vezes confunde-se o ter a última com ter a única.
O documento final do sínodo não deixa de lado a questão dos abusos e lê-se que é preciso esclarecer a verdade e pedir perdão. A Igreja em Portugal tem feito isso? Ou a mensagem que passa tem sido confusa, nomeadamente sobre as indemnizações às vítimas?
Em Portugal, depois da comissão Strecht, da criação do grupo Vita, estamos agora na fase de atribuir compensações. Agora é preciso concretizar esta fase não perdendo o foco daquilo que é a salvaguarda da vítima. Não devemos acrescentar mais sofrimento ou dúvidas ou recalcar situações desnecessariamente.
A Conferência Episcopal terá a sua reunião plenária de 11 a 14 de novembro, em que vai continuar este caminho para concretizar aquilo que é uma fase muito importante.
Como bispo de Setúbal, qual é o bolo da diocese para indemnizações?
Até à data, ainda não foi materializado qualquer valor. Em Setúbal, os pedidos de que eu tenho conhecimento são dois, três.
E que agora têm de repetir novamente todo o processo para poder pedir a indemnização.
Não é humanamente, cristãmente, aceitável fazer repetir percursos de sofrimento. Não devemos fazer com que as vítimas percorram novamente o túnel do horror.
Então na Conferência Episcopal podem decidir agilizar esse processo?
Eu acho que é a nossa obrigação. Se é um caso novo, acho que tem de fazer [depoimento]. Não é humano voltar a convidar a pessoa a passar outra vez pelos horrores dessa história. Tenho toda a confiança no trabalho do Grupo Vita.
2025 é um ano jubilar e seria particularmente simbólico que os processos se encerrassem, não digo definitivamente, porque estas coisas infelizmente nunca se encerram definitivamente.
"Não é humano voltar a convidar a pessoa a passar outra vez pelos horrores dessa história. Tenho toda a confiança no trabalho do Grupo Vita"
Nas últimas semanas houve desacatos em Lisboa, na sequência da morte de Odair Moniz, num bairro pobre, o bairro do Zambujal. Houve também, na sequência disso, alguns desacatos na margem Sul. Como é que viu esta situação e o que é que acha que deve ser feito?
Primeiro, uma palavra de solidariedade para a família do Odair e o motorista da Carris. Se alguém morreu num contexto de uma operação policial, é preciso que o Estado de direito funcione sem qualquer gaguejo. Temos de saber o que é que aconteceu, se foram cumpridos os protocolos.
Agora, eu não posso, à partida, fazer uma aceção de uma pessoa, consoante ela chega de gravata e de fato da marca X, ou se chega sujo e de fato-macaco porque vem do trabalho ou porventura não tem condições para outro tipo de higienização. Não podemos permitir que isso aconteça. Se existem profissionais nas mais diversas áreas que tenham esse comportamento, é obrigatório que as suas chefias diretas ajam em conformidade para corrigir.
É bispo de Setúbal, o que tem feito pelas populações que vivem no limiar da pobreza?
Tenho articulado e tenho tentado sensibilizar as autarquias na península Setúbal para uma resposta àquilo que é o problema da habitação, com uma população já a rondar os 900 mil habitantes. Em Almada, o município, o IHRU e o governo estão a tentar resolver a velocidade cruzeiro o problema dos bairros ilegais que existem, por exemplo, o Segundo Torrão. Tive a oportunidade de falar com o novo Presidente do IHRU e falei-lhe exatamente desta minha preocupação de a sociedade em geral tentar resolver os problemas daqueles bairros que já têm uns anos de existência ao mesmo tempo que está a nascer bairro ilegal novo. Quem não tem casa não pode esperar. Quem tem fome não pode esperar. Quem está doente, grave, não pode esperar.
E que respostas é que a Igreja pode dar a essas pessoas?
A Igreja de Setúbal dá resposta através das suas instituições, a Cáritas, os Centros Paroquiais, as Misericórdias. Tenho visitado muitas IPSS que não são da tutela da Igreja e vejo que vivem no limiar também da capacidade.
As próprias Misericórdias têm dificuldade em dar resposta. Fico sempre triste quando se anuncia o aumento do Salário Mínimo Nacional, que é uma coisa muito importante e positiva, mas essas instituições tremem. Porque senão não há meios para responder a outras necessidades.
E aos bairros mais pobres e a esses bairros ilegais que até estão a nascer, a Igreja chega lá ou não?
Sim, a rede paroquial é uma mais-valia para quem quiser chegar às pessoas. É uma solidariedade de proximidade, porque conhecem o nome, conhecem o rosto, conhecem a família. Não é um número, não é um anónimo. E nós não temos o exclusivo do apoio e da ajuda às comunidades. No território de Setúbal existem muitas instituições civis não religiosas e existem muitas outras, além de outras confissões religiosas, que também no terreno tentam fazer o melhor possível.
Sobre a situação dos mariscadores na zona de Setúbal, nas margens do Tejo, tem sido visível aquele pequeno exército de pessoas na apanha de bivalves junto à ponte Vasco da Gama. Há suspeitas de tráfico humano, muitos destas pessoas são imigrantes. É possível fazer alguma coisa que não está a ser feita?
Infelizmente, a questão dos mariscadores de Alcochete ou do Montijo ou do Seixal, só voltará a ter a atenção de quem de direito quando morrer mais alguém. Estou convencido que tem morrido mais gente, estou a arriscar, porque estamos a falar de pessoas que, infelizmente, não interessam a ninguém, que são tratadas sem respeito. São 10, são 20, são 50, são 100, não sei. E por isso, se não somos nós próprios, os amigos e concidadãos a dizer que falta o José ou que falta o António, se ninguém denunciar ou chamar a atenção que falta algum deles, se calhar infelizmente...
Tem recebido essas denúncias?
As pessoas têm medo. Quando andei lá pediram-me que não lhes desse visibilidade. A visibilidade que eu lhes quis dar, eles entenderam como uma ameaça, quando não era esse o objetivo, pelo contrário. Mas eles entendem que quanto mais visibilidade mais insegurança vivem por parte daqueles que os exploram. Eles têm medo, porque eles estão ilegais.
"Não basta varrer. Os migrantes não são o problema, as pessoas migrantes não são o problema"
Não há aí uma falha das autoridades estatais, ou seja, da fiscalização, por um lado e das autoridades judiciais que deviam investigar rapidamente?
Há uma falha minha, como bispo, como padre, como cidadão, há uma falha das autoridades policiais, de investigação, de governo, de legislação, há uma falha transversal da sociedade, de todos.
Como é que explica isso?
Acontece quando o bem comum, a subsidiariedade e a solidariedade, quando uma destas não nos preocupa de modo especial. Quando falei com algumas autoridades disseram que, de vez em quando, fazem uma rusga e depois dizem-me assim, ‘ah, mas a solução era colocar aqui uma purificadora’ e que isso resolvia o problema, mas matava a clandestinidade e assim o negócio já não é vantajoso. Há aqui vários poderes que não permitem ou que impedem uma solução.
Qual é a solução daquilo?
Quando falamos com os autarcas locais todos eles dizem que têm pedido que haja uma ‘task force’ transversal, com vários representantes das forças de segurança, do Governo, mas o que é certo é que até à data isso não aconteceu.
Não basta varrer aquelas pessoas dali, diariamente?
Não basta varrer. Os migrantes não são o problema, as pessoas migrantes não são o problema. E eu fico muito zangado e triste quando ouço protagonistas a colocar o peso nas pessoas migrantes. As pessoas migrantes precisam é que a gente as ajude, ponto final. O problema são os protocolos, as metodologias, as legislações, as instituições, as várias redes de responsabilidade e de jurisdição que, tudo junto, esmagam a pessoa ou ignoram a pessoa. É preciso um Simplex para resolver o emaranhado daquilo. Quando a gente tenta seguir uma dessas pessoas, onde é que ela mora, encontramos alugueres de colchões, já não é de quartos, é alugueres de colchões. Portanto, isto é miserável.
Como é que vê a suspensão da manifestação de interesse por parte do Governo, acha que é justo, que é uma medida que vem ajudar os imigrantes?
Não sei se a porta deve estar aberta ou fechada ou escancarada que são as imagens que a gente ouve no discurso político partidário. O que eu quero é que as pessoas sejam respeitadas. Quando há um cidadão do mundo que olha para Portugal e sonha concretizar a sua vida em Portugal, eu acho que devíamos tentar criar condições para que ele se sinta acolhido, amado e respeitado. Não sei, naquilo que é a capacidade de resposta do nosso país, o que é que é melhor e o que é que salvaguarda mais a dignidade de quem quer vir para cá. É abdicar da manifestação de interesse? São as quotas? Confesso que não sei responder. Tudo o que não respeite a dignidade de alguém que quer sair da indigência, dos problemas, das dificuldades do seu país e quer concretizá-las em Portugal, eu gostaria de os acolher de braços abertos, sem qualquer impedimento.
Sobre o Orçamento do Estado, a Igreja Católica não teve aqui um papel algo tímido publicamente?
Eu fiz a minha parte. Sempre disse que era fundamental, no tempo que vivemos, que se entendessem e aprovassem o orçamento, respeitando aquilo que é o desenrolar do processo no Parlamento. E confesso que aplaudi aquilo que foi a decisão de Pedro Nuno Santos, que dissesse, que defende isto, mas há um bem maior que é a governabilidade e a situação do país e do mundo. E também tenho aquela sensação que, se fôssemos para eleições, não estou convencido que o resultado fosse muito diferente na conjugação PS-PSD.
Agora, o que é importante é que o Parlamento faça o seu trabalho e que, de vez em quando, também se baixe um bocadinho o sangue na guelra. O que é importante é que quer o Governo, quer o Parlamento, as diversas bancadas, nunca deixem de ter como prioridade o melhor para Portugal e para os portugueses. E o melhor, às vezes, não é propriamente aquilo que é a minha opção. Temos que tomar decisões e votar de maneira diferente daquela que é a minha ideologia, que é o meu pensamento, para que o melhor possa acontecer.